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Primeiro chefe de polícia negro do RS levanta bandeira de defesa dos direitos humanos

por Editoria Delegados

RS: Filho de mãe branca e pai negro, o delegado Fernando Antônio Sodré de Oliveira propõe combate a racismo estrutural


“Temos que, cada vez mais, associar a instituição na defesa dos direitos humanos, ainda que algumas condutas das polícias brasileiras reflitam o racismo institucional”, defende o delegado Fernando Antônio Sodré de Oliveira, o primeiro homem negro a assumir a chefia da Polícia Civil no Rio Grande do Sul em 181 anos. Sodré é professor universitário desde 2005 e doutorando em Direitos Humanos.

Ele aposta em uma gestão capaz de conscientizar os agentes de polícia para a proteção de grupos vulneráveis. Com 25 anos de polícia, paulista, é delegado desde 1998. Chefiou as 13ª e 21ª Delegacias de Polícia Regional do Interior em Santo Ângelo e Santiago, de 2011 a 2016, e, em seguida, dirigiu o Departamento de Polícia do Interior (DPI), o maior da instituição, de 2016 a 2019. Comandou delegacias e distritos em Cerro Largo, Porto Alegre, Caxias do Sul, São Luiz Gonzaga e Santo Antônio das Missões. Desde 2019, chefiava novamente a 13ª Delegacia de Polícia Regional do Interior, em Santo Ângelo.

Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Sodré é mestre em Filosofia e, atualmente, cursa o doutorado em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS (Unijuí).

Possui especialização em supervisão escolar pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em Direito Penal pela UCS e em Segurança Pública pela PUC/RS.

Nascido em família multirracial – filho de pai negro e mãe branca –, em entrevista ao Brasil de Fato RS, ele fala da sua motivação para focar no enfrentamento ao racismo estrutural, enquanto temática de suas análises acadêmicas e em sua atuação profissional.

“O estranhamento do negro em determinadas posições é fruto dessa questão da estrutura, porque ela determina lugares para as pessoas estarem, a mesma coisa do patriarcalismo” / Foto: Fabiana Reinholz

Fernando Sodré: Hoje, não tenho dúvida que estou na profissão certa, mas, na época que era oficial do Exército, queria fazer concurso para as áreas jurídicas. Aí, o primeiro concurso que abriu foi para delegado, resolvi fazer e passei. Comecei a trabalhar e vi o quanto a Polícia Civil é uma instituição interessante do ponto de vista do trabalho, da dinâmica e do que tu podes fazer socialmente também.

Fui percebendo que Deus apertou o botão e me botou na função certa. Na polícia, faz parte da função você ter um certo rigor, mas ser rigoroso é muito diferente de ser arbitrário, violento, insensível. A polícia permite que estejamos em locais onde gente da nossa condição social nunca vai estar e, se você tem sensibilidade para perceber isso, percebe o quanto as pessoas precisam de ajuda também. É um órgão que permite que a gente tenha uma atuação muito positiva socialmente falando e pode realmente transformar a vida das pessoas, das vítimas e ajudar, inclusive, os acusados. Temos que ter uma visão de que temos importância no controle da criminalidade, mas que podemos também fazer isso de uma forma humana e humanitária. É nessa polícia que eu acredito.

Tenho trabalhado basicamente o racismo estrutural, seletividade penal, a questão da segurança pública, onde entra esse processo; a questão da representatividade. No meu doutorado em direitos humanos trabalho exatamente essas questões. Estamos avançando nessa questão.

Temos que entender o contexto em que estamos inseridos e trabalhar para que esse contexto seja cada vez mais claro para as pessoas e que se possa evoluir nessa pauta. A gente tem evoluído, apesar de não na velocidade que alguns desejariam. Não é simples, mas estamos ganhando espaço e visibilidade de discussão.

Os problemas que tivemos no Brasil nos últimos tempos acabaram trazendo à luz uma coisa que ninguém achava que existia mais no Brasil, que era conversa fiada, mas ficou bem nítido que temos que discutir a respeito dessa questão racial e do racismo estrutural.

Criei uma comissão que não está instalada oficialmente ainda porque preciso reinstalar o departamento de direitos humanos, e nele uma comissão de igualdade racial, mas ela já discute e tem funcionários e delegados trabalhando nisso.

Não existe este departamento ainda?

Existia o departamento, mas não estava muito está ativo. Então, estou reestruturando tudo isso, encaminhando um projeto para o governo. Vamos criar um gabinete de comunicação social, institucional e direitos humanos. Essa reestruturação depende de um decreto do governador e, por isso, ainda não está instalada oficialmente.

Na sua posse, o senhor falou que quer a sua gestão marcada principalmente pela proteção dos grupos vulneráveis e pelo combate ao crime organizado, aos crimes violentos como homicídios e feminicídios, aos crimes patrimoniais. Acha que está conseguindo fazer algo neste sentido nesse pouco tempo que assumiu o cargo?

Creio que sim. Primeiro, deixa primeiro eu dar uma visão institucional da polícia judiciária, da polícia civil, como eu enxergo a Polícia Civil. Temos duas grandes áreas na minha cabeça. Uma delas é o combate à criminalidade organizada.

Esse crime organizado não vitima apenas as classes mais abastadas, mas especialmente os mais vulneráveis. Normalmente, é nos locais onde residem as pessoas mais vulneráveis, eles (os criminosos) impõem toque de recolher, obrigam as pessoas a se submeterem ao tráfico e a violência. Não é uma violência que atinge só a classe mais favorecida por exemplo nos roubos de veículos ou crimes violentos patrimoniais, atingindo as classes mais vulneráveis dos locais onde eles operam e se impõe por meio de violência.

E as mulheres mais vulneráveis são, normalmente, as negras.

Junto com essa parte temos outro lado que é o da proteção. O que é o lado da proteção? Proteção da mulher, da criança e adolescente, proteção dos mais vulneráveis, seja proteção de raça, de orientação sexua, etc.

Nas duas áreas, temos o que podemos chamar de trabalho policial. Ele não muda muito. O que muda aqui é a escuta, o acolhimento, a forma de abordar as pessoas, a forma como você recebe as pessoas na delegacia e como encaminha as demandas.

Esta segunda área é a reputo importante. Tenho trabalhado cada vez mais na conscientização do fortalecimento desses novos departamentos de proteção aos vulneráveis, no trabalho de uma mentalidade de justiça restaurativa, seja no programa mediar, seja no papo de responsa. Estamos trabalhando para instalar a segunda delegacia da mulher de Porto Alegre.

Logo que assumi, falei para o secretário de Segurança Pública que não teria cabimento apenas uma delegacia de atendimento á mulher, com a demanda que se tem de proteção à mulher. E as mulheres mais vulneráveis são, normalmente, as negras. Dentro daquele processo de interseccionalidade, as pessoas que têm as vulnerabilidades associadas são as que mais sofrem.

Institucionalmente, tivemos uma perda importante quando faleceu a delegada Andrea Mattos. Tivemos que repotencializar alguém que tivesse esse viés. Acho que acertamos, não tenho dúvida disso. A delegada Tatiana Bastos está fazendo um trabalho fantástico também. E os grupos se sentiram acolhidos, os grupos LGBT principalmente, todos eles que tem na nossa delegacia um ponto muito forte de proteção.

“Precisamos atuar fortemente em trabalhos sociais também, principalmente na primeira infância. As crianças precisam ter perspectiva” / Foto: Fabiana Reinholz

O senhor possui mestrado em Filosofia e cursa o doutorado em Direitos Humanos. Como relaciona isso à sua trajetória na polícia?

As coisas não são dicotômicas. Não existe antagonismo. Uma vez, um repórter me perguntou: ´O senhor é delegado e o senhor é doutorando em Direitos Humanos. O senhor não acha que tem antagonismo nisso?` Não, muito pelo contrário. Não tem antagonismo nenhum. A gente tem que, cada vez mais, associar a instituição a uma mentalidade de defesa de direitos humanos.

Não precisamos confundir o rigor que a polícia tem que ter no enfrentamento da criminalidade, o qual vamos ter que ter sempre, com o arbítrio. São coisas diferentes. Os direitos humanos são contra o arbítrio, a violência. Tenho trabalhado isso nas minhas palestras.

Outro dia, fui numa palestra e tinha um juiz que era professor junto comigo, foi meu colega inclusive, e eu falando sobre racismo estrutural, a questão da segurança pública, violência, seletividade penal – que é um fenômeno mundial, só que, no Brasil, é agravado pelas questões estruturais que envolvem a questão racial – e ele me perguntou: ´O senhor não acha que a polícia é mais violenta – a polícia em geral, não a polícia civil especificamente – ou tem uma lesividade maior ou atinge mais os grupos não brancos? Eu falei: ´Acho sim, mas acho que o judiciário não julga os não brancos da mesma forma, como eu acho que o ministério público não acusa da mesma forma, como o sistema carcerário não trata da mesma forma, porque isso é uma questão estrutural`.

Tem crimes com um grau de gravidade que atingem muito mais os negros do que os brancos.

As pessoas não podem querer colocar apenas nas polícias a responsabilidade sobre questões que são estruturais. Temos problemas, claro. O processo de penalização secundária começa conosco, contudo se tu pegares a legislação brasileira, por exemplo, a penal, vais ver que tem crimes com um grau de gravidade que atingem muito mais os negros que os brancos. Os crimes fiscais, os crimes tributários, os crimes econômicos, tem uma pena muito menor do que os furtos qualificados, por exemplo, proporcionalmente em relação à lesividade social. Existe uma seletividade que atinge uma população mais vulnerável. A polícia simplesmente reflete isso também.

Estamos imersos em uma estrutura social racialmente perversa construída historicamente, desde a época da escravidão. As estruturas institucionais estão mergulhadas nisso. Não dá para atribuir apenas para a polícia. A polícia é responsável sim, só que não se pode entender uma única instituição responsável como se as outras tivessem isentas do processo. Esta é, mais ou menos, a pauta inicial para a gente entender onde me situo ideologicamente nesse processo.

Não tem como tu discutires a democracia plena no Brasil sem analisar a questão racial. As instituições que realmente querem ser democráticas tem que avançar nessa discussão. Por isso, o judiciário também está fazendo essa reflexão, o ministério público também tem que fazer essa reflexão, as polícias militares têm que fazer essa reflexão, nós temos que fazer essa reflexão. Eu me sinto comprometido, hoje na condição de chefe, com muita serenidade, a também encaminhar essa discussão internamente.

As instituições de segurança pública têm que mudar os currículos para incluir uma educação antirracista e para a diversidade.

O senhor é um professor além da sua carreira na polícia. Enquanto professor, acha que precisa existir uma educação antirracista dentro dos espaços, das instituições de segurança pública?

Não tenho dúvida. As instituições de segurança pública tem que mudar os currículos para incluir uma educação antirracista e para a diversidade. Vou mais longe ainda no caso da pauta racial antirracista. Tem que ser uma construção. É literalmente uma construção, porque se você não constrói os espaços, se quer é tomar uma medida não dialogal, pode criar mais resistência do que solução. As pessoas estão acostumadas com o discurso pronto sobre esta temática e as instituições de segurança refletem o que temos na sociedade.

Precisamos da discussão antirracista na sociedade e na área de segurança pública. Precisamos fazer letramento racial nas instituições, trazer a discussão. Mas a discussão de alguém que também entenda as especificidades da atividade policial, que não pode ser desconectada da realidade policial. O que percebo, às vezes, é que as pessoas querem fazer um letramento racial em determinada instituição, mas esquecem que a instituição também tem um letramento próprio. Você precisa associar essas duas coisas para que o debate faça sentido para as pessoas. Se não você associa, acaba tendo uma pauta dissociada daquela especificidade impedindo a transformação, exatamente do que se está querendo transformar.

É um ponto da minha tese do doutorado: diante das instituições de segurança do Brasil, a questão racial é uma não questão, o racismo institucional que a gente tem, na minha perspectiva, é um racismo institucional por omissão. Mas omissão em que sentido? Omissão por uma não questão, é uma coisa não discutida. No meu ponto de vista, isso vem a partir do mito da democracia racial. Você atua inicialmente reproduzindo a estrutura sem refletir sobre ela e o resultado é essa maior letalidade do povo negro nas ações policiais, um maior número de abordagens do povo negro nas ações policiais, maior quantidade de presos e condenados negros nas abordagens policiais, número de presos por tráfico, até porque também a população negra é mais vulnerável.

Venho de uma família multirracial, o meu pai é preto e a minha mãe é branca.

Em um dos seus estudos, o senhor cita [o geógrafo e escritor negro] Milton Santos, quando ele fala o seguinte: “Ser negro no Brasil é, com freqüência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada ‘boa sociedade’ parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros, e assim tranquilamente se comportam”. O senhor nesse cargo sofreu racismo?

Não me senti ainda nessa situação, mas aí tem algumas particularidades que a gente precisa colocar. Venho de uma família multirracial, o meu pai é preto e a minha mãe é branca. Sempre discutimos isso na família. Vivi os dois lados da moeda, o lado da negritude e o lado da branquitude. De certa forma, aprendi a transitar, não transitar no sentido político negativo, mas no sentido de me acostumar com esses processos. Já tive processos discriminatórios na minha vida, mas eles nunca me intimidaram. Sempre busquei meu espaço, mas isso tem que ser bem explicado.

Tive colegas que comentaram assim: ´Por que que tu estás nesse assunto? Tu chegaste onde chegaste, passaste no concurso`. A história da meritocracia, e aí eu digo assim: ´Exatamente, por isso que é preciso o debate, porque a exceção confirma a regra, você tem um negro lá, você tem um cara que chegou, não quer dizer que todos os outros têm a mesma condição de chegar, tenho que mostrar que precisamos ter realmente espaço para todos chegarem`.

Há quanto tempo não se via um diretor do Banco Central que não fosse branco?

Já tive estranhamentos. Por exemplo, fui ministrar um curso preparatório para carreiras jurídicas, quando os alunos entram em sala de aula, perceber que eles se espantam num primeiro momento, depois se acostumam. Mas o que percebo? O estranhamento do negro em determinadas posições é fruto dessa questão da estrutura, porque ela determina lugares para as pessoas estarem, a mesma coisa do patriarcalismo.

Ou seja, o lugar do negro não é aqui, não é no tribunal de Justiça, não é na chefia de polícia, não é no lugar do médico, do diretor do hospital, do diretor da empresa. Temos um diretor do Banco Central que é negro. Há quanto tempo não se via um diretor do Banco Central que não fosse branco?

Não sinto que eu tenha sofrido discriminação nesta posição, até porque minha posição de chefe da polícia teria deixado as pessoas em uma situação um pouco mais complexa. Acho que consegui me fortalecer para fazer uma caminhada sem me abater muito.

Quero que, daqui há alguns anos, não precisemos fazer conta de quem é o primeiro ou segundo ou o terceiro negro a ocupar uma função, que seja uma coisa natural. Nossa missão é essa: abrir os espaços, mas não para você ser o único e sim abrir para que os outros venham com mais naturalidade para esses processos.

Os homicídios baixaram todos, latrocínios baixaram todos, feminicídios baixaram todos.

Recentemente, a Assembleia Legislativa fez um seminário falando da saúde mental dos policiais. Ali era um segmento dos policiais militares. Como está a saúde mental da Polícia Civil?

Temos tido muita preocupação com isso. Hoje mesmo, estava falando com a nossa diretora do departamento de administração policial que temos já um protocolo para isso. Mas o protocolo tem que evoluir. Vamos criar um programa de acompanhamento disso, temos psicólogos e estamos contratando um psiquiatra para a instituição.

Tenho pensado inclusive pedir para alguém apresentar um projeto para trazer para dentro da instituição as chamadas práticas integrativas que tem no SUS. Seria muito importante para baixar o estresse. Nossa profissão é de risco, de estresse, de tensão.

Existe a questão do aumento da mortalidade juvenil no estado. Foi feita uma pesquisa pelo Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas – Gejup, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço da Ufrgs em parceria com a Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil (FEMJUV RS), que apontou que, nos últimos 10 anos, aumentaram os índices de mortalidade juvenil no estado. Como encara essa questão?

Eu teria que ver a pesquisa para dar uma resposta. Não sei se aumentou o índice de violência juvenil, mas os nossos índices criminais no geral, todos eles, nos últimos anos, tem caído sensivelmente. Não estou dizendo que a pesquisa está errada. Tenho que ver qual a metodologia, ver exatamente o que trabalharam, para poder fazer um juízo de valor. É difícil falar sobre um trabalho que eu não vi. Do ponto de vista criminal, vou dar só um dado, que não tem a ver com violência juvenil, mas com a violência em geral e em que os jovens estão envolvidos, muitos deles.

Roubo de veículos, por exemplo. Só para se ter uma ideia, em setembro de 2015, tivemos um mês que foi o de maior incidência, 2.126 roubos de veículos no estado, roubo à mão armada. Mês passado fechamos com 258, o menor índice. Roubo é um crime que causa uma sensação de insegurança enorme. Muitas vezes, os jovens estão envolvidos nisso.

Os homicídios baixaram todos, latrocínios baixaram todos, feminicídios baixaram todos. Tivemos só um aumento de feminicídios na pandemia em 2021 e 2022, mas já revertemos o aumento nesse ano referente aos últimos dois anos, com baixa, que foram os únicos dois anos de aumento depois de um período de queda. A letalidade policial, vamos dizer assim, diminuindo, todos os índices diminuindo. É bem verdade que existem recortes específicos que podem trazer alguma diferença, mas no quadro geral todos os índices estão diminuindo, a violência em geral.

Quer dizer que os nossos índices estão maravilhosos? Não, ainda não. Mas diminuímos muito nesses últimos cinco anos.

Gostaria que o senhor falasse da questão da pesquisa porque a presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, deputada Laura Sito, fala que existe uma ausência nos dados da situação da verdadeira dimensão da violência no estado.

Nos estudos criminológicos, isto estaria incluído no que a gente chama de cifra oculta. Não é um dado do Brasil, é no mundo inteiro. Os dados das cifras criminais não chegam para as autoridades, não chegam todos os fatos ao conhecimento dos órgãos públicos. O termo antigo dessa cifra era ´cifra negra`. Não uso esse termo, nunca usei e chamo cifra oculta por que? Porque ´negra` se associa obviamente às questões raciais.

Algumas (situações) tem uma cifra oculta maior do que outras. Exemplo: violência doméstica. Tem uma cifra oculta maior do que homicídio por que? Porque homicídio aparece o corpo, a cifra oculta é muito menor, mas tem cifra oculta? Claro que tem , pois deve ter algum corpo que foi enterrado que ninguém ainda não tomou conhecimento, algum corpo jogado no mar ali e os peixes comeram, mas é muito menor.

Feminicídios, a mesma coisa. A cifra oculta é menor. Determinados crimes de roubo são menores do que o furto. Se tu falares assim: ´Os dados são maquiados`. Não são. No Rio Grande do Sul, posso dizer que não são. O que pode acontecer é que tem uma cifra oculta, gerando uma subnotificação maior. Em estelionatos e crimes virtuais, a subnotificação é enorme. As pessoas têm vergonha ou não acreditam que vai resolver.

Então, se tens lá 20 mil registros, podes acreditar que tem uns 40 mil acontecendo ou mais. Agora, homicídios tens 50 e não vais ver mais do que dois ou três em uma cifra oculta.

Por isso, a gente conscientiza sempre a sociedade para registrar as ocorrências, para que tenhamos os dados cada vez mais fidedignos.

O sistema carcerário nosso tem que passar por uma releitura no Brasil inteiro.

Há uma guerra das facções que está acontecendo aqui na Região Metropolitana [de Porto Alegre]. Como estão trabalhando essa guerra?

Primeiro, responsabilizando os autores, segundo atacando essas facções visando o enfraquecimento delas, terceiro atuando para que evitem conflitos entre elas. Há uma cultura de violência instalada entre esses grupos. Por busca de espaço, de território, de poder, de adeptos. Temos que trabalhar para tirá-los dessa perspectiva. Não é muito simples porque isso é patrocinado pelo tráfico de drogas e o recrutamento ocorre na rua e dentro do sistema carcerário. O sistema carcerário nosso tem que passar por uma releitura no Brasil inteiro. São fenômenos de solução complexa, mas que exigem coragem do Estado.

E o enfrentamento tem que acontecer. A gente precisa criar alternativas sociais para esses grupos. Não adianta pensar só em repressão se você não associar um processo de possibilidade de transformação. Precisamos atuar fortemente em trabalhos sociais também, principalmente na primeira infância. As crianças precisam ter perspectiva. Muitas vezes elas caem no tráfico por falta de perspectiva. Depois que entram nesse processo, entram no que chamamos de subcultura, e aí não acreditam mais que possam ter uma vida diferente. E você já sabe o resto.

É preciso investir muito na formação das crianças, na formação básica lá na primeira infância, na pré-escola, no primeiro e segundo ano. Se não houver apoio a essas famílias, com assistência social, terá esse fenômeno cada vez mais forte. E aí a gente vai ter que usar a polícia. A polícia só reflete o problema depois que já está instalado.

Na guerra das facções, a gente percebe que existem células também no interior do estado [do Rio Grande do Sul]. Em Rio Grande, saiu até uma carta com o número de pessoas que iriam morrer. Essas células estão se espalhando também para Santa Catarina e se vê a atuação da polícia do estado com outras polícias do Brasil. E, quando a gente em juventude, tivemos recentemente a morte de cinco adolescentes na Vila Cruzeiro. Queria que o senhor falasse sobre esse aspecto, sobre como essas células estão no Rio Grande do Sul e pensando nessa polícia integrada com outros órgãos.

Isto nos preocupa muito em vários aspectos. Primeiro, pela violência intrínseca, segundo pela cooptação dos jovens e muitos são cooptados por não sentirem opção social possível. Alguns vão dizer assim: ´Mas eles sempre tem a escolha de não fazer`. Claro, a maioria das pessoas que passam por dificuldades não optam pela criminalidade, optam pelo trabalho, pelo esforço, pela educação. Mas alguns optam. Só que temos que entender que a criminalidade não é uma coisa que a gente vá terminar com ela. Temos que entender que o estado tem que dar oportunidade para que essas pessoas tenham a chance social de não optar pela criminalidade.

A segunda questão é essa expansão para o interior que está acontecendo em busca de espaço e território. É um mercado, é um negócio. Eles não estão nisso por nenhum fator ideológico, nenhum fator de transformação social. Estão nisso porque querem ganhar dinheiro. E o meio que acharam é expandir os territórios de controle de tráfico de drogas, etc. E para isso precisam ganhar consumidores e fazer isso se expandir e essa expansão vai até outro estado. É um processo comercial mesmo. É dinheiro, é mercado. Buscam ganhar espaço do jeito que podem e aí começa a guerra.

Dentro desse fenômeno, tem os recrutados e tem os que sofrem o efeito colateral dessa guerra. Temos inúmeros casos aqui em Porto Alegre de homicídios de três ou quatro consumidores que estavam em um ponto de tráfico e foram vítimas dessa guerra.

A sociedade brasileira, nessa área racial, precisa mais de informação.

O que conseguiria a polícia, pensando na segurança pública, intervindo antes desses casos?

A gente faz isso mas o que acontece? Quando uma facção vai a um local e mata alguém de outro grupo e vai haver um revide, o que a gente faz? Colocamos as nossas equipes todas na rua, da Polícia Civil e da Brigada Militar, para fazer o que se chama saturação de área, fazer o acompanhamento desses grupos, conversar com as lideranças para evitar que se transforme numa guerra. Para que a gente contenha essa violência e que ela não se transforme em um efeito manada, um efeito de reação em cadeia. Conseguimos manter aquele espaço controlado por um bom tempo e as coisas vão serenando. Temos mapeado e feito isso permanentemente. É por isso que os índices de homicídios estão caindo.

Uma mensagem final.

Confiar na melhora da sociedade brasileira. Tenho visto que a sociedade brasileira, nessa área racial, precisa mais de informação. Os racistas e os avessos a essa discussão são uma minoria, estridente, mas uma minoria. A maioria das pessoas é sensível a esse debate.

Tive vários amigos meus que falavam certas coisas e quando você dá meia dúzia de informações dizem: ´Eu nunca tinha pensado nisso. Tens razão`. Já participei de várias palestras em lugares que não são espaços de negritude e sim de branquitude, onde a plateia é praticamente toda branca, e você percebe que tem um eco muito positivo.

Então, acredito que vamos avançar nessa democracia racial. A maioria da sociedade quer uma sociedade harmônica, que viva bem, que se dê bem, aberta para perceber essas nuances e pronta para evoluir. Eu acredito nisso. Não é uma fala piegas. Temos condições de ser uma sociedade diferenciada nessa questão racial e tenho muita confiança que esse processo está sendo trilhado.

BdF Rio Grande do Sul

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