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Disputa corporativa ou (des)respeito às atribuições?

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO
Disputa corporativa ou (des)respeito às atribuições?

Por William Garcez

JURÍDICO

 

 

No dia 21 de dezembro de 2011 o Subprocurador-Geral para Assuntos Institucionais do Ministério Público Estadual, Marcelo Lemos Dornelles, publicou artigo intitulado “Disputa corporativa ou interesse social?”, criticando a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional 37/2011, aprovado no dia 13 de dezembro de 2011 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal. Segue ipsis litteris o artigo referido:

 

“O Ministério Público é o destinatário de todas as investigações criminais existentes, das polícias, das CPIs, das falências, das sonegações, notícias de crimes em geral, para encaminhar os fatos ao Poder Judiciário para a responsabilização dos criminosos. Não há que se confundir inquérito policial com investigação criminal. O inquérito é espécie do gênero investigação, exclusivo das polícias. A investigação não. Historicamente, as polícias deram atenção aos crimes violentos, contra pessoas físicas, casos em que há uma cobrança imediata por soluções. Por outro lado, crimes graves, com vítimas indeterminadas, como a corrupção, a sonegação de impostos, a lavagem de dinheiro, ambiental, entre outros, não receberam a mesma atenção. Para exercer plenamente sua missão constitucional, de defensor da sociedade e único ator da persecução criminal em juízo, o Ministério Público passou a atuar supletivamente na investigação, para não se limitar aos casos que outros lhes dessem conhecimento. Passados 23 anos da Constituição, firmada e confirmada essa atuação pelo Supremo Tribunal Federal como legítima e constitucional, semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal aprovou texto de proposta de emenda à Constituição limitando esses poderes do Ministério Público, dando exclusividade para a apuração de infrações penais às polícias. Será que essa disputa corporativa interessa à sociedade brasileira? Interessa à segurança pública? Restringindo a atuação de uma instituição séria, preparada, experiente vamos melhorar o combate à criminalidade? Certo que não. Então por que essa PEC? Disputa corporativa. Mas por que foi aprovada na CCJ? Porque existem dezenas de deputados federais oriundos das carreiras policiais, enquanto aos membros do Ministério Público há vedação de atividade político-partidária, salvo aos que ingressaram na carreira antes da CF 88. São apenas três em todo o país. Aprovada essa PEC, milhares de investigações criminais importantes serão interrompidas. As polícias não têm atendido satisfatoriamente essa missão”.


Antes de tudo, quero registrar meu respeito e admiração pelo Ministério Público Estadual, instituição o qual já tive a honra de integrar os quadros funcionais, e acredito ser de extrema importância para a sociedade e para a concretização da justiça.

 

Entretanto, não posso deixar de consignar a minha irresignação com o texto escrito pelo nobre Subprocurador, uma vez que, além de criticar a aprovação do texto da PEC 37/2011 pela Câmara Federal, vejo em suas palavras conceitos que denigrem a imagem das Polícias Judiciárias Brasileiras.

 

Primeiramente, como bem observou o Subprocurador, o poder investigativo criminal do Ministério Público é “suplementar”, ou seja, que complementa. Não é, portanto, um poder principal, mas sim acessório. A decorrência lógica disso são as requisições ministeriais, onde os órgãos do Parquet requisitam à Autoridade Policial diligências que julgam necessárias para embasar a sua opinio delicti. E, saliente-se, as requisições são mandamentos legais, pois decorrem da lei, em nada se confundindo com ordens de cunho funcional, uma vez que não há qualquer subordinação entre Promotores e Delegados.

 

Ressalte-se que nos julgados em que o Supremo Tribunal Federal se manifestou favorável à realização de investigação criminal pelo Ministério Público, ficou claro que se tratava de um poder supletivo e residual. Ou seja, somente em casos específicos! Como exemplo cite-se o julgamento do Habeas Corpus número 91661, referente a uma ação penal instaurada a pedido do Parquet, na qual os réus são policiais acusados de imputar a outra pessoa uma infração penal, mesmo sabendo que a acusação era falsa.

 

Outro exemplo de que a atividade investigativa do Ministério Público é excepcional vem estampado no julgamento do Recurso Extraordinário número 468523, onde a Ministra Relatora, Ellen Gracie, é clara ao referir que “(…) não há óbice a que o Ministério Público requisite esclarecimentos ou diligencie diretamente a obtenção da prova de modo a formar seu convencimento a respeito de determinado fato, aperfeiçoando a persecução penal, mormente em casos graves como o presente que envolvem a presença de policiais civis e militares na prática de crimes graves como o tráfico de substância entorpecente e a associação para fins de tráfico. 6. É perfeitamente possível que o órgão do Ministério Público promova a colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e da materialidade de determinado delito, ainda que a título excepcional, como é a hipótese do caso em tela (…)” (grifo nosso).

 

Logicamente que, baseadas na Teoria dos Poderes Implícitos, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal têm convalidado alguns atos investigativos levados a cabo pelo Ministério Público, tais como tomada de depoimentos e gravações de áudio e vídeo. Entretanto, como referido acima, a atividade investigativa do Ministério Público é encarada como exceção, não como regra.

 

Os argumentos que embasam esse entendimento são diversos e coerentes. O primeiro deles se consubstancia no fato de que a Constituição Federal atribui, no artigo 144, parágrafo primeiro, inciso IV, em caráter exclusivo, à Polícia Federal às funções de polícia judiciária da União, sendo que às polícias civis incumbe, simetricamente, desempenhar a polícia judiciária dos estados federados.

 

O segundo é que, investindo-se o Ministério Público na dúplice tarefa de investigar e acusar, haverá considerável prejuízo aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Justamente por este motivo, o Código de Processo Penal reputa impedido o Promotor de Justiça que tiver funcionado como Autoridade Policial, por força do disposto no artigo 252, II, combinado com o artigo 258 do mesmo Diploma Legal. Significa que o legislador proibiu que aquele ente que investigou os respectivos fatos venha também exercer o jus acusationis em juízo.

 

O terceiro argumento, da mesma forma, vem esculpido na Lei. O Código de Processo Penal deixa claro que o Inquérito Policial somente pode ser presidido pela Autoridade Policial, que é o Delegado de Polícia. O Inquérito Policial é um procedimento formal que deve observar regras e prazos legais. Inclusive, após a edição da súmula vinculante número 14, o defensor do investigado tem total acesso aos atos já documentados que não comprometam a investigação, tudo para se observar os direitos e garantias fundamentais do investigado, nos moldes do devido processo legal.

 

Ora, diante dos argumentos expostos, há de provocar inquietação o fato de existirem expedientes paralelos, tramitando simultaneamente aos Inquéritos Policiais, provocando conflitos de atribuições e dividindo os esforços estatais em face de um mesmo objeto.

 

Maior agitação provoca o fato de uma instituição oficial (dita Fiscal da Lei) pretender realizar investigações em expedientes inominados, sem regras específicas, sem prazo de duração e sem a necessidade de observância da súmula vinculante número 14, uma vez que, como referido, trata-se de um processo anônimo, não de um Inquérito Policial. Aliás, tudo isso em detrimento das Polícias Judiciárias, instituições constitucionalmente encarregas da atividade investigativa.

 

Veja-se, inclusive, que a justificativa do Projeto de Emenda Constitucional 37/2011, refere expressamente que “o Inquérito Policial é o único instrumento de investigação criminal que, além de sofrer o ordinário controle pelo Juiz e pelo Promotor, tem prazo certo, fator importante para a segurança das relações jurídicas”. Ainda, menciona a justificativa que “temos observado procedimentos informais de investigação conduzidos em instrumento sem forma, sem controle e sem prazo, condições totalmente contrárias ao estado de direito vigente”.


O objeto principal da PEC 37/2011 é incluir no artigo 144 da Constituição Federal o §10, para que as atribuições das Polícias Judiciárias sejam respeitadas pelas demais instituições. O texto da PEC menciona que “a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1° e 4° deste artigo, incumbem privativamente, às Polícias Federal e Civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente”.


Nos primeiros semestres do curso de Direito se ensina que lei surge da necessidade de regrar situações fáticas geradoras de conflitos. Ou seja, A lei surge quando é necessária.

 

Nesse passo, é perfeitamente legítimo o texto da PEC 37/2011, uma vez que necessário para, muito mais que pôr fim à dita “disputa corporativa”, se fazerem respeitar as atribuições das Polícias Judiciárias, que vêm sendo desprezadas e esmagadas por outros órgãos. Dessa forma, também vem a referida PEC para atender ao “interesse social”, porque é direito de todo o cidadão se ver investigado pelas instituições oficialmente consagradas na Constituição Federal para exercer essa função, as Polícias Judiciárias.

 

Ademais, para que fique claro, é importante aludir que “investigação criminal” vai muito além do colhimento de uma oitiva, expedição de ofícios ou juntada de documentos. No ponto extremo de uma investigação, algumas diligências impactantes, tanto para o investigado como para o investigador, podem ser necessárias, tais como a infiltração de agentes em organizações criminosas, o monitoramento discreto, a perseguição automobilística, a entrada tática para realização de buscas ou prisões, entre outras. Todas essas diligências são afetas à área da segurança pública e o Ministério Público sequer tem condições de desempenhá-las.

 

Além do mais, aliado à falta de condições do Ministério Público em desempenhar diligências desse porte, imagino que falte também vontade e, quiçá, coragem. Todas essas ações que integram a “investigação criminal” envolvem riscos de toda a sorte, inclusive de morte. Francamente, não imagino que um Assessor do Ministério Público ou mesmo um Promotor de Justiça se prontifique a se infiltrar em uma associação de traficantes para buscar elementos de informação.

 

Aqui, inclusive, encontramos uma porta aberta para outros debates. Quais atos investigativos o Ministério Público pretende realizar? Apenas os que lhe apraz? E mais, quais fatos criminosos o Ministério Público pretende investigar? Apenas os que repercutirem na mídia? Apenas os selecionados por si?

 

Não parece ser esse o caminho em um Estado que tem como regime político-jurídico o denominado “Democrático de Direito”.

 

Vale destacar aqui as palavras do ilustre Alberto José Tavares Vieira da Silva[1]:

 

“Ao Ministério Público nacional são confiadas atribuições multifárias de destacado relevo, ressaindo, entre tanta, a de fiscal da lei. A investigação de crimes, entretanto, não está incluída no círculo de suas competências legais. Apenas um segmento dessa honrada instituição entende em sentido contrário, sem razão.

Não engrandece nem fortalece o Ministério Público o exercício da atividade investigatória de crimes, sem respaldo legal, revelador de perigoso arbítrio, a propiciar o sepultamento de direito e garantias inalienáveis dos cidadãos.


O êxito das investigações depende de um cabedal de conhecimentos técnico-científicos de que não dispõe os integrantes do Ministério Público e seu corpo funcional. As instituições policiais são as únicas que contam com pessoal capacitado para investigar crimes e, dessarte cumprir com a missão que lhe outorga o art. 144 da Constituição Federal.


A todos os cidadãos importa que o Ministério Público, dentro dos ditames da lei, não transija com o crime e quaisquer tipos de ilicitudes.


O destino do ministério Público brasileiro, no decurso de sua existência, recebeu a luz de incensuráveis padrões éticos na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.


Às Polícias sempre coube a árdua missão de travar contato direito com os transgressores da lei penal, numa luta heróica, sem quartel, no decurso da qual, no cumprimento de sagrado juramento profissional, muito se sacrificam a própria vida na defesa da ordem pública e dos cidadãos.


A atuação integrada e independente do Ministério Público e das Polícias garantirá o sucesso da persecução penal, com vistas à realização da justiça e a salvaguarda do bem comum”.


Se (e, por favor, leiam o condicional) “as polícias não têm atendido satisfatoriamente essa missão”, como escreveu o douto Subprocurador, o caminho é repensar a forma como a Segurança Pública vem sendo tratada em todo o País (com total descaso), e não usurpar as suas atribuições.



[1] SILVA, Alberto José Tavares Vieira Da. Investigação Criminal: Competência. São Luis, 2007, pg. 47.

 

SOBRE O AUTOR: William Garcez é Delegado de Polícia do Rio Grande do Sul. Representante da Associação dos Delegados de Polícia da Vigésima
Segunda Região Policial. Ex-Assistente de Promotoria de Justiça. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – CAMVA/RS.

 

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