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Justiça, mesmo que contra a lei

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

 

Lembrei-me de escrever sobre um assunto muito falado ultimamente, qual seja, a aplicação de dolo eventual nos delitos de trânsito com morte, quando o agente ingeriu álcool antes de assumir a direção. Assim sendo, ele acaba não respondendo por homicídio culposo, mas, isto sim, por homicídio doloso, sendo levado ao Tribunal do Júri. Agora, isso estaria correto?

 

Vejamos: na culpa consciente, o agente prevê o resultado, mas “acredita” que ele não ocorrerá. No dolo eventual, por sua vez, o agente prevê o resultado, “acredita” que ele poderá ocorrer, mas isso não o impede de agir. Como diz Nelson Hungria: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixarei de agir.

 

A questão, então, resume-se em se saber o que pensa, “em seu íntimo”, o motorista embriagado que assume o volante. Conscientemente, antes ou após beber, ele prevê e acredita no resultado, mas dirige assim mesmo, porque a morte prevista é-lhe indiferente?! Parece-me que não. Sem dúvida, ele haveria agido de forma absolutamente irresponsável, mas, em regra, com culpa consciente, não com dolo eventual.

 

O Direito Penal é, com efeito, a última ratio. Seus conceitos não podem, portanto, ser ampliados ao infinito. Se os seus limites dogmáticos não forem respeitados, poder-se-á dizer doravante que qualquer atropelamento com morte deve ser julgado pelo júri, pois, com certeza, aquele que dirige seu veículo em via pública está, naturalmente, “assumindo o risco” de matar alguém, pois atropelamentos com morte ocorrem a todo instante!

 

Cito, oportunamente, dois clássicos excertos: “Não dando seu assentimento, sua aquiescência, sua anuência ao resultado, não age o acusado com dolo eventual, mas, sim, com culpa consciente, que é confinante com aquele, sendo sutil a diferença” (In RT 607/274). “Na hipótese de dolo eventual não é suficiente que o agente tenha se conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado: exige-se mais, que ele tenha consentido no resultado” (In RT 548/300).

 

A demanda, portanto, é que nós, delegados, promotores, juízes e jurados desejamos punir o motorista embriagado adequadamente pelo mal que ele fez e não aceitamos deixá-lo praticamente impune diante de uma legislação de trânsito débil. Agora, se formos mandar o motorista embriagado que matou alguém a julgamento pelo júri, tudo bem, porque isso muitas vezes será a expressão da justiça no mundo dos fatos. Todavia, não sejamos hipócritas com nós mesmos dizendo que dentro do sistema legal vigente isso encontra suporte.

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