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Prerrogativa de foro no inquérito policial

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS
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JURÍDICO
Prerrogativa de foro no inquérito policial
Atribuições na investigação

JURÍDICO

Por Eduardo Pereira da Silva

{loadposition adsensenoticia}Resumo: Trata-se de estudo acerca da atribuição para investigação de crimes cometidos por pessoas detentoras de prerrogativa de foro. Parte da doutrina e da jurisprudência entende que tais investigações devem ser conduzidas pelos Tribunais com competência para processar e julgar as autoridades. Outra corrente, porém, defende que tais investigações devem ser feitas pela polícia judiciária por meio de inquérito policial a ser aforado, no prazo legal, perante o Tribunal competente. A partir da análise de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e à luz do sistema acusatório, o estudo acaba por discorrer acerca das investigações realizadas diretamente por magistrados em nosso país.

Palavras-chave: investigação, inquérito policial, inquérito judicial, falimentar, polícia judiciária, polícia legislativa, foro privilegiado, prerrogativa de função, Juiz de instrução, sistema acusatório.

Sumário: 1. Introdução – 2. O sistema processual penal brasileiro – 3. Investigações pré-processuais no ordenamento positivo; 3.1. Investigações conduzidas por magistrados no Brasil, 4. Prerrogativa de foro; 4.1. A casuística no Supremo Tribunal Federal; 5. Conclusão.

1. Introdução

O ano de 2005 foi farto em escândalos envolvendo grandes autoridades da República. A mídia de nosso país passou boa parte de seu tempo ocupada com a investigação de agentes públicos, destacando os trabalhos desenvolvidos pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário.

Chamam a atenção os equívocos cometidos pela imprensa acerca do papel de cada uma destas instituições ou órgãos nas investigações em curso, o que é até certo ponto compreensível, dado que os jornalistas, em geral, são leigos em Direito. A esse respeito, porém, há uma relevante questão não resolvida nem mesmo nos meios jurídicos, qual seja, o papel dos Tribunais nas investigações criminais em desfavor de detentores de prerrogativa de foro. Colocando a questão sob uma outra ótica: de quem seria a atribuição de investigar agentes políticos que devam ser julgados criminalmente perante Tribunais? Dos próprios Tribunais?

2. O sistema processual penal brasileiro

A doutrina brasileira distingue três tipos de sistema processual penal: o acusatório, o inquisitivo e o misto.

O processo acusatório se caracteriza por ser público, possuir contraditório, oportunizar a ampla defesa, e, primordialmente, por distribuir as funções de acusar, defender e julgar a órgãos distintos. O sistema inquisitivo, por sua vez, é sigiloso, não contraditório e reúne na mesma pessoa ou órgão as funções de acusar, defender e julgar. Já o sistema misto possui uma fase inicial preliminar inquisitorial e uma segunda fase acusatória.

O nosso país adota o sistema acusatório. As funções de acusar, defender e julgar são distribuídas. A acusação é, em regra, atribuição do Ministério Público. Ao acusado pessoalmente e a seu defensor, necessariamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, cabem a defesa. A função de julgar cabe ao Poder Judiciário.

Parte da doutrina entende ser misto o nosso sistema, por ter uma fase inquisitorial – a investigação pré-processual – e uma segunda fase com todas as características do sistema acusatório – o processo propriamente dito. A essa posição tem-se objetado que o processo brasileiro inicia-se com a acusação oferecida pelo Ministério Público, não havendo razão para levar em conta a fase pré-processual (inquérito policial) na classificação de nosso sistema.

Há um consenso em nosso país de que o sistema acusatório é o único apto a garantir a imparcialidade do julgador, uma vez que o coloca a salvo de um comprometimento psicológico prévio decorrente do exercício  da função de defesa ou de acusação. É ele, sem dúvida, o único sistema compatível com as garantias individuais previstas na atual Constituição (art. 5º., incisos LIII, LIV, LV, LVI, LVI, LXI, LXII, LXV, LXVIII).

O Supremo Tribunal Federal, como veremos adiante, já reconheceu expressamente a inconstitucionalidade de determinados dispositivos legais por ofensa ao sistema acusatório.

Não se pode ignorar, porém, que a investigação pré-processual, tendo como destinatário o órgão acusador, também deve ser desempenhada por órgão diverso ao do julgamento, sob pena de ofensa ao sistema acusatório. No Brasil, tradicionalmente, a investigação pré-processual é atribuída às polícias judiciárias (Polícia Civil e Polícia Federal). Aliás, foi a preocupação em assegurar a imparcialidade do Juiz que inspirou  o artigo 252, inciso, II, do Código de Processo Penal, que prevê o impedimento do Juiz de atuar em processos em que tenha atuado anteriormente não só como defensor e órgão do Ministério Público (acusação), mas também como autoridade policial (investigação pré-processual).

Em contrapartida, o mesmo Código previu a possibilidade de o Juiz iniciar o processo que tenha contravenções penais como objeto (artigos 26 e 531). Os dispositivos mencionados não foram recepcionados pela atual Constituição, como já reconheceram nossos Tribunais superiores, em virtude de incompatibilidade com o artigo 129, inciso I, da Constituição, que atribui ao Ministério Público, privativamente, a promoção da ação penal (STF, RHC 68.314/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJU 15.03.1991, p. 2648; STJ, RHC 2.363-0/DF, rel. Min. Jesus Costa Lima, RSTJ, 7/245).

3. Investigações pré-processuais no ordenamento positivo

No sistema constitucional brasileiro, a investigação de crimes é, em regra, atribuída à polícia judiciária (Polícia Federal e Polícia Civil). É o que se infere do art. 144, § 1º, inciso IV, e § 4º. Ocorre que a própria Constituição concede a outros órgãos ou instituições, às vezes de forma implícita, a atribuição – ora exclusiva, ora concorrente – para investigar crimes.

De tal maneira, os crimes militares devem ser investigados de forma exclusiva por autoridades militares – Constituição Federal, art. 144, § 4º, parte final, a contrario sensu. Para tanto, instituiu-se o inquérito penal militar (Decreto-lei nº. 1002/1969, Código de Processo Penal Militar). A Constituição abriga, também, a possibilidade de investigações conduzidas pelo Poder Legislativo, através das chamadas Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 58, § 3º).

Houve previsão, ainda, da possibilidade de o Poder Legislativo, federal e estadual, instituir suas polícias (arts. 27, § 3º, 51, inciso V, art. 52, inciso XIII). Embora nos pareça certo que as atividades de tais órgãos não abranjam a investigação de crimes, frente à clara redação do art. art. 144, § 1º, inciso IV, e § 4º, foram criadas no âmbito de cada uma das casas do Congresso Nacional as chamadas “polícias legislativas” com atribuições para investigar crimes cometidos em suas dependências (Resolução nº. 59/2003 do Senado Federal e Resolução nº. 018/2003 da Câmara dos Deputados).  Em regime constitucional anterior, o Supremo Tribunal Federal consolidara o entendimento segundo o qual “o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas dependências, compreende, consoante o Regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito” (Súmula 397).

De maneira muito semelhante às disposições regimentais do Poder Legislativo, o atual Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal prevê em seu artigo 43 que “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”. E o § 1º do mesmo dispositivo, ao tratar de crimes cometidos nas dependências do Tribunal por pessoa que não possui a prerrogativa de foro, dispõe que “nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”. O Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e até mesmo o Tribunal Superior do Trabalho adotaram disposições regimentais semelhantes.

Em nível infraconstitucional, há previsão na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº. 35/1979, artigo 33, parágrafo único) de que a investigação de crimes praticados por magistrados seja feita pelo Tribunal competente para processá-lo. Já as leis que disciplinam as atividades do Ministério Público dispõem que a investigação de infrações penais atribuídas aos procuradores seja feita por membro do próprio Ministério Público (Lei Complementar nº. 75/1993, artigo 18, parágrafo único, e Lei nº. 8.625/1993, artigo 41, parágrafo único).

Até 2005, havia, também, a possibilidade de condução, por magistrado, de inquérito para apuração de crime falimentar (artigos 103 e seguintes do Decreto-lei nº. 7661/1945). O inquérito judicial era presidido pelo mesmo magistrado que conduzia o processo falimentar propriamente dito.

3.1. Investigações conduzidas por magistrados no Brasil

Como vimos, há no país normas infraconstitucionais que dispõem sobre investigações pré-processuais conduzidas por magistrados nos casos de crimes cometidos por Juízes e de crimes cometidos nas dependências das sedes de Tribunais.

As normas regimentais que tratam da investigação de crimes cometidos nas dependências de Tribunais, a exemplo das normas análogas relativas a crimes cometidos na sede do Poder Legislativo, objetivavam impedir que tais poderes tivessem suas funções – e reflexamente a sua própria independência – embaraçadas por eventuais excessos da polícia judiciária praticados no interesse do Poder Executivo, sobretudo quando o órgão policial detinha poderes para realização de atos que hoje, necessariamente, exigiriam autorização judicial.

É interessante destacar, contudo, que tais normas deferem a magistrados de Tribunais poderes para investigar crimes que, a rigor, não devam ser julgados originariamente por Tribunais, como se infere do § 1º do art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e dos dispositivos análogos dos regimentos dos demais Tribunais citados.

Ressalte-se que tais normas não se referem a inquérito administrativo que objetiva apurar transgressão disciplinar de servidor do órgão. Os dispositivos regimentais dos Tribunais mencionam claramente a investigação de infração à lei penal. Tampouco pode-se falar que tais normas regulamentam a investigação penal de “pessoas sujeitas à jurisdição do Tribunal” (leia-se, detentoras da prerrogativa de foro), já que o parágrafo que costuma acompanhar o caput de tais dispositivos prevêem a atribuição de membros da corte para a realização da investigação nos demais casos (isto é, quando não envolver autoridades com prerrogativa de foro).

Até mesmo o Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho, que não possui competência para julgar processos em matéria penal, previu a instauração de inquérito por seu Presidente “quando caracterizada infração a lei penal na sede ou nas dependências do Tribunal” (artigo 36, inciso XIV).[i] [ii]

É indene de dúvidas o fato de que a atribuição do Tribunal para investigar em tais casos não teria o condão de atrair sua competência para o processo e julgamento do caso, por não haver previsão constitucional para tanto.

Aceitada a vigência de tais normas, haveria assim a possibilidade de Ministro do Supremo Tribunal Federal investigar crimes que só seriam julgados por aquela corte na via extraordinária. E até mesmo de Desembargador do Tribunal Regional Federal investigar crimes cometidos em suas dependências cujo processo deva ser julgado por um Juiz de Direito (não sendo o caso de crime que afete interesse da União).

Também teríamos que admitir um Ministro de Corte Superior ter que representar a um Juiz de primeira instância pela prática de ato sujeito a reserva jurisdicional, já que a sua atribuição para investigar jamais poderia se converter em competência para julgar e decretar medidas cautelares.

Imaginemos, assim, o recebimento de propina por funcionário do quadro administrativo do Tribunal Superior do Trabalho, nas dependências deste. No curso da investigação, a ser conduzida por um Ministro nos termos do regimento interno, pode se fazer necessária a quebra do sigilo bancário e telefônico do autor do crime. Para tanto, o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho teria que oferecer representação perante Juiz Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, competente para processar e julgar o funcionário? Ou estaria ele autorizado a afastar diretamente os sigilos?

O mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao Superior Tribunal de Justiça. Tendo a investigação sido conduzida por um membro da corte, estaria ele impedido de atuar no caso, quando o processo chegasse àquele Tribunal pela via recursal? Como veremos, pelo menos nos casos de competência originária do Tribunal, o Ministro que atua na fase pré-processual participa do julgamento do feito como relator.

Quanto às investigações presididas pelo Poder Judiciário para apuração de crimes cometidos por seus próprios membros, há algumas considerações importantes a fazer.

A condenação criminal de Juízes ainda é algo extremamente raro em nosso país. Para muitos, o corporativismo e a atribuição privativa do Judiciário para investigar seus membros seriam os responsáveis pela impunidade em casos de crimes com envolvimento das citadas autoridades. A criação do Conselho Nacional de Justiça por emenda constitucional foi um ajuste necessário para resguardar as garantias da magistratura (EC n.º 45/2004).

É necessário ponderar que as disposições legais que concedem ao Poder Judiciário a atribuição privativa de investigar seus membros objetivam concretizar o princípio da independência dos poderes, de forma a impedir, por exemplo, que o Poder Executivo utilize inquéritos policiais para pressionar magistrados. Sobre tais procedimentos trataremos adiante.

Não se pode deixar de mencionar o inquérito judicial para apuração de crime falimentar, recentemente extinto do nosso ordenamento. O referido inquérito era uma excepcionalidade. Procurava-se justificar sua existência primeiramente porque a caracterização de parte dos crimes falimentares estava a depender da decisão judicial que decretava a falência (uma parte da doutrina entendia que a decisão judicial era condição objetiva de punibilidade, outra parte entendia que se tratava de elementar do tipo). Segundo, porque os dados necessários à formação da convicção do Ministério Público acerca do crime poderiam ser obtidos a partir das peças ou informações contidas nos autos do próprio processo falimentar.

Mas o dado mais importante para nós, na sistemática da apuração judicial de crimes falimentares do Decreto-lei nº. 7.661/1945, era que a competência do magistrado do processo falimentar restringia-se à investigação do crime e ao recebimento da denúncia. Após, os autos deveriam ser remetidos ao juízo criminal. De tal maneira, o magistrado que investigava não julgava, aproximando a referida investigação daquelas conduzidas pelos “Juízes de instrução” em certos países da Europa.

Registre-se que a Lei nº. 11.101/05 – Nova Lei de Falências – extinguiu o inquérito judicial falimentar, deixando tais crimes de ser investigados por magistrados do juízo falimentar. Agora, conforme a regra geral, cabe à polícia judiciária a investigação do crime falimentar, devendo o Ministério Público oferecer a denúncia diretamente ao juízo criminal.

No direito europeu continental, é muito conhecida a figura do Juiz de instrução. Trata-se de magistrado que conduz investigações criminais auxiliado pela polícia judiciária e pelo Ministério Público. Após a conclusão da investigação, o caso é enviado a outro juízo para julgamento. Naquele continente, o papel do Juiz de instrução tem sido cada vez mais combatido. Na França, recentemente a figura do Juiz de instrução se tornou o pivô de uma grande discussão nacional iniciada após a conclusão do rumoroso caso Outreau[iii] e cujos efeitos na legislação daquele país ainda estão por vir.

O Supremo Tribunal já se debruçou sobre a constitucionalidade de investigações realizadas diretamente por magistrados. Na ADI 1570, Rel. Min. Maurício Correa, julgamento em 12.02.2004, a Corte Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade das disposições contidas na Lei nº. 9.034/1995 que atribuem funções investigatórias aos Juízes:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. “JUIZ DE INSTRUÇÃO”. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2º; e 144, § 1º, I e IV, e § 4º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.[iv]”

Em seu voto, o Min. Maurício Corrêa discorreu sobre a figura do Juiz de instrução e o sistema acusatório:

“10. O dispositivo em questão parece ter criado a figura de Juiz de instrução, que nunca existiu na legislação brasileira, tendo-se notícia de que em alguns países da Europa esse modelo obsoleto tende a extinguir-se. Não se trata, como sustentam as informações do Ministério da Justiça submetidas ao Advogado-Geral da União (fl.104), de simples participação do Juiz na coleta de prova, tal como ocorre na inspeção judicial (CPC, artigos 440 e 443). Nessa última hipótese, as partes têm direito de assistir à inspeção, prestando esclarecimentos que reputem de interesse para a causa (CPC, artigo 442, parágrafo único). Já no caso em exame, as partes têm acesso somente ao auto de diligência, já formado sem sua interferência.” E mais à frente, “em verdade, a legislação atribuiu ao Juiz as funções de investigador e inquisidor, atribuições essas conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigos 129, I e VIII e § 2 e 144, § 1 , I e IV e § 4). Tal figura revela-se incompatível com o sistema acusatório atualmente em vigor, que veda atuação de ofício do órgão julgador”.

Apenas ressalve-se que, na sistemática instituída pela Lei nº. 9.034/1995, o Juiz responsável pelas diligências investigatórias seria o mesmo com competência para julgamento do processo, o que não ocorre, em geral, nos países europeus que ainda adotam o juízo de instrução.

Ainda sob a alegação de incompatibilidade com o sistema acusatório, o Supremo Tribunal Federal entendeu não ser possível ao Juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido pelo Ministério Público (HC 82507/SE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2002, pg 0092).

Todavia, até o momento, aquele Tribunal não pronunciou a inconstitucionalidade das normas legais e regimentais que deferem a magistrados a atribuição para investigação de crimes.

4. Prerrogativa de foro

A Constituição Federal de 1988 determina que uma série de autoridades deva ser processada e julgada criminalmente perante Tribunais, excepcionando a regra geral segundo a qual o processo deve se iniciar perante Juízes singulares (primeira instância).

Esta regra é comumente designada de prerrogativa de foro, foro privilegiado por prerrogativa de função ou foro privativo. A regra teria sido incluída no texto constitucional em virtude das implicações que processos desta natureza possam ter. Assim, a prerrogativa de foro determina que certas autoridades públicas só podem ser processadas e julgadas perante órgãos colegiados (Tribunais), geralmente compostos de magistrados mais experientes. Não desconsideremos, entretanto, a opinião de parcela da população brasileira para quem o “privilégio” em questão contribuiria para retardar os processos criminais e impedir a efetiva punição de crimes cometidos por agentes públicos.

A nossa atual Constituição Federal concede o foro por prerrogativa de função aos chefes do Poder Executivo, membros do Poder Legislativo federal e estadual, do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, bem como a Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas e chefes de missão diplomática de caráter permanente.

Além desta extensa relação de autoridades, o Supremo Tribunal Federal atualmente reconhece a possibilidade de criação de prerrogativa de foro pelas Constituições Estaduais (ADI 2587/GO, rel. Min. Maurício Corrêa, Informativo 372)[v].

Quanto à atribuição para conduzir a investigação destas autoridades – que precede o processo e o julgamento – a Constituição nada dispôs.

Como se percebe, não há nenhuma norma na Constituição brasileira, ou mesmo no sistema infraconstitucional, que disponha acerca da atribuição para investigar pessoas que possuem prerrogativa de foro.

4.1. A casuística no Supremo Tribunal Federal

Passemos, pois, à análise de casos concretos de inquéritos em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal para apurar notícias de crimes atribuídos a detentores de prerrogativa de foro. No Inquérito nº. 1504/DF (DJ 28.06.99, p.25), em trâmite perante aquela corte, o Min. Celso de Mello, em despacho datado de 17.06.1999, reconheceu a possibilidade de inquérito policial e investigação pela Polícia Judiciária em desfavor de Senador Federal, conforme se lê a seguir (trechos):

“Imunidade parlamentar em sentido formal (CF, art. 53, § 1º, in fine). Garantia inaplicável ao Inquérito Policial. Precedente (STF) e doutrina. – O membro do Congresso Nacional – Deputado Federal ou Senador da República – pode ser submetido a investigação penal, mediante instauração de Inquérito Policial perante o Supremo Tribunal Federal, independentemente de prévia licença da respectiva Casa legislativa. A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido formal somente tem incidência em juízo, depois de oferecida a acusação penal… Com efeito, a garantia da imunidade parlamentar em sentido formal não impede a instauração de inquérito policial contra membro do Poder Legislativo. Desse modo, o parlamentar – independentemente de qualquer licença congressional – pode ser submetido a atos de investigação criminal promovidos pela Polícia Judiciária, desde que tais medidas pré-processuais de persecução penal sejam adotadas no âmbito de procedimento investigatório em curso perante órgão judiciário competente: o Supremo Tribunal Federal, no caso de qualquer dos investigados ser congressista (CF, art. 102, I, “b”)…”

A questão foi mais claramente analisada pela Primeira Turma daquele Tribunal em habeas corpus impetrado por Deputado Federal contra ato de Delegado de Polícia Federal da cidade de Maringá/PR que instaurara inquérito policial para investigá-lo:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. INQUÉRITO POLICIAL CONTRA DEPUTADO FEDERAL, INSTAURADO POR DELEGADO DE POLÍCIA. “HABEAS CORPUS” CONTRA ESSE ATO, COM ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO S.T.F. E DE AMEAÇA DE CONDUÇÃO COERCITIVA PARA O INTERROGATÓRIO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO S.T.F. PARA O JULGAMENTO DO “WRIT”. INDEFERIMENTO DESTE. 1. Para instauração de Inquérito Policial contra Parlamentar, não precisa a Autoridade Policial obter prévia autorização da Câmara dos Deputados, nem do Supremo Tribunal Federal. Precisa, isto sim, submeter o Inquérito, no prazo legal, ao Supremo Tribunal Federal, pois é perante este que eventual ação penal nele embasada poderá ser processada e julgada. E, no caso, foi o que fez, após certas providências referidas nas informações. Tanto que os autos do Inquérito já se encontram em tramitação perante esta Corte, com vista à Procuradoria Geral da República, para requerer o que lhe parecer de direito. 2. Por outro lado, o Parlamentar pode ser convidado a comparecer para o interrogatório no Inquérito Policial (podendo ajustar, com a autoridade, dia, local e hora, para tal fim – art. 221 do Código de Processo Penal), mas, se não comparecer, sua atitude é de ser interpretada como preferindo calar-se. Obviamente, nesse caso, não pode ser conduzido coercitivamente por ordem da autoridade policial, o que, na hipótese, até foi reconhecido por esta, quando, nas informações, expressamente descartou essa possibilidade. 3. Sendo assim, nem mesmo está demonstrada qualquer ameaça, a esse respeito, de sorte que, no ponto, nem pode a impetração ser considerada como preventiva. 4. Enfim, não está caracterizado constrangimento ilegal contra o paciente, por parte da autoridade apontada como coatora. 5. “H.C.” indeferido, ficando, cassada a medida liminar, pois o Inquérito Policial, se houver necessidade de novas diligências, deve prosseguir na mesma Delegacia da Polícia Federal em Maringá-PR, sob controle jurisdicional direto do Supremo Tribunal Federal”. (HC 80592/PR, Min. Sydney Sanches, julgado em 03/04/2001, Primeira Turma, DJ 22.06.2001, p. 23).

A Segunda Turma adotou o mesmo entendimento, fazendo menção ao sistema acusatório:

I. STF: competência originária: ´habeas corpus´ contra decisão individual de Ministro de Tribunal superior, não obstante susceptível de agravo. II. Foro por prerrogativa de função: inquérito policial. 1. A competência penal originária por prerrogativa não desloca por si só para o Tribunal respectivo as funções de polícia judiciária. 2. A remessa do inquérito policial em curso ao Tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz deste “autoridade investigadora”, mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao Juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações. III. Ministério Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1) a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando formulado pelo Procurador-Geral ou por Subprocurador-Geral a quem delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o Juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido (HC 82507/SE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2002, pg 0092).

E posteriormente:

“Competência. Parlamentar. Senador. Inquérito Policial. Imputação de crime por indiciado. Intimação para comparecer como testemunha. Convocação com caráter de ato de investigação. Inquérito já remetido a juízo. Competência do STF. Compete ao Supremo Tribunal Federal supervisionar inquérito policial em que Senador tenha sido intimado para esclarecer imputação de crime que lhe fez indiciado.” (Rcl 2349/TO, rel. Min. Carlos Velloso, rel. p/Acórdão Min. Cezar Peluso, julg. 10.03.2004, DJ 05.08.2005, p. 007, Ement. Vol. 2199-01 p. 0074).

Mais recentemente, a Min. Ellen Gracie recusou pedido do Procurador-Geral da República de instauração de inquérito a ser conduzido diretamente pelo Supremo Tribunal Federal:

1. O Ministério Público Federal promoveu diligências junto à Receita Federal, à Controladoria-Geral da União e autoridades americanas (f. 4), e obteve documentação (f. 07/21) que noticia ter um Deputado Federal remetido ao exterior, através de Contas CCC-5, no período de 1999/2002, a vultosa importância de cento e noventa e sete milhões, novecentos e um mil, duzentos e cinqüenta e um reais e oitenta centavos. O expressivo numerário, segundo o Ministério Público Federal, precisa ser investigado no tocante à sua origem e regularidade. Principalmente é preciso saber se a vultosa importância foi declarada à Receita Federal nas declarações de imposto de renda. A documentação obtida pelo Ministério Público Federal deu origem a procedimento administrativo que foi autuado na Procuradoria-Geral da República. E com base nesse procedimento, o Procurador-Geral da República requereu, na petição de f. 02/03, o seguinte: “Ante o exposto, requer o Ministério Público a autuação deste procedimento como inquérito penal originário, com o indiciamento do Deputado Federal RONALDO CEZAR COELHO, pelo cometimento, em tese, de crime de sonegação fiscal. 6. Solicita, ainda, que seja realizada a quebra do sigilo fiscal do ora indiciado, referente aos anos-base de 1999 a 2002.” (f. 3). 2. Entre as funções institucionais que a Constituição Federal outorgou ao Ministério Público, está a de requisitar a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). Essa requisição independe de prévia autorização ou permissão jurisdicional. Basta o Ministério Público Federal requisitar, diretamente, aos órgãos policiais competentes. Mas não a esta Corte Suprema. Por ela podem tramitar, entre outras demandas, ação penal contra os membros da Câmara dos Deputados e Senado. Mas não inquéritos policiais.  Esses tramitam perante os órgãos da Polícia Federal. Eventuais diligências, requeridas no contexto de uma investigação contra membros do Congresso Nacional, podem e devem, sim, ser requeridas perante esta Corte, que é o Juiz natural dos parlamentares federais, como é o caso da quebra do sigilo fiscal. Mas o inquérito tramita perante aqueles órgãos policiais e não perante o Supremo Tribunal Federal. Não parece razoável admitir que um Ministro do Supremo Tribunal Federal conduza, perante a Corte, um inquérito policial que poderá se transformar em ação penal, de sua relatoria. Não há confundir investigação, de natureza penal, quando envolvido um parlamentar, com aquela que envolve um membro do Poder Judiciário. No caso deste último, havendo indícios da prática de crime, os autos serão remetidos ao Tribunal ou Órgão Especial competente, a fim de que se prossiga a investigação. É o que determina o art. 33, § único da LOMAN. Mas quando se trata de parlamentar federal, a investigação prossegue perante a autoridade policial federal. Apenas a ação penal é que tramita no Supremo Tribunal Federal. Disso resulta que não pode ser atendido o pedido de instauração de inquérito policial originário perante esta Corte. E, por via de conseqüência, a solicitação de indiciamento do parlamentar, ato privativo da autoridade policial. Resta a quebra do sigilo fiscal. Mas essa quebra deverá ser requerida no âmbito do inquérito policial que o Ministério Público Federal pretende seja instaurado. Nesse inquérito, disciplinado no CPP, poderá o parlamentar justificar a regularidade da remessa do numerário, ou até mesmo impugnar a idoneidade da documentação apresentada. De qualquer sorte, não há, ainda, qualquer comprovação de que o parlamentar tenha se recusado a apresentar suas declarações do imposto de renda. 3. Diante do exposto, determino sejam os autos devolvidos à Procuradoria-Geral da República para as providências que entender cabíveis.(Pet 3248/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Julg. 28.10.2004, DJ 23.11.2004, p. 41).

O Superior Tribunal de Justiça acompanhou o Supremo Tribunal:
“PROCESSUAL PENAL – NOTÍCIA CRIME – INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL – INADMISSIBILIDADE – CPP, ART. 5º, II – PRECEDENTE DO STF (AGPET 2805-DF).- Consoante recente entendimento esposado pelo STF, não é admissível o oferecimento de notícia-crime à autoridade judicial visando à instauração de inquérito policial.- O art. 5º, II, do CPP confere ao Ministério Público o poder de requisitar diretamente ao delegado de polícia a instauração de inquérito policial com o fim de apurar supostos delitos de ação penal pública, ainda que se trate de crime atribuído à autoridade pública com foro privilegiado por prerrogativa de função.- Não existe diploma legal que condicione a expedição do ofício requisitório pelo Ministério Público à prévia autorização do Tribunal competente para julgar a autoridade a ser investigada.- É vedado, no direito brasileiro, o anonimato (art. 5º, IV, da CF/88). Agravo regimental improvido” (AgRg na NC 317/PE, Agravo Regimental na Notícia-Crime 2003/0071820-2, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Corte Especial, DJ 23.05.2005, p.118).

Em sentido contrário, porém, o Ministro Marco Aurélio atendeu pedido similar do Procurador-Geral da República, instaurando inquérito para apurar suposto crime cometido pelo presidente do Banco do Central (Inquérito nº. 2206/DF), e realizando diretamente diligências investigatórias requeridas pela Procuradoria-Geral da República (Despacho de 07.08.2005, DJ de 16.08.2005, p. 008). O curioso neste caso é que, logo após o surgimento das primeiras notícias de crime supostamente praticado pela citada autoridade, foi editada a Medida Provisória nº. 207, de 13.08.2004, que lhe deu status de Ministro e lhe permitiu ter o Supremo Tribunal Federal como juízo natural nas causas penais. A Medida Provisória – que ficou conhecida na época como “blindagem” – foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente (ADI nº 3.289-5/DF).

Interessante notar, também, que o referido inquérito tramita tendo todos os despachos do relator publicados, pela Internet inclusive[vi], tal qual o processo judicial, não assegurando o sigilo e tampouco preservando a imagem de investigados, conforme a sistemática do Código de Processo Penal, além de ser objeto de incidentes e atos processuais não existentes nos inquéritos policiais, como agravo regimental, votos e pedidos de vista dos demais Ministros – tornando tais investigações mais formais e menos céleres.

5. Conclusão

Parte da doutrina, pouco habituada a investigações desta natureza, tem defendido que a investigação pré-processual de pessoas detentoras de foro privativo por prerrogativa de função deva ser conduzida pelos magistrados que oficiem perante os Tribunais competentes para processá-los criminalmente.

A ausência de normas constitucionais e infraconstitucionais (exceção feita à Lei Orgânica da Magistratura Nacional e às Leis Orgânicas do Ministério Público) acerca da investigação de autoridades que possuam prerrogativa de foro nos leva a concluir que a mesma deva ser conduzida segundo a regra geral, ou seja, pelas autoridades policiais. Em tais casos, cabe apenas observar que o inquérito deve ser remetido no prazo legal ao Tribunal com competência para julgar o investigado, adotando-se o mesmo procedimento nas representações para prática de atos sujeitos a reserva jurisdicional (medidas cautelares, quebra de sigilo, etc).

Também não há que se falar em autorização do Tribunal para a instauração do inquérito, pois não compete a ele a valoração da notícia do crime.

E nem há que se invocar a aplicação analógica da Lei Orgânica da Magistratura Nacional que dispõe que a investigação criminal de magistrados deva ser feita pelo Tribunal com competência para o processo. A referida norma legal objetiva apenas assegurar a independência do Poder Judiciário, de forma a evitar que o Poder Executivo, por meio do inquérito policial, utilize investigações criminais para pressionar magistrados. Prova disso, é que os membros do Ministério Público, detentores de garantias semelhantes às da magistratura, só podem ser investigados por sua própria instituição, excluindo-se, portanto, não apenas o Poder Executivo (polícia judiciária), como o próprio Poder Judiciário (Tribunal) com competência para processá-los e julgá-los.

Tampouco há que se invocar os regimentos internos dos nossos Tribunais. Com efeito, as normas regimentais mencionadas, embora se refiram a autoridades sujeitas a jurisdição daqueles Tribunais, fazem referência exclusivamente aos crimes cometidos nas dependências dos Tribunais. É o que se denota do parágrafo que acompanha tais normas, ao dispor que nos demais casos – isto é, nos casos de crimes cometidos em suas dependências por pessoas outras que não as autoridades mencionadas e portanto não sujeitas ao processo perante o Tribunal – o inquérito poderá ser conduzido por magistrado ou pela autoridade competente. As disposições regimentais buscaram, igualmente, preservar a independência do Poder Judiciário, tal qual as resoluções do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, já mencionadas.

Parece-nos, pois, que todas as normas infraconstitucionais citadas que atribuem poderes investigatórios a magistrados devam ser reinterpretadas sob a luz da nova Constituição. As hipóteses ainda existentes de investigações judiciais não resguardam sequer as garantias mínimas que o sistema dos Juizados de instrução possuem na Europa, entre elas, a de que no julgamento não haja participação da autoridade que realizou a investigação.

Ademais, eventuais receios da magistratura existentes quando da edição da Lei Complementar nº. 35/1979, bem como da origem das normas regimentais acerca da atribuição para investigação de crimes cometidos nas dependências de Tribunais, não se justificam diante das inovações da Constituição atual. Com efeito, não é mais possível à polícia judiciária a prática, sem ordem judicial, de um grande número de atos que antes a dispensavam: busca domiciliar, quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico, prisão para averiguação, etc. De tal maneira, a simples garantia de não indiciamento em inquérito policial e a sua necessária “supervisão” judicial e ministerial são suficientes para legitimá-lo como instrumento de investigação pré-processual de quaisquer crimes.

Nota-se que nossos Tribunais não são vocacionados para investigar, não por despreparo ou desinteresse dos nossos Juízes. O que se observa é que nenhum deles possui estrutura e pessoal especializado para a realização de investigações.

O livro Juízes no banco dos réus, escrito pelo jornalista Frederico Vasconcelos, relata mais de uma década de investigações de crimes atribuídos a magistrados federais de São Paulo, incluindo a mais famosa delas, a Operação Anaconda. Como se depreende daquela obra, algumas irregularidades cometidas por magistrados federais de São Paulo já eram de conhecimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região havia mais de uma década. O mais conhecido dos magistrados presos no curso da Operação já havia sido afastado de suas funções por  4 anos, na década de 90, em virtude das investigações realizadas pelo Tribunal, tendo retornado ao exercício da magistratura por decisão do Superior Tribunal de Justiça, pela falta de conclusão das investigações.

Somente anos depois, já no curso da Operação Anaconda, foi possível reunir provas contra o referido magistrado e outros de seus colegas. A história da Operação Anaconda retrata muito bem as dificuldades existentes em investigações conduzidas por Tribunais. Primeiramente por constituir uma exceção na realidade brasileira. Segundo, porque se demonstrou que, por falta de regulamentação, há diversas dúvidas acerca do procedimento a ser adotado nas investigações em curso nos Tribunais (por exemplo, o papel da polícia judiciária e do Ministério Público na fase pré-processual). Terceiro, porque talvez parte do êxito das investigações seja devido ao fato de que ela se iniciou nos moldes tradicionais, ou seja, pela polícia judiciária, sob supervisão de Juiz Federal de primeira instância e acompanhamento pelo Ministério Público, tendo como alvo inicial os integrantes da quadrilha que não possuíam prerrogativa de foro. A remessa ao TRF da 3ª Região só se deu quando já havia indícios robustos de crimes cometidos por magistrados.

A investigação criminal pré-processual exige um dinamismo e informalismo para os quais nossas cortes não estão preparadas. Com efeito, além das medidas tomadas em gabinetes, a investigação criminal exige agentes preparados para sair nas ruas, entrevistar pessoas, colher informações nos mais diversos bancos de dados, realizar vigilância e filmagens, atos estes que, muitas vezes, não são registrados nos autos e cuja realização não pode simplesmente ser determinada ao órgão policial através de cotas ou despachos do Juiz, por serem realizadas, às vezes, de forma imediata após a constatação de sua necessidade.

Ao permitir a realização de investigações criminais por seus Ministros – justamente em casos envolvendo grandes autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo – o Supremo Tribunal Federal coloca em xeque o sistema acusatório, único apto a resguardar a imparcialidade do Juiz. Uma eventual mudança no entendimento da Corte Suprema, justamente quando se noticia a intenção de Ministros que presidiram os dois mais importantes Tribunais do país de abandonar a magistratura para concorrer a cargos eletivos, mostrar-se-ia extremamente inoportuna, além de abrir espaço para questionamentos acerca da imparcialidade na condução de tais investigações.

Acrescente-se, ainda, que tais investigações nem mesmo podem ser comparadas às atividades do Juiz de instrução na Europa, considerando que naquele continente o julgamento não é realizado pelo próprio magistrado investigante, mas por outro juízo. No presente caso, nenhuma disposição legal ou regimental há que exclua o Ministro relator (investigante) do julgamento, muito pelo contrário (Lei nº. 8038/1990).


Referências bibliográficas

1. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2005;

2. GOMES, Rodrigo Carneiro. Atribuição policial – Tribunais não devem conduzir investigação criminal. São Paulo: Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2006. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/46577,1. Acesso em 23.jul.06;

3. JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 2003;

4. LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal, Volume 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004;

5. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume I. Campinas: Millennium, 2003;

6. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2004;

7. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005;

8. TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1988;

9. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2003.

10. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

11. VASCONCELOS, Frederico. Juízes no banco dos réus. São Paulo: Publifolha, 2005.

Notas:
[i] Interessante notar que o artigo 44 do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho quase repete o artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Deixa, porém, de citar em seu caput o trecho que menciona que a condução do inquérito por Ministro da corte se dará “se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”, já que, a rigor, nenhuma autoridade é processada originariamente naquele Tribunal. Curiosamente, o Regimento do Tribunal trabalhista repetiu o parágrafo único do artigo 43 do STF que trata justamente dos casos de crimes cometidos nas dependências do Tribunal por pessoas não detentoras da prerrogativa de foro!

[ii] De forma diversa, e com maior rigor técnico, o Tribunal Regional do Trabalho – 2º Região, de São Paulo, previu em seu regimento a requisição da autoridade policial para instauração de inquérito ou lavratura do auto de prisão em flagrante em casos de crimes cometidos em suas dependências, sem prejuízo da instauração de procedimento disciplinar nas hipóteses cabíveis (artigo 72).

[iii] Em 2000, na região de Outreau, França, iniciou-se uma investigação acerca de uma rede de pedofilia composta, supostamente, por uma mais de 15 moradores da região, incluindo um padre. Durante as investigações, conduzidas por um Juiz de instrução, o “grupo” foi encarcerado, assim permanecendo por alguns anos, no curso dos quais um dos investigados morreu. Em 2005, a grande maioria dos acusados foi inocentada. Diante da repercussão do caso, o Presidente Jacques Chirac desculpou-se em nome da República através de uma carta endereçada aos acusados. Pressionado pelos advogados de defesa, o Ministro da Justiça os recebeu pessoalmente e fez um pedido público de desculpas. O caso passou a ser considerado um dos maiores erros judiciários da história da França e ensejou a instauração de uma comissão parlamentar de inquérito para estudar as falhas do sistema penal francês. O ato mais aguardado da Comissão foi a audiência pública do Juiz de instrução do caso, Fabrice Burgaud, na presença dos acusados. Até fevereiro de 2006, a Comissão não havia encerrado seus trabalhos.

[iv] Comentando o referido julgado, Eugênio Pacelli de Oliveira, em Curso de Processo Penal, 5 ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del. Rey, 2005, p. 57, chega mesmo a pugnar para que o Supremo Tribunal reconheça a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional que conferem privatividade à própria magistratura para a investigação de crimes imputados a Juízes.

[v] Nesse julgado, o STF mudou o entendimento até então consagrado – inclusive quando do julgamento da cautelar no mesmo processo – de que as Constituições estaduais deveriam observar necessariamente o modelo federal na instituição de foros privativos, restringindo a prerrogativa a cargos como Secretários de Estado e Vereadores. Segundo a nova orientação, são constitucionais os dispositivos de Constituição estadual que instituam o foro por prerrogativa de função a procuradores do Estado, da Assembléia Legislativa e Defensores Públicos, muito embora os cargos análogos na órbita federal não gozem da mesma prerrogativa. O julgado, porém, entendeu ser inconstitucional a previsão de prerrogativa de foro para Delegados de Polícia.

[vi] O sítio da Internet do Supremo Tribunal Federal obviamente não fornece os dados fiscais e bancários do investigado (já denominado ali como “indiciado”), mas pode-se ler o nome de um número razoável de instituições financeiras a quem foram requisitadas informações, além de se mencionar petições do investigado e os crimes que estão sendo investigados.

Âmbito Jurídico

DELEGADOS.com.br
Revista da Defesa Social
Portal Nacional dos Delegados

Prerrogativa de foro no inquérito policial


Eduardo Pereira da Silva,

Resumo: Trata-se de estudo acerca da atribuição para investigação de crimes cometidos por pessoas detentoras de prerrogativa de foro. Parte da doutrina e da jurisprudência entende que tais investigações devem ser conduzidas pelos Tribunais com competência para processar e julgar as autoridades. Outra corrente, porém, defende que tais investigações devem ser feitas pela polícia judiciária por meio de inquérito policial a ser aforado, no prazo legal, perante o Tribunal competente. A partir da análise de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e à luz do sistema acusatório, o estudo acaba por discorrer acerca das investigações realizadas diretamente por magistrados em nosso país.

Palavras-chave: investigação, inquérito policial, inquérito judicial, falimentar, polícia judiciária, polícia legislativa, foro privilegiado, prerrogativa de função, Juiz de instrução, sistema acusatório.

Sumário: 1. Introdução – 2. O sistema processual penal brasileiro – 3. Investigações pré-processuais no ordenamento positivo; 3.1. Investigações conduzidas por magistrados no Brasil, 4. Prerrogativa de foro; 4.1. A casuística no Supremo Tribunal Federal; 5. Conclusão.

1. Introdução

O ano de 2005 foi farto em escândalos envolvendo grandes autoridades da República. A mídia de nosso país passou boa parte de seu tempo ocupada com a investigação de agentes públicos, destacando os trabalhos desenvolvidos pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário.

Chamam a atenção os equívocos cometidos pela imprensa acerca do papel de cada uma destas instituições ou órgãos nas investigações em curso, o que é até certo ponto compreensível, dado que os jornalistas, em geral, são leigos em Direito. A esse respeito, porém, há uma relevante questão não resolvida nem mesmo nos meios jurídicos, qual seja, o papel dos Tribunais nas investigações criminais em desfavor de detentores de prerrogativa de foro. Colocando a questão sob uma outra ótica: de quem seria a atribuição de investigar agentes políticos que devam ser julgados criminalmente perante Tribunais? Dos próprios Tribunais?

2. O sistema processual penal brasileiro

A doutrina brasileira distingue três tipos de sistema processual penal: o acusatório, o inquisitivo e o misto.

O processo acusatório se caracteriza por ser público, possuir contraditório, oportunizar a ampla defesa, e, primordialmente, por distribuir as funções de acusar, defender e julgar a órgãos distintos. O sistema inquisitivo, por sua vez, é sigiloso, não contraditório e reúne na mesma pessoa ou órgão as funções de acusar, defender e julgar. Já o sistema misto possui uma fase inicial preliminar inquisitorial e uma segunda fase acusatória.

O nosso país adota o sistema acusatório. As funções de acusar, defender e julgar são distribuídas. A acusação é, em regra, atribuição do Ministério Público. Ao acusado pessoalmente e a seu defensor, necessariamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, cabem a defesa. A função de julgar cabe ao Poder Judiciário.

Parte da doutrina entende ser misto o nosso sistema, por ter uma fase inquisitorial – a investigação pré-processual – e uma segunda fase com todas as características do sistema acusatório – o processo propriamente dito. A essa posição tem-se objetado que o processo brasileiro inicia-se com a acusação oferecida pelo Ministério Público, não havendo razão para levar em conta a fase pré-processual (inquérito policial) na classificação de nosso sistema.

Há um consenso em nosso país de que o sistema acusatório é o único apto a garantir a imparcialidade do julgador, uma vez que o coloca a salvo de um comprometimento psicológico prévio decorrente do exercício  da função de defesa ou de acusação. É ele, sem dúvida, o único sistema compatível com as garantias individuais previstas na atual Constituição (art. 5º., incisos LIII, LIV, LV, LVI, LVI, LXI, LXII, LXV, LXVIII).

O Supremo Tribunal Federal, como veremos adiante, já reconheceu expressamente a inconstitucionalidade de determinados dispositivos legais por ofensa ao sistema acusatório.

Não se pode ignorar, porém, que a investigação pré-processual, tendo como destinatário o órgão acusador, também deve ser desempenhada por órgão diverso ao do julgamento, sob pena de ofensa ao sistema acusatório. No Brasil, tradicionalmente, a investigação pré-processual é atribuída às polícias judiciárias (Polícia Civil e Polícia Federal). Aliás, foi a preocupação em assegurar a imparcialidade do Juiz que inspirou  o artigo 252, inciso, II, do Código de Processo Penal, que prevê o impedimento do Juiz de atuar em processos em que tenha atuado anteriormente não só como defensor e órgão do Ministério Público (acusação), mas também como autoridade policial (investigação pré-processual).

Em contrapartida, o mesmo Código previu a possibilidade de o Juiz iniciar o processo que tenha contravenções penais como objeto (artigos 26 e 531). Os dispositivos mencionados não foram recepcionados pela atual Constituição, como já reconheceram nossos Tribunais superiores, em virtude de incompatibilidade com o artigo 129, inciso I, da Constituição, que atribui ao Ministério Público, privativamente, a promoção da ação penal (STF, RHC 68.314/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJU 15.03.1991, p. 2648; STJ, RHC 2.363-0/DF, rel. Min. Jesus Costa Lima, RSTJ, 7/245).

3. Investigações pré-processuais no ordenamento positivo

No sistema constitucional brasileiro, a investigação de crimes é, em regra, atribuída à polícia judiciária (Polícia Federal e Polícia Civil). É o que se infere do art. 144, § 1º, inciso IV, e § 4º. Ocorre que a própria Constituição concede a outros órgãos ou instituições, às vezes de forma implícita, a atribuição – ora exclusiva, ora concorrente – para investigar crimes.

De tal maneira, os crimes militares devem ser investigados de forma exclusiva por autoridades militares – Constituição Federal, art. 144, § 4º, parte final, a contrario sensu. Para tanto, instituiu-se o inquérito penal militar (Decreto-lei nº. 1002/1969, Código de Processo Penal Militar). A Constituição abriga, também, a possibilidade de investigações conduzidas pelo Poder Legislativo, através das chamadas Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 58, § 3º).

Houve previsão, ainda, da possibilidade de o Poder Legislativo, federal e estadual, instituir suas polícias (arts. 27, § 3º, 51, inciso V, art. 52, inciso XIII). Embora nos pareça certo que as atividades de tais órgãos não abranjam a investigação de crimes, frente à clara redação do art. art. 144, § 1º, inciso IV, e § 4º, foram criadas no âmbito de cada uma das casas do Congresso Nacional as chamadas “polícias legislativas” com atribuições para investigar crimes cometidos em suas dependências (Resolução nº. 59/2003 do Senado Federal e Resolução nº. 018/2003 da Câmara dos Deputados).  Em regime constitucional anterior, o Supremo Tribunal Federal consolidara o entendimento segundo o qual “o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas dependências, compreende, consoante o Regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito” (Súmula 397).

De maneira muito semelhante às disposições regimentais do Poder Legislativo, o atual Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal prevê em seu artigo 43 que “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”. E o § 1º do mesmo dispositivo, ao tratar de crimes cometidos nas dependências do Tribunal por pessoa que não possui a prerrogativa de foro, dispõe que “nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente”. O Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e até mesmo o Tribunal Superior do Trabalho adotaram disposições regimentais semelhantes.

Em nível infraconstitucional, há previsão na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº. 35/1979, artigo 33, parágrafo único) de que a investigação de crimes praticados por magistrados seja feita pelo Tribunal competente para processá-lo. Já as leis que disciplinam as atividades do Ministério Público dispõem que a investigação de infrações penais atribuídas aos procuradores seja feita por membro do próprio Ministério Público (Lei Complementar nº. 75/1993, artigo 18, parágrafo único, e Lei nº. 8.625/1993, artigo 41, parágrafo único).

Até 2005, havia, também, a possibilidade de condução, por magistrado, de inquérito para apuração de crime falimentar (artigos 103 e seguintes do Decreto-lei nº. 7661/1945). O inquérito judicial era presidido pelo mesmo magistrado que conduzia o processo falimentar propriamente dito.

3.1. Investigações conduzidas por magistrados no Brasil

Como vimos, há no país normas infraconstitucionais que dispõem sobre investigações pré-processuais conduzidas por magistrados nos casos de crimes cometidos por Juízes e de crimes cometidos nas dependências das sedes de Tribunais.

As normas regimentais que tratam da investigação de crimes cometidos nas dependências de Tribunais, a exemplo das normas análogas relativas a crimes cometidos na sede do Poder Legislativo, objetivavam impedir que tais poderes tivessem suas funções – e reflexamente a sua própria independência – embaraçadas por eventuais excessos da polícia judiciária praticados no interesse do Poder Executivo, sobretudo quando o órgão policial detinha poderes para realização de atos que hoje, necessariamente, exigiriam autorização judicial.

É interessante destacar, contudo, que tais normas deferem a magistrados de Tribunais poderes para investigar crimes que, a rigor, não devam ser julgados originariamente por Tribunais, como se infere do § 1º do art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e dos dispositivos análogos dos regimentos dos demais Tribunais citados.

Ressalte-se que tais normas não se referem a inquérito administrativo que objetiva apurar transgressão disciplinar de servidor do órgão. Os dispositivos regimentais dos Tribunais mencionam claramente a investigação de infração à lei penal. Tampouco pode-se falar que tais normas regulamentam a investigação penal de “pessoas sujeitas à jurisdição do Tribunal” (leia-se, detentoras da prerrogativa de foro), já que o parágrafo que costuma acompanhar o caput de tais dispositivos prevêem a atribuição de membros da corte para a realização da investigação nos demais casos (isto é, quando não envolver autoridades com prerrogativa de foro).

Até mesmo o Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho, que não possui competência para julgar processos em matéria penal, previu a instauração de inquérito por seu Presidente “quando caracterizada infração a lei penal na sede ou nas dependências do Tribunal” (artigo 36, inciso XIV).[i] [ii]

É indene de dúvidas o fato de que a atribuição do Tribunal para investigar em tais casos não teria o condão de atrair sua competência para o processo e julgamento do caso, por não haver previsão constitucional para tanto.

Aceitada a vigência de tais normas, haveria assim a possibilidade de Ministro do Supremo Tribunal Federal investigar crimes que só seriam julgados por aquela corte na via extraordinária. E até mesmo de Desembargador do Tribunal Regional Federal investigar crimes cometidos em suas dependências cujo processo deva ser julgado por um Juiz de Direito (não sendo o caso de crime que afete interesse da União).

Também teríamos que admitir um Ministro de Corte Superior ter que representar a um Juiz de primeira instância pela prática de ato sujeito a reserva jurisdicional, já que a sua atribuição para investigar jamais poderia se converter em competência para julgar e decretar medidas cautelares.

Imaginemos, assim, o recebimento de propina por funcionário do quadro administrativo do Tribunal Superior do Trabalho, nas dependências deste. No curso da investigação, a ser conduzida por um Ministro nos termos do regimento interno, pode se fazer necessária a quebra do sigilo bancário e telefônico do autor do crime. Para tanto, o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho teria que oferecer representação perante Juiz Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, competente para processar e julgar o funcionário? Ou estaria ele autorizado a afastar diretamente os sigilos?

O mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao Superior Tribunal de Justiça. Tendo a investigação sido conduzida por um membro da corte, estaria ele impedido de atuar no caso, quando o processo chegasse àquele Tribunal pela via recursal? Como veremos, pelo menos nos casos de competência originária do Tribunal, o Ministro que atua na fase pré-processual participa do julgamento do feito como relator.

Quanto às investigações presididas pelo Poder Judiciário para apuração de crimes cometidos por seus próprios membros, há algumas considerações importantes a fazer.

A condenação criminal de Juízes ainda é algo extremamente raro em nosso país. Para muitos, o corporativismo e a atribuição privativa do Judiciário para investigar seus membros seriam os responsáveis pela impunidade em casos de crimes com envolvimento das citadas autoridades. A criação do Conselho Nacional de Justiça por emenda constitucional foi um ajuste necessário para resguardar as garantias da magistratura (EC n.º 45/2004).

É necessário ponderar que as disposições legais que concedem ao Poder Judiciário a atribuição privativa de investigar seus membros objetivam concretizar o princípio da independência dos poderes, de forma a impedir, por exemplo, que o Poder Executivo utilize inquéritos policiais para pressionar magistrados. Sobre tais procedimentos trataremos adiante.

Não se pode deixar de mencionar o inquérito judicial para apuração de crime falimentar, recentemente extinto do nosso ordenamento. O referido inquérito era uma excepcionalidade. Procurava-se justificar sua existência primeiramente porque a caracterização de parte dos crimes falimentares estava a depender da decisão judicial que decretava a falência (uma parte da doutrina entendia que a decisão judicial era condição objetiva de punibilidade, outra parte entendia que se tratava de elementar do tipo). Segundo, porque os dados necessários à formação da convicção do Ministério Público acerca do crime poderiam ser obtidos a partir das peças ou informações contidas nos autos do próprio processo falimentar.

Mas o dado mais importante para nós, na sistemática da apuração judicial de crimes falimentares do Decreto-lei nº. 7.661/1945, era que a competência do magistrado do processo falimentar restringia-se à investigação do crime e ao recebimento da denúncia. Após, os autos deveriam ser remetidos ao juízo criminal. De tal maneira, o magistrado que investigava não julgava, aproximando a referida investigação daquelas conduzidas pelos “Juízes de instrução” em certos países da Europa.

Registre-se que a Lei nº. 11.101/05 – Nova Lei de Falências – extinguiu o inquérito judicial falimentar, deixando tais crimes de ser investigados por magistrados do juízo falimentar. Agora, conforme a regra geral, cabe à polícia judiciária a investigação do crime falimentar, devendo o Ministério Público oferecer a denúncia diretamente ao juízo criminal.

No direito europeu continental, é muito conhecida a figura do Juiz de instrução. Trata-se de magistrado que conduz investigações criminais auxiliado pela polícia judiciária e pelo Ministério Público. Após a conclusão da investigação, o caso é enviado a outro juízo para julgamento. Naquele continente, o papel do Juiz de instrução tem sido cada vez mais combatido. Na França, recentemente a figura do Juiz de instrução se tornou o pivô de uma grande discussão nacional iniciada após a conclusão do rumoroso caso Outreau[iii] e cujos efeitos na legislação daquele país ainda estão por vir.

O Supremo Tribunal já se debruçou sobre a constitucionalidade de investigações realizadas diretamente por magistrados. Na ADI 1570, Rel. Min. Maurício Correa, julgamento em 12.02.2004, a Corte Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade das disposições contidas na Lei nº. 9.034/1995 que atribuem funções investigatórias aos Juízes:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. “JUIZ DE INSTRUÇÃO”. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2º; e 144, § 1º, I e IV, e § 4º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.[iv]

Em seu voto, o Min. Maurício Corrêa discorreu sobre a figura do Juiz de instrução e o sistema acusatório:

“10. O dispositivo em questão parece ter criado a figura de Juiz de instrução, que nunca existiu na legislação brasileira, tendo-se notícia de que em alguns países da Europa esse modelo obsoleto tende a extinguir-se. Não se trata, como sustentam as informações do Ministério da Justiça submetidas ao Advogado-Geral da União (fl.104), de simples participação do Juiz na coleta de prova, tal como ocorre na inspeção judicial (CPC, artigos 440 e 443). Nessa última hipótese, as partes têm direito de assistir à inspeção, prestando esclarecimentos que reputem de interesse para a causa (CPC, artigo 442, parágrafo único). Já no caso em exame, as partes têm acesso somente ao auto de diligência, já formado sem sua interferência.” E mais à frente, “em verdade, a legislação atribuiu ao Juiz as funções de investigador e inquisidor, atribuições essas conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigos 129, I e VIII e § 2 e 144, § 1 , I e IV e § 4). Tal figura revela-se incompatível com o sistema acusatório atualmente em vigor, que veda atuação de ofício do órgão julgador”.

Apenas ressalve-se que, na sistemática instituída pela Lei nº. 9.034/1995, o Juiz responsável pelas diligências investigatórias seria o mesmo com competência para julgamento do processo, o que não ocorre, em geral, nos países europeus que ainda adotam o juízo de instrução.

Ainda sob a alegação de incompatibilidade com o sistema acusatório, o Supremo Tribunal Federal entendeu não ser possível ao Juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido pelo Ministério Público (HC 82507/SE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2002, pg 0092).

Todavia, até o momento, aquele Tribunal não pronunciou a inconstitucionalidade das normas legais e regimentais que deferem a magistrados a atribuição para investigação de crimes.

4. Prerrogativa de foro

A Constituição Federal de 1988 determina que uma série de autoridades deva ser processada e julgada criminalmente perante Tribunais, excepcionando a regra geral segundo a qual o processo deve se iniciar perante Juízes singulares (primeira instância).

Esta regra é comumente designada de prerrogativa de foro, foro privilegiado por prerrogativa de função ou foro privativo. A regra teria sido incluída no texto constitucional em virtude das implicações que processos desta natureza possam ter. Assim, a prerrogativa de foro determina que certas autoridades públicas só podem ser processadas e julgadas perante órgãos colegiados (Tribunais), geralmente compostos de magistrados mais experientes. Não desconsideremos, entretanto, a opinião de parcela da população brasileira para quem o “privilégio” em questão contribuiria para retardar os processos criminais e impedir a efetiva punição de crimes cometidos por agentes públicos.

A nossa atual Constituição Federal concede o foro por prerrogativa de função aos chefes do Poder Executivo, membros do Poder Legislativo federal e estadual, do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, bem como a Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas e chefes de missão diplomática de caráter permanente.

Além desta extensa relação de autoridades, o Supremo Tribunal Federal atualmente reconhece a possibilidade de criação de prerrogativa de foro pelas Constituições Estaduais (ADI 2587/GO, rel. Min. Maurício Corrêa, Informativo 372)[v].

Quanto à atribuição para conduzir a investigação destas autoridades – que precede o processo e o julgamento – a Constituição nada dispôs.

Como se percebe, não há nenhuma norma na Constituição brasileira, ou mesmo no sistema infraconstitucional, que disponha acerca da atribuição para investigar pessoas que possuem prerrogativa de foro.

4.1. A casuística no Supremo Tribunal Federal

Passemos, pois, à análise de casos concretos de inquéritos em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal para apurar notícias de crimes atribuídos a detentores de prerrogativa de foro. No Inquérito nº. 1504/DF (DJ 28.06.99, p.25), em trâmite perante aquela corte, o Min. Celso de Mello, em despacho datado de 17.06.1999, reconheceu a possibilidade de inquérito policial e investigação pela Polícia Judiciária em desfavor de Senador Federal, conforme se lê a seguir (trechos):

“Imunidade parlamentar em sentido formal (CF, art. 53, § 1º, in fine). Garantia inaplicável ao Inquérito Policial. Precedente (STF) e doutrina. – O membro do Congresso Nacional – Deputado Federal ou Senador da República – pode ser submetido a investigação penal, mediante instauração de Inquérito Policial perante o Supremo Tribunal Federal, independentemente de prévia licença da respectiva Casa legislativa. A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido formal somente tem incidência em juízo, depois de oferecida a acusação penal… Com efeito, a garantia da imunidade parlamentar em sentido formal não impede a instauração de inquérito policial contra membro do Poder Legislativo. Desse modo, o parlamentar – independentemente de qualquer licença congressional – pode ser submetido a atos de investigação criminal promovidos pela Polícia Judiciária, desde que tais medidas pré-processuais de persecução penal sejam adotadas no âmbito de procedimento investigatório em curso perante órgão judiciário competente: o Supremo Tribunal Federal, no caso de qualquer dos investigados ser congressista (CF, art. 102, I, “b”)…”

A questão foi mais claramente analisada pela Primeira Turma daquele Tribunal em habeas corpus impetrado por Deputado Federal contra ato de Delegado de Polícia Federal da cidade de Maringá/PR que instaurara inquérito policial para investigá-lo:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. INQUÉRITO POLICIAL CONTRA DEPUTADO FEDERAL, INSTAURADO POR DELEGADO DE POLÍCIA. “HABEAS CORPUS” CONTRA ESSE ATO, COM ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO S.T.F. E DE AMEAÇA DE CONDUÇÃO COERCITIVA PARA O INTERROGATÓRIO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO S.T.F. PARA O JULGAMENTO DO “WRIT”. INDEFERIMENTO DESTE. 1. Para instauração de Inquérito Policial contra Parlamentar, não precisa a Autoridade Policial obter prévia autorização da Câmara dos Deputados, nem do Supremo Tribunal Federal. Precisa, isto sim, submeter o Inquérito, no prazo legal, ao Supremo Tribunal Federal, pois é perante este que eventual ação penal nele embasada poderá ser processada e julgada. E, no caso, foi o que fez, após certas providências referidas nas informações. Tanto que os autos do Inquérito já se encontram em tramitação perante esta Corte, com vista à Procuradoria Geral da República, para requerer o que lhe parecer de direito. 2. Por outro lado, o Parlamentar pode ser convidado a comparecer para o interrogatório no Inquérito Policial (podendo ajustar, com a autoridade, dia, local e hora, para tal fim – art. 221 do Código de Processo Penal), mas, se não comparecer, sua atitude é de ser interpretada como preferindo calar-se. Obviamente, nesse caso, não pode ser conduzido coercitivamente por ordem da autoridade policial, o que, na hipótese, até foi reconhecido por esta, quando, nas informações, expressamente descartou essa possibilidade. 3. Sendo assim, nem mesmo está demonstrada qualquer ameaça, a esse respeito, de sorte que, no ponto, nem pode a impetração ser considerada como preventiva. 4. Enfim, não está caracterizado constrangimento ilegal contra o paciente, por parte da autoridade apontada como coatora. 5. “H.C.” indeferido, ficando, cassada a medida liminar, pois o Inquérito Policial, se houver necessidade de novas diligências, deve prosseguir na mesma Delegacia da Polícia Federal em Maringá-PR, sob controle jurisdicional direto do Supremo Tribunal Federal”. (HC 80592/PR, Min. Sydney Sanches, julgado em 03/04/2001, Primeira Turma, DJ 22.06.2001, p. 23).

A Segunda Turma adotou o mesmo entendimento, fazendo menção ao sistema acusatório:

I. STF: competência originária: ´habeas corpus´ contra decisão individual de Ministro de Tribunal superior, não obstante susceptível de agravo. II. Foro por prerrogativa de função: inquérito policial. 1. A competência penal originária por prerrogativa não desloca por si só para o Tribunal respectivo as funções de polícia judiciária. 2. A remessa do inquérito policial em curso ao Tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz deste “autoridade investigadora”, mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao Juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações. III. Ministério Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1) a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando formulado pelo Procurador-Geral ou por Subprocurador-Geral a quem delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o Juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido (HC 82507/SE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2002, pg 0092).

E posteriormente:

“Competência. Parlamentar. Senador. Inquérito Policial. Imputação de crime por indiciado. Intimação para comparecer como testemunha. Convocação com caráter de ato de investigação. Inquérito já remetido a juízo. Competência do STF. Compete ao Supremo Tribunal Federal supervisionar inquérito policial em que Senador tenha sido intimado para esclarecer imputação de crime que lhe fez indiciado.” (Rcl 2349/TO, rel. Min. Carlos Velloso, rel. p/Acórdão Min. Cezar Peluso, julg. 10.03.2004, DJ 05.08.2005, p. 007, Ement. Vol. 2199-01 p. 0074).

Mais recentemente, a Min. Ellen Gracie recusou pedido do Procurador-Geral da República de instauração de inquérito a ser conduzido diretamente pelo Supremo Tribunal Federal:

1. O Ministério Público Federal promoveu diligências junto à Receita Federal, à Controladoria-Geral da União e autoridades americanas (f. 4), e obteve documentação (f. 07/21) que noticia ter um Deputado Federal remetido ao exterior, através de Contas CCC-5, no período de 1999/2002, a vultosa importância de cento e noventa e sete milhões, novecentos e um mil, duzentos e cinqüenta e um reais e oitenta centavos. O expressivo numerário, segundo o Ministério Público Federal, precisa ser investigado no tocante à sua origem e regularidade. Principalmente é preciso saber se a vultosa importância foi declarada à Receita Federal nas declarações de imposto de renda. A documentação obtida pelo Ministério Público Federal deu origem a procedimento administrativo que foi autuado na Procuradoria-Geral da República. E com base nesse procedimento, o Procurador-Geral da República requereu, na petição de f. 02/03, o seguinte: “Ante o exposto, requer o Ministério Público a autuação deste procedimento como inquérito penal originário, com o indiciamento do Deputado Federal RONALDO CEZAR COELHO, pelo cometimento, em tese, de crime de sonegação fiscal. 6. Solicita, ainda, que seja realizada a quebra do sigilo fiscal do ora indiciado, referente aos anos-base de 1999 a 2002.” (f. 3). 2. Entre as funções institucionais que a Constituição Federal outorgou ao Ministério Público, está a de requisitar a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). Essa requisição independe de prévia autorização ou permissão jurisdicional. Basta o Ministério Público Federal requisitar, diretamente, aos órgãos policiais competentes. Mas não a esta Corte Suprema. Por ela podem tramitar, entre outras demandas, ação penal contra os membros da Câmara dos Deputados e Senado. Mas não inquéritos policiais.  Esses tramitam perante os órgãos da Polícia Federal. Eventuais diligências, requeridas no contexto de uma investigação contra membros do Congresso Nacional, podem e devem, sim, ser requeridas perante esta Corte, que é o Juiz natural dos parlamentares federais, como é o caso da quebra do sigilo fiscal. Mas o inquérito tramita perante aqueles órgãos policiais e não perante o Supremo Tribunal Federal. Não parece razoável admitir que um Ministro do Supremo Tribunal Federal conduza, perante a Corte, um inquérito policial que poderá se transformar em ação penal, de sua relatoria. Não há confundir investigação, de natureza penal, quando envolvido um parlamentar, com aquela que envolve um membro do Poder Judiciário. No caso deste último, havendo indícios da prática de crime, os autos serão remetidos ao Tribunal ou Órgão Especial competente, a fim de que se prossiga a investigação. É o que determina o art. 33, § único da LOMAN. Mas quando se trata de parlamentar federal, a investigação prossegue perante a autoridade policial federal. Apenas a ação penal é que tramita no Supremo Tribunal Federal. Disso resulta que não pode ser atendido o pedido de instauração de inquérito policial originário perante esta Corte. E, por via de conseqüência, a solicitação de indiciamento do parlamentar, ato privativo da autoridade policial. Resta a quebra do sigilo fiscal. Mas essa quebra deverá ser requerida no âmbito do inquérito policial que o Ministério Público Federal pretende seja instaurado. Nesse inquérito, disciplinado no CPP, poderá o parlamentar justificar a regularidade da remessa do numerário, ou até mesmo impugnar a idoneidade da documentação apresentada. De qualquer sorte, não há, ainda, qualquer comprovação de que o parlamentar tenha se recusado a apresentar suas declarações do imposto de renda. 3. Diante do exposto, determino sejam os autos devolvidos à Procuradoria-Geral da República para as providências que entender cabíveis.(Pet 3248/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Julg. 28.10.2004, DJ 23.11.2004, p. 41).

O Superior Tribunal de Justiça acompanhou o Supremo Tribunal:

“PROCESSUAL PENAL – NOTÍCIA CRIME – INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL – INADMISSIBILIDADE – CPP, ART. 5º, II – PRECEDENTE DO STF (AGPET 2805-DF).- Consoante recente entendimento esposado pelo STF, não é admissível o oferecimento de notícia-crime à autoridade judicial visando à instauração de inquérito policial.- O art. 5º, II, do CPP confere ao Ministério Público o poder de requisitar diretamente ao delegado de polícia a instauração de inquérito policial com o fim de apurar supostos delitos de ação penal pública, ainda que se trate de crime atribuído à autoridade pública com foro privilegiado por prerrogativa de função.- Não existe diploma legal que condicione a expedição do ofício requisitório pelo Ministério Público à prévia autorização do Tribunal competente para julgar a autoridade a ser investigada.- É vedado, no direito brasileiro, o anonimato (art. 5º, IV, da CF/88). Agravo regimental improvido” (AgRg na NC 317/PE, Agravo Regimental na Notícia-Crime 2003/0071820-2, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Corte Especial, DJ 23.05.2005, p.118).

Em sentido contrário, porém, o Ministro Marco Aurélio atendeu pedido similar do Procurador-Geral da República, instaurando inquérito para apurar suposto crime cometido pelo presidente do Banco do Central (Inquérito nº. 2206/DF), e realizando diretamente diligências investigatórias requeridas pela Procuradoria-Geral da República (Despacho de 07.08.2005, DJ de 16.08.2005, p. 008). O curioso neste caso é que, logo após o surgimento das primeiras notícias de crime supostamente praticado pela citada autoridade, foi editada a Medida Provisória nº. 207, de 13.08.2004, que lhe deu status de Ministro e lhe permitiu ter o Supremo Tribunal Federal como juízo natural nas causas penais. A Medida Provisória – que ficou conhecida na época como “blindagem” – foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente (ADI nº 3.289-5/DF).

Interessante notar, também, que o referido inquérito tramita tendo todos os despachos do relator publicados, pela Internet inclusive[vi], tal qual o processo judicial, não assegurando o sigilo e tampouco preservando a imagem de investigados, conforme a sistemática do Código de Processo Penal, além de ser objeto de incidentes e atos processuais não existentes nos inquéritos policiais, como agravo regimental, votos e pedidos de vista dos demais Ministros – tornando tais investigações mais formais e menos céleres.

5. Conclusão

Parte da doutrina, pouco habituada a investigações desta natureza, tem defendido que a investigação pré-processual de pessoas detentoras de foro privativo por prerrogativa de função deva ser conduzida pelos magistrados que oficiem perante os Tribunais competentes para processá-los criminalmente.

A ausência de normas constitucionais e infraconstitucionais (exceção feita à Lei Orgânica da Magistratura Nacional e às Leis Orgânicas do Ministério Público) acerca da investigação de autoridades que possuam prerrogativa de foro nos leva a concluir que a mesma deva ser conduzida segundo a regra geral, ou seja, pelas autoridades policiais. Em tais casos, cabe apenas observar que o inquérito deve ser remetido no prazo legal ao Tribunal com competência para julgar o investigado, adotando-se o mesmo procedimento nas representações para prática de atos sujeitos a reserva jurisdicional (medidas cautelares, quebra de sigilo, etc).

Também não há que se falar em autorização do Tribunal para a instauração do inquérito, pois não compete a ele a valoração da notícia do crime.

E nem há que se invocar a aplicação analógica da Lei Orgânica da Magistratura Nacional que dispõe que a investigação criminal de magistrados deva ser feita pelo Tribunal com competência para o processo. A referida norma legal objetiva apenas assegurar a independência do Poder Judiciário, de forma a evitar que o Poder Executivo, por meio do inquérito policial, utilize investigações criminais para pressionar magistrados. Prova disso, é que os membros do Ministério Público, detentores de garantias semelhantes às da magistratura, só podem ser investigados por sua própria instituição, excluindo-se, portanto, não apenas o Poder Executivo (polícia judiciária), como o próprio Poder Judiciário (Tribunal) com competência para processá-los e julgá-los.

Tampouco há que se invocar os regimentos internos dos nossos Tribunais. Com efeito, as normas regimentais mencionadas, embora se refiram a autoridades sujeitas a jurisdição daqueles Tribunais, fazem referência exclusivamente aos crimes cometidos nas dependências dos Tribunais. É o que se denota do parágrafo que acompanha tais normas, ao dispor que nos demais casos – isto é, nos casos de crimes cometidos em suas dependências por pessoas outras que não as autoridades mencionadas e portanto não sujeitas ao processo perante o Tribunal – o inquérito poderá ser conduzido por magistrado ou pela autoridade competente. As disposições regimentais buscaram, igualmente, preservar a independência do Poder Judiciário, tal qual as resoluções do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, já mencionadas.

Parece-nos, pois, que todas as normas infraconstitucionais citadas que atribuem poderes investigatórios a magistrados devam ser reinterpretadas sob a luz da nova Constituição. As hipóteses ainda existentes de investigações judiciais não resguardam sequer as garantias mínimas que o sistema dos Juizados de instrução possuem na Europa, entre elas, a de que no julgamento não haja participação da autoridade que realizou a investigação.

Ademais, eventuais receios da magistratura existentes quando da edição da Lei Complementar nº. 35/1979, bem como da origem das normas regimentais acerca da atribuição para investigação de crimes cometidos nas dependências de Tribunais, não se justificam diante das inovações da Constituição atual. Com efeito, não é mais possível à polícia judiciária a prática, sem ordem judicial, de um grande número de atos que antes a dispensavam: busca domiciliar, quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico, prisão para averiguação, etc. De tal maneira, a simples garantia de não indiciamento em inquérito policial e a sua necessária “supervisão” judicial e ministerial são suficientes para legitimá-lo como instrumento de investigação pré-processual de quaisquer crimes.

Nota-se que nossos Tribunais não são vocacionados para investigar, não por despreparo ou desinteresse dos nossos Juízes. O que se observa é que nenhum deles possui estrutura e pessoal especializado para a realização de investigações.

O livro Juízes no banco dos réus, escrito pelo jornalista Frederico Vasconcelos, relata mais de uma década de investigações de crimes atribuídos a magistrados federais de São Paulo, incluindo a mais famosa delas, a Operação Anaconda. Como se depreende daquela obra, algumas irregularidades cometidas por magistrados federais de São Paulo já eram de conhecimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região havia mais de uma década. O mais conhecido dos magistrados presos no curso da Operação já havia sido afastado de suas funções por  4 anos, na década de 90, em virtude das investigações realizadas pelo Tribunal, tendo retornado ao exercício da magistratura por decisão do Superior Tribunal de Justiça, pela falta de conclusão das investigações.

Somente anos depois, já no curso da Operação Anaconda, foi possível reunir provas contra o referido magistrado e outros de seus colegas. A história da Operação Anaconda retrata muito bem as dificuldades existentes em investigações conduzidas por Tribunais. Primeiramente por constituir uma exceção na realidade brasileira. Segundo, porque se demonstrou que, por falta de regulamentação, há diversas dúvidas acerca do procedimento a ser adotado nas investigações em curso nos Tribunais (por exemplo, o papel da polícia judiciária e do Ministério Público na fase pré-processual). Terceiro, porque talvez parte do êxito das investigações seja devido ao fato de que ela se iniciou nos moldes tradicionais, ou seja, pela polícia judiciária, sob supervisão de Juiz Federal de primeira instância e acompanhamento pelo Ministério Público, tendo como alvo inicial os integrantes da quadrilha que não possuíam prerrogativa de foro. A remessa ao TRF da 3ª Região só se deu quando já havia indícios robustos de crimes cometidos por magistrados.

A investigação criminal pré-processual exige um dinamismo e informalismo para os quais nossas cortes não estão preparadas. Com efeito, além das medidas tomadas em gabinetes, a investigação criminal exige agentes preparados para sair nas ruas, entrevistar pessoas, colher informações nos mais diversos bancos de dados, realizar vigilância e filmagens, atos estes que, muitas vezes, não são registrados nos autos e cuja realização não pode simplesmente ser determinada ao órgão policial através de cotas ou despachos do Juiz, por serem realizadas, às vezes, de forma imediata após a constatação de sua necessidade.

Ao permitir a realização de investigações criminais por seus Ministros – justamente em casos envolvendo grandes autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo – o Supremo Tribunal Federal coloca em xeque o sistema acusatório, único apto a resguardar a imparcialidade do Juiz. Uma eventual mudança no entendimento da Corte Suprema, justamente quando se noticia a intenção de Ministros que presidiram os dois mais importantes Tribunais do país de abandonar a magistratura para concorrer a cargos eletivos, mostrar-se-ia extremamente inoportuna, além de abrir espaço para questionamentos acerca da imparcialidade na condução de tais investigações.

Acrescente-se, ainda, que tais investigações nem mesmo podem ser comparadas às atividades do Juiz de instrução na Europa, considerando que naquele continente o julgamento não é realizado pelo próprio magistrado investigante, mas por outro juízo. No presente caso, nenhuma disposição legal ou regimental há que exclua o Ministro relator (investigante) do julgamento, muito pelo contrário (Lei nº. 8038/1990).

 

Referências bibliográficas

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2. GOMES, Rodrigo Carneiro. Atribuição policial – Tribunais não devem conduzir investigação criminal. São Paulo: Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2006. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/46577,1. Acesso em 23.jul.06;

3. JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 2003;

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5. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume I. Campinas: Millennium, 2003;

6. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2004;

7. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005;

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10. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

11. VASCONCELOS, Frederico. Juízes no banco dos réus. São Paulo: Publifolha, 2005.

Notas:

[i] Interessante notar que o artigo 44 do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho quase repete o artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Deixa, porém, de citar em seu caput o trecho que menciona que a condução do inquérito por Ministro da corte se dará “se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”, já que, a rigor, nenhuma autoridade é processada originariamente naquele Tribunal. Curiosamente, o Regimento do Tribunal trabalhista repetiu o parágrafo único do artigo 43 do STF que trata justamente dos casos de crimes cometidos nas dependências do Tribunal por pessoas não detentoras da prerrogativa de foro!

[ii] De forma diversa, e com maior rigor técnico, o Tribunal Regional do Trabalho – 2º Região, de São Paulo, previu em seu regimento a requisição da autoridade policial para instauração de inquérito ou lavratura do auto de prisão em flagrante em casos de crimes cometidos em suas dependências, sem prejuízo da instauração de procedimento disciplinar nas hipóteses cabíveis (artigo 72).

[iii] Em 2000, na região de Outreau, França, iniciou-se uma investigação acerca de uma rede de pedofilia composta, supostamente, por uma mais de 15 moradores da região, incluindo um padre. Durante as investigações, conduzidas por um Juiz de instrução, o “grupo” foi encarcerado, assim permanecendo por alguns anos, no curso dos quais um dos investigados morreu. Em 2005, a grande maioria dos acusados foi inocentada. Diante da repercussão do caso, o Presidente Jacques Chirac desculpou-se em nome da República através de uma carta endereçada aos acusados. Pressionado pelos advogados de defesa, o Ministro da Justiça os recebeu pessoalmente e fez um pedido público de desculpas. O caso passou a ser considerado um dos maiores erros judiciários da história da França e ensejou a instauração de uma comissão parlamentar de inquérito para estudar as falhas do sistema penal francês. O ato mais aguardado da Comissão foi a audiência pública do Juiz de instrução do caso, Fabrice Burgaud, na presença dos acusados. Até fevereiro de 2006, a Comissão não havia encerrado seus trabalhos.

[iv] Comentando o referido julgado, Eugênio Pacelli de Oliveira, em Curso de Processo Penal, 5 ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del. Rey, 2005, p. 57, chega mesmo a pugnar para que o Supremo Tribunal reconheça a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional que conferem privatividade à própria magistratura para a investigação de crimes imputados a Juízes.

[v] Nesse julgado, o STF mudou o entendimento até então consagrado – inclusive quando do julgamento da cautelar no mesmo processo – de que as Constituições estaduais deveriam observar necessariamente o modelo federal na instituição de foros privativos, restringindo a prerrogativa a cargos como Secretários de Estado e Vereadores. Segundo a nova orientação, são constitucionais os dispositivos de Constituição estadual que instituam o foro por prerrogativa de função a procuradores do Estado, da Assembléia Legislativa e Defensores Públicos, muito embora os cargos análogos na órbita federal não gozem da mesma prerrogativa. O julgado, porém, entendeu ser inconstitucional a previsão de prerrogativa de foro para Delegados de Polícia.

[vi] O sítio da Internet do Supremo Tribunal Federal obviamente não fornece os dados fiscais e bancários do investigado (já denominado ali como “indiciado”), mas pode-se ler o nome de um número razoável de instituições financeiras a quem foram requisitadas informações, além de se mencionar petições do investigado e os crimes que estão sendo investigados.

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