CONTRA O BAFÔMETRO
STF: Sem exame não há crime de embriaguez ao volante
Versa conteúdo do STF:
No STF, o ministro Eros Grau, em 27/08/2009, apreciando pedido de liminar no HC 100472, assim se manifestou: “O tipo previsto no art. 306 do CTB requer, para sua realização, concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue. Parece-me evidente que a imputação delituosa há de ser feita somente quando comprovado teor alcoolico igual ou superior ao previsto em lei. Ora, não tendo sido realizado o teste do ‘bafômetro’, falta, obviamente, a certeza da satisfação desse requisito, necessário, repita-se, à configuração típica”.
Crime de embriaguez ao volante e ativismo punitivista do STJ, por Luis Flávio Gomes
JURÍDICO
{loadposition adsensenoticia}Decisão do STJ, Quinta Turma, HC 132.374-MS: “No HC, pede-se o trancamento de ação penal diante da falta de justa causa porque não houve o exame de alcoolemia. Segundo o Min. Relator, para a configuração do crime de trânsito descrito no art. 306 da Lei n. 9.503/1997 (CTB), a realização da perícia, quando possível, torna-se imprescindível. Entretanto, ressalvou as hipóteses em que a perícia não é realizada porque, na comarca, não há os equipamentos necessários à realização do exame ou em razão da recusa do acusado em submeter-se aos exames de alcoolemia. Nesses casos, observou ser possível concluir o estado de embriaguez quando ele é perceptível por testemunhas ou pelo exame clínico, de acordo com preceitos doutrinários estabelecidos em medicina legal. Dessa forma, esclareceu que, quando não é possível realizar o exame para indicar a concentração de álcool no sangue, há outros tipos de prova (testemunhal ou exame clínico) que atestam, indubitavelmente, o estado de embriaguez do motorista, o que admite a aplicação do art. 167 do CPP. Observou ainda que, no caso dos autos, o exame de alcoolemia não foi realizado por falta de equipamento hábil na comarca, além de não ficar esclarecida a razão pela qual não se fez o exame de sangue. Porém, houve o exame clínico e, por essa razão, há suficientes indícios de materialidade do crime, sendo precipitado o trancamento da ação penal. Diante do exposto, a Turma denegou a ordem de habeas corpus. HC 132.374-MS, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 6/10/2009”.
Conforme Luís Roberto Barroso [01], o princípio do devido processo legal, nos Estados Unidos, passou por duas fases: a primeira, de caráter puramente processual (procedural due process) limitava-se apenas a uma garantia sobre a regularidade do processo penal (depois estendida para os processos civil e administrativo), ou seja, apenas uma garantia de contraditório, ampla defesa, direito à presença de advogado etc. Impedia qualquer invasão do Judiciário na apreciação da injustiça ou arbitrariedade do ato legislativo. A segunda fase, de caráter substantivo, (substantive due process), ao contrário, “tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle do arbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental”, permitindo o controle pelo Judiciário sobre a razoabilidade e racionalidade das leis e demais atos do Poder Público.
Essa dimensão substantiva do devido processo legal, que causou uma ascensão do Judiciário só comparável com a que ocorreu quando da introdução do controle judicial de constitucionalidade das leis (1803, caso Marbury vs Madison), teve seu ponto culminante com a revolução progressista promovida pela Suprema Corte Americana, sob a presidência do Justice Earl Warren, ensejando o chamado ativismo judicial, é dizer “a intervenção dos tribunais no mérito de certas valorações legislativas e administrativas” [02] para a proteção de direitos e garantias individuais. O Judiciário, portanto, despindo-se dos ranços positivistas, dentre os quais o da neutralidade do Juiz, passou a ter um papel de protagonista (e não mero expectador) na construção da defesa dos direitos fundamentais (principalmente das minorias). Esse intervencionismo judicial na proteção inflexível das liberdades teve especial relevo, sobretudo no âmbito do processo penal (ex. Miranda v. Arizona, 1966 – direitos dos investigados e acusados em processo criminal). A Warren’s Court conduziu à “criminal procedure revolution”, ou seja, uma “reformulação da base constitucional do processo penal estaduniense” [03].
Mas essa “jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais” [04], construída pela Suprema Corte Americana, sofreu e sofre muitos influxos históricos, inclusive no Brasil. Recentemente, o insigne Boaventura de Sousa Santos falou em um tal e atual ativismo judicial conservador que “neutraliza avanços”. O sociólogo português e professor catedrático da Universidade de Coimbra colocou assim seu pensamento: “está em curso uma contrarrevolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles. Entendo por contrarrevolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições” [05].
Guardadas as devidas proporções e com os devidos ajustes (já que ativismo judicial tem muito a ver com decisões envolvendo questões políticas, como direito das minorias), podemos tomar por empréstimo a expressão de Boaventura para nos referirmos a uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida em relação ao crime de embriaguez ao volante. A decisão, de cunho utilitarista e um verdadeiro exercício de punitivismo a qualquer preço, vai na contramão do bom papel desempenhado pelo Poder Judiciário (inclusive pelo próprio STJ) na aplicação constitucional do direito penal e do direito processual penal. Explica-se:
O texto art. 306 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) que define o delito de embriaguez ao volante sofreu, com o advento da Lei 11.705/08, duas importantes alterações em sua estrutura típica.
A primeira das modificações (que não nos interessa no presente artigo) foi a supressão da expressão final do tipo penal, “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, que transformou o delito, antes de perigo concreto, em delito de perigo abstrato (ou delito de preparação, segundo WOHLERS), ressalvado o entendimento doutrinário da inconstitucionalidade dessa categoria de crimes (v.g. Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt) [06].
A outra alteração foi a substituição da expressão “sob a influência de álcool” pela expressão, “com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”. É este ponto que nos interessa aqui.
Com efeito, antes da alteração legislativa, para a caracterização do delito bastava a comprovação do estado de embriaguez (a influência de álcool) apta a impedir o condutor de dirigir com segurança viária, independentemente da quantidade da substância no sangue dele. Essa comprovação do estado de embriaguez poderia ser realizada por exame de dosagem alcoólica no sangue, exame de dosagem alcoólica no ar dos pulmões (aferição por meio de etilômetro, vulgarmente, conhecido como “bafômetro”) ou ainda, no caso de recusa do condutor de participar desses exames, por exame clínico (visual) a ser realizado por perito ou testemunhas. Agora, pela nova redação típica do art. 306 do CTB, a quantidade mínima de álcool no sangue – e não a mera influência pelo álcool – é que constitui a elementar do tipo penal, de tal sorte que se não comprovada essa quantidade mínima, não estará demonstrada a tipicidade da conduta. E essa quantidade mínima de álcool no sangue só tem como ser verificada, de forma segura e adequada, por meio dos mencionados exames de dosagem alcoólica no sangue ou de dosagem alcoólica no ar pulmonar [07]. Jamais por exame clínico (visual), que pode indicar um estado de embriaguez do condutor, mas nunca a quantidade mínima de álcool que ele traz no sangue.
Apesar disso, a Colenda Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, recentemente, que nos casos em que a perícia (leia-se: exame de dosagem) não é realizada porque na comarca não há os equipamentos necessários à realização do exame ou por recusa do infrator em submeter-se aos exames de alcoolemia, a comprovação do estado de embriaguez pode ser realizada por testemunhas ou pelo exame clínico, de acordo com preceitos doutrinários estabelecidos em medicina legal, ou seja, quando não for possível realizar o exame para indicar a concentração de álcool no sangue, há outros tipos de prova (testemunhal ou exame clínico) que podem atestar, indubitavelmente, o estado de embriaguez do motorista, o que admite a aplicação do art. 167 do CPP, para comprovação da materialidade delitiva. (HC 132.374/MS, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 06.10.09)
Com a devida vênia que merece o Superior Tribunal de Justiça, não se pode admitir decisão nesse sentido provinda de uma Corte dessa envergadura.
A decisão encerra um equívoco técnico inadmissível. Conforme já mencionado, a quantidade mínima de álcool por litro de sangue, de acordo com a nova redação típica do art. 306 do CTB, passou a constituir elementar do tipo penal. Nada tem a ver com a materialidade delitiva sobre o “estado de embriaguez”, mas com a tipicidade da conduta. Se a quantidade mínima de álcool no sangue do condutor não ficar comprovada e, portanto, não for mencionada expressamente na denúncia ou queixa, o fato narrado na exordial será evidentemente atípico, sendo o caso de rejeição da peça acusatória, ex vi do disposto no art. 395, I c/c art. 41, ambos do Código Processual Penal de regência, ou mesmo rejeição por falta de uma das condições da ação (art. 395, II do CPP), qual seja, a possibilidade jurídica do pedido, em razão da atipicidade do fato (dirigir sob o efeito de álcool, por si só, não é crime; crime é conduzir veículo com o mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue).
Perceba-se que a alteração do tipo penal trouxe mudanças relevantes. Na redação anterior do art. 306 do CTB bastava a denúncia mencionar a influência por álcool do condutor, sendo que a comprovação dessa elementar se fazia por meio de um dos meios de aferição mencionados. De acordo com a nova redação, porém, a “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas” é o que deve constar expressamente na denúncia, sendo que essa elementar nunca se demonstrará por exame visual.
O legislador que reformou o Código de Trânsito Brasileiro cometeu um erro gravíssimo ao substituir a elementar “sob a influência de álcool” pela expressão “com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”. Praticamente inviabilizou a aplicação do dispositivo incriminador, propiciando a impunidade de condutores embriagados, dada a falta de aparelhos para realização dos exames e também pela possibilidade do infrator se recusar a se submeter a exames de dosagem, em razão do princípio da não auto-incriminação.
Mas não cabe ao Superior Tribunal de Justiça fazer uma interpretação como a que fez, apartando-se completamente da dogmática penal e processual e dos princípios constitucionais (dentre os quais o princípio da legalidade, que reclama que a conduta se enquadre perfeitamente no tipo penal punitivo), com o objetivo subjacente de corrigir falhas legislativas e deficiências estruturais da administração e assim pretender conferir efetividade ao novo art. 306 do CTB, evitando impunidade.
A propósito, um parênteses. Esse, digamos, “ativismo judicial conservador”, é tão perigoso como a chamada jurisprudência defensiva – que tenta a qualquer custo impedir o aumento de volume de processos nos tribunais – e que “no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais” (Ministro Eros Grau). Ao decidir pela inconstitucionalidade da execução provisória de pena na pendência de Recurso Especial ou Extraordinário, o Ministro Eros Grau colocou que “a antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados – não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço”. (HC 94.408/MG, rel. Min. Eros Grau, j. em 10.02.09, 2ª Turma) (grifos nossos)
De fato, assim como o Poder Judiciário não pode admitir a indevida e inconstitucional antecipação de execução de pena a pretexto de resolver problemas de excesso de processos nos Tribunais e de impunidade em razão de prescrição, não pode também admitir que quantidade de álcool no sangue seja medida a “olho nu”, a pretexto de resolver a impunidade gerada pela falta de “equipamentos necessários à realização do exame” ou pela prerrogativa do suspeito de não se submeter a exames de dosagem alcoólica. A impunidade decorrente de problemas estruturais da administração (no caso da falta de aparelhos) ou de péssima técnica legislativa (no caso da impossibilidade de comprovação do delito se o acusado recusar-se a se submeter a exames) não pode ser superada com uma decisão que ignora ou tangencia direitos e garantias constitucionais em prol da necessidade de punir a qualquer preço. Não cabe ao Judiciário resolver carências da administração pública ou falhas legislativas por meio de decisão forçada, arbitrária e descabida.
Fechado esse primeiro ponto, é pertinente ainda colocar que a decisão do Superior Tribunal de Justiça merece ser repudiada pela insegurança jurídica ínsita nela mesma (insegurança, a propósito, incompatível com a certeza probatória exigida pelo direito penal incriminador), na medida em que aceita que um exame visual, inclusive feito por testemunhas, ateste a comprovação da “quantidade” de álcool no sangue exigida para a tipicidade da conduta.
É que o álcool age de forma diferente no organismo humano, de acordo com uma série de fatores endógenos, tais como sexo, idade, peso, hábito ou não de beber etc. Assim, v.g. num bloqueio policial, uma mulher magra, sem hábito de beber e com o estômago vazio poderá ser responsabilizada por estar com sintomas “evidentes” de embriaguez (atestados pelo exame visual de policiais desprovidos do etilômetro) em razão da ingestão de uma cerveja em lata; ao passo que no mesmo bloqueio policial poderá não ser constatada a embriaguez de um homem obeso, que acabou de fazer uma reforçada refeição, habituado a beber e que acabara de ingerir três cervejas em lata. Nesse exemplo, o condutor com maior quantidade de álcool no sangue não será responsabilizado; a condutora, com menos quantidade de álcool no sangue, será punida. Tudo a depender do tão criterioso quanto subjetivo exame visual das testemunhas (policiais ou civis)
Nem se argumente que no exemplo acima sugerido a situação pode realmente ser considerada justa já que o álcool agiu no organismo da mulher de forma a lhe retirar a capacidade de dirigir com segurança, mas não produziu esse mesmo efeito no homem condutor, razão pela qual a condutora merece punição e o condutor não. Não bastasse o equívoco científico dessa eventual afirmação – pois a ausência de sinais exteriores de embriaguez não significa ausência de perda de capacidade de dirigir com segurança – devemos relembrar que o tipo penal agora, se interpretado em sua literalidade, seria de perigo abstrato (de acordo com doutrina e jurisprudência majoritárias), ou seja, a questão não é saber se o condutor está com maior ou menor condição de dirigir com segurança, e sim se está dirigindo com quantidade de álcool no sangue proibida pelo tipo penal.
Também não é plausível eventual argumentação de que essa decisão do Superior Tribunal de Justiça aplicar-se-á apenas em casos de “evidente” situação de embriaguez do condutor. Sabemos que não é assim que ocorre na prática. Abriu-se um perigoso precedente que sustentará, sem dúvida alguma, medidas e decisões arbitrárias. Aos olhos – literalmente – de agentes do Estado ou de particulares estará agora cingida a questão da responsabilidade penal (ou não) pelo delito de embriaguez ao volante. A testemunha pode ser um condutor envolvido em um acidente que tem óbvios interesses em confirmar o “evidente” estado de embriaguez do outro condutor.
Esperemos que essa decisão do Superior Tribunal de Justiça não se firme como jurisprudência. Seria um passo atrás no relevante papel do Poder Judiciário de defensor dos direitos e garantias constitucionais. Que essa decisão do STJ seja revista pelo STF o mais prontamente possível.
Notas
1. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, pp. 218-222.
2. Idem ibidem.
3. TEBET, Diogo. Ativismo Judicial e Processo Penal: mais Warren’s Court e menos Law And Order. São Paulo: Boletim do IBCCRIM n. 205.
4. Idem.
5. Folha de São Paulo, 4 de dezembro de 2009.
6. Ressalte-se que essa nova natureza do crime possui reflexos processuais relevantes, uma vez que nos delitos de perigo abstrato o ônus da acusação limita-se a demonstração da realização da conduta, ao contrário do que ocorre nos delitos de perigo concreto, nos quais o órgão acusatório deve comprovar, além da prática da conduta, também a situação de perigo concreto gerada. Nos delitos de preparação o ônus processual acusatório é menor.
7. O parágrafo único do art. 306 do CTB dispõe que para a aferição da embriaguez, o “Poder Executivo Federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia”. O Decreto n. 6488, de 19 de junho de 2008, que regulamenta o art. 306 do CTB, em seu artigo 2º, II dispõe que para estar caracterizado o delito, o etilômetro (aparelho de ar alveolar pulmonar) deverá indicar “concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões”.
Sobre os autores
Luiz Flávio Gomes
doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN), consultor, parecerista, fundador e presidente da Cursos Luiz Flávio Gomes (LFG) – primeira rede de ensino telepresencial do Brasil e da América Latina, líder mundial em cursos preparatórios telepresenciais
Silvio Maciel
Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ex-Delegado de Polícia no Estado de São Paulo, professor universitário de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Constitucional e professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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