JURÍDICO
Foro por prerrogativa de função e o delegado de polícia
Tem sua baliza de sustentação diretamente na CF
Por Thiago Almeida Lacerda
JURÍDICO
1. INSTITUTO CONSTITUCIONAL DA PRERROGATIVA DE FORO
O instituto da prerrogativa de foro tem sua baliza de sustentação diretamente na Constituição Federal. Esta visando garantir a peculiar posição de alguns agentes do Estado que precisam realizar suas funções com o máximo de isenção possível, livre de quaisquer pressões externas, com alto grau de independência que reflete na certeza que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias, assim, justificou-se no próprio texto constitucional um tratamento diferenciado em relação ao juízo natural destes agentes do Estado.
A doutrina majoritária entende que não há violação do juiz natural, ou juízo natural, conforme podemos analisar nas lições de Gilmar Ferreira Mendes “Nestes termos, a instituição da prerrogativa de foro não se afigura atentatória ao princípio do juiz natral. Ao revés, a nosso ver, trata-se de providência absolutamente compatível com esse postulado”. (COELHO et al, 2009, p. 620)
Como esta norma emana diretamente da máxima do ordenamento jurídico não há que se falar em ferir o princípio do juiz natural e sim adequá-lo a uma realidade fática em que estas autoridades sofrem de maior vulnerabilidade pela exposição de seus atos tanto politicamente como socialmente.
Com a certeza de que a Constituição pode ser entendida como o conjunto de direitos e garantias fundamentais, pautados pelo princípio matriz da dignidade da pessoa humana, que visa traçar limites ao poder, estabelecendo normas de programas constitucionais e de organização de um Estado, se materializando na maioria das vezes através de um documento escrito que no plano normativo se faz em sua essência a Lei Maior de todo o ordenamento jurídico que se deu a legitimidade para a instituição da Prerrogativa de Foro para algumas autoridades públicas.
Neste prisma lembramos os ensinamentos de José Afonso da Silva:
A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado (SILVA, 2004, p.38)
4. JURISDIÇÃO
Todo magistrado, investido em sua função, possui jurisdição. Trata-se de instituto essencial e decisivo no direito processual com reflexos diretamente da Constituição. E assim temos que nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se não estiver em conformidade com a Lei Fundamental. Dessa forma, o poder do Estado de conferir a aplicação da lei ao caso concreto se funde diretamente no conceito de jurisdição.
Assim concluiu Denilson Feitoza:
O instituto essencial e decisivo do direito processual sempre foi e continua a ser a jurisdição. Como aspecto da soberania estatal, é o núcleo em torno do qual gravitam os demais institutos processuais, que podem ou não “existir”, seja a ação, o processo, as partes, as condições da ação ou os pressupostos processuais, mas, “existindo”, têm sua “entidade” estabelecida em razão da jurisdição. (FEITOZA, 2009, p.132)
Ressalta-se que do conceito de jurisdição emana a competência que é a capacidade de exercer a jurisdição dentro dos limites estabelecidos pela Constituição Federal e legislação ordinária. Fala-se então que a competência é a “medida de jurisdição”. No tocante as autoridades com prerrogativa de foro essa medida é traçada pelo próprio parâmetro constitucional que confere um tratamento diferenciado como necessidade de resguardar o interesse de ordem pública de maior relevância no processo.
5. COMPETÊNCIA PELA PRERROGATIVA DE FORO
A competência pela prerrogativa de foro é denominada também de “ratione personae” dentro do estudo do Direito Processual Penal. Isto porque este critério de fixação de competência remete justamente a posição com que esta pessoa que responde a um procedimento criminal detém na sociedade. Assim, importante destacar que esta concessão não ofende o princípio constitucional da isonomia, visto que não se estabelece a preferência em razão da pessoa, mas sim da função em que está investida. Dessa forma, estas autoridades que estão sujeitas a esta condição peculiar serão julgadas por um tribunal superior que parte de uma premissa de uma maior independência para que possam assim desempenhar suas funções livre de pressões e visando o melhor interesse público.
O jurista André Nicolitt traz a baila uma importante definição do que seria competência: “Em síntese, competência nada mais é do que a fixação dos limites do exercício da atividade jurisdicional por cada órgão do Poder Judiciário” (NICOLITT, 2009, p.168)
6. PRIVILÉGIO PESSOAL OU PRERROGATIVA DA FUNÇÃO?
De imediato salienta-se que não se trata de um privilégio para determinado cidadão, mas sim uma concessão feita pelo Poder Constituinte Originário, em regra, devido à relevância da função exercida.
Nestes termos colacionamos as lições de Fernando Capez:
“Alguns doutrinadores fazem distinção entre as expressões “foro privilegiado” (privilegio para determinadas pessoas) e “foro por prerrogativa de função” (foro especial fixado como garantia inerente ao exercício de uma função), entendendo que somente este último não viola o princípio da isonomia: “não se deve confundir foro pela prerrogativa de função com foro privilegiado. Aquele é homenagem a função; a competênia por prerrogativa de função não sugere foro privilegiado. O que a Constituição vedava e veda (implicitamente) é o foro para conde, barão ou duque, para Jafé, Café ou Mafé…” (Tourinho Filho apud Capez, 2008, p. 205)
Como não se trata de privilégio pessoal, mas de garantia do cargo, o Supremo Tribunal Federal, revogou em 1999 a súmula 394, que estabelecia que, “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Assim, somente aquele que estiver efetivamente no exercício do cargo público poderá ser submetido a este juízo de exceção determinado pela prerrogativa de sua função.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, em sua obra Constituição Federal Anotada traz um importante julgado do Supremo Tribunal Federal que expõe a situação descrita acima: “Uma vez implementada a aposentadoria do agente público, descabe cogitar de prerrogativa de foro (STF, 1.ª T. HC 89677-ES, rel. Min. Marco Aurélio, j. 11.9.2007, v.u., DJU 23.11.2007, p.80) (NERY JUNIOR e ANDRADE NERY, 2009, p. 576).”
7. FUNDAMENTOS DA PRERROGATIVA DE FORO
Cabe de início ressaltar que grande parte da sociedade é contra a manutenção do foro por prerrogativa de função. Inclusive, temos adeptos no Supremo Tribunal Federal, como o Ministro Carlos Velloso, que considera incompatível numa República considerar o foro por prerrogativa de função ou foro “privilegiado” como ele denomina. O Ministro alega que só temos esta condição por sermos oriundos do Império. Sua posição fica evidente no seu voto proferido na ADI 2587-2-GO quando afirma: “A república não admite juiz de uns ou de alguns, senão o juiz natural, que julga a todos. Costumo mencionar que os Estados Unidos da América por não ter sido Império, não conhecem o foro privilegiado. É certo que na Constituição norte-americana existe um preceito estabelecendo foro por prerrogativa de função, para os chefes de missão diplomática, somente isto, o que se justifica aliás”. (ADI 2587, 2004, p. 134).
Nos debates em torno de seu voto foram citados os exemplos do então presidente Bill Clinton submetendo-se a um “grand jury”, a um juiz de primeira instância e do presidente Nixon, submetendo-se ao Juiz Federal John Sirica.
Nesta concepção que alguns juristas entendem que o foro por prerrogativa de função possui um caráter aristocrático em que certas pessoas são julgadas em consonância com a regra global, juízes de 1º grau, e outras só porque exercem uma função pública, são julgadas por um tribunal colegiado, fazendo uma crítica a este sistema que amplia de uma forma demasiada este juízo excepcional.
A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) divulgou pesquisa realizada no ano de 2006, pela Opinião Consultoria, onde foi constatado que 79,8 % dos consultados são contra o foro por prerrogativa de função. A Associação ainda, categoricamente ressaltou que é contra a manutenção deste instituto que colabora com a impunidade no país. Para a AMB, “o grande número de processos contra autoridades detentoras de foro privilegiado, bem como a falta de julgamento definitivo destes casos, contribuem de forma decisiva para a sensação de impunidade e descrédito institucional que, atualmente, aflige a sociedade brasileira”.
Ainda ressalta que a extinção do foro “privilegiado” é uma necessidade já que está “longe de representar uma prerrogativa de defesa e preservação funcional da autoridade objetivo para o qual foi originalmente concebido, o instituto do foro privilegiado, ao longo da história, tem se transfigurado em um inconcebível privilégio, vez que tem sido recorrentemente utilizado como instrumento de preservação de impunidade por agentes políticos e servidores públicos, em diferentes esferas e Poderes do Estado.” (AMB, 2006, p. 27).
Esse antagonismo todo se reflete principalmente pela condição de que o Supremo Tribunal Federal somente condenou, fato recente, apenas dois políticos em toda sua história. Pela inoperância da Corte Máxima, que para uns não detém aptidão para receber ações originárias, que o Ministro Marco Aurélio em outra ocasião pronunciou que o Supremo Tribunal Federal não pode ser “cemitério de inquérito e ações contra quem quer que seja”.
Embora haja posicionamentos contra o foro por prerrogativa de função ele é uma realidade imposta pelo Poder Constituinte Originária, em sua origem, e uma realidade no contexto político e jurídico atual. A partir desta concepção que a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal são favoráveis ao instituto, principalmente se solidificado em uma uma nova Constituição que visou resguardar direitos e garantias que sofreram estigmas de um passado autoritário e inquisitor oriundo da ditadura.
Para os defensores do instituto, a competência por prerrogativa de função se justifica nas sábias lições do Ministro Victor Nunes:
A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja ás influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia bilateral, garantia contra e a favor do acusado. (ADI 2587, 2004, p.125)
Assim nessa linha de raciocínio a justificativa para o foro diferenciado parte, em primeiro lugar, da perspectiva do interesse público. O então risco criado por uns é completamente suportado por outros que detém uma condição peculiar na estrutura da sociedade. Neste caso estas autoridades que possuem tal prerrogativa nada mais são do que uma categoria de agentes públicos que está sujeita a riscos absolutamente diferenciados. Pergunta-se qual a influência que um prefeito de uma cidade do interior poderia exercer perante o juízo daquela cidade? Sabemos que um agente político desta natureza possui o povo como sua base de sustentação que poderia exercer uma pressão de forma a prejudicar a isenção de um julgamento pelo juízo local.
É importante ressaltar as palavras do Ministro Celso de Mello:
Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. Nada deve justificar a outorga de tratamento seletivo que vise a dispensar determinados privilégios a certos agentes públicos, especialmente quando a lei é editada com propósitos casuísticos e estranhos aos fins autorizados pelo princípio republicano. Cabe reconhecer, no entanto, que a prerrogativa de foro acha-se instituída em nosso sistema constitucional. (ADI 2587, 2004, p. 148).
A favor do instituto do foro por prerrogativa de função a Ministra Ellen Gracie definiu que a sua instituição trata-se de natureza político-constitucional de escolha pelo Constituinte, sendo:
Que esta opção, longe de ser incompatível com o modelo republicano, representa um fator de estabilidade das próprias instituições presentes numa democracia complexa e pluralista como a nossa; e que a prerrogativa de foro busca corrigir não só a distorção representada pela utilização abusiva das demandas judiciais com finalidade política, mas também a que se manifesta no uso da função pública, pelo agente acusado, para exercer pressão sobre o órgão judicial. (ADI 2587, 2004, p.166)
Por fim, salientam-se as lições do Ministro Maurício Correa:
Essa jurisdição especial assegurada constitucionalmente a certas funções públicas tem como matriz o interesse maior da sociedade de que aqueles que ocupam referidos cargos possam exercê-los em sua plenitude, com alto grau de autonomia e independência, a partir da convicção de que seus atos, se eventualmente questionados serão julgados de forma imparcial. (ADI 2587, 2004, p.94)
8. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL
Questão atual diz respeito a possibilidade das Constituições Estaduais estabelecerem prerrogativa de foro em suas respectivas cartas políticas como forma do exercício de auto-organização que cada ente federativo dispõe. De imediato, cumpre salientar que o artigo 125 da Constituição Federal determinou que “Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição” e em seu parágrafo primeiro “A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça”.
Neste Contexto, perto de completar 22 anos de edição da Constituição Federal, surgiram ampliativamente novas competências originárias para os tribunais, e que neste caso não estão consideradas na Constituição Federal, no tocante a cláusula de exceção do foro por prerrogativa de função. Assim, surgiu um impasse de caráter constitucional no sentido de saber se o rol de autoridades elencadas na Constituição Federal que possuem prerrogativa de foro seria exaustivo ao ponto de vincular o Constituinte Estadual, que não disporia de outorga para criar exceções às regras da garantia de isonomia dos diversos cidadãos da República e principalmente do juízo natural.
Algumas posições se firmaram na doutrina e jurisprudência deixando claro que não poderia o Constituinte Estadual ampliar o rol de autoridades com prerrogativa de função, somente poderia por simetria estabelecer uma relação de transposição no plano estadual das autoridades já previstas na Constituição Federal. Poderia, portanto, em consequência da simetria estabelecida na Constituição Federal, criar o foro por prerrogativa de vice-governadores de Estado que não possuem respaldo na Constituição Federal ou dos secretários de estados que estariam em correlação com os Ministros de Estado. Segundo este entendimento, jamais poderia ser determinado o foro especial para os Procuradores de Estado, por ausência de previsão na Constituição Federal.
Neste prisma o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, destacou com propriedade que o artigo 125 da Constituição Federal:
Não outorgou às constituições estaduais uma verdadeira carta em branco para assegurar privilégio a quem bem entendesse, conferindo ao Tribunal de Justiça competências que não encontram paralelo na Carta Política. A questão refoge a uma simples opção política, mas retrata um sistema rígido de jurisdição excepcional, que por diferir postulados basilares do Estado Democrático exige uma interpretação restritiva e expressa. (ADI 2587, 2004, p. 98).
Entretanto, não é este o pensamento majoritário da jurisprudência da Egrégia Corte. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar por meio do HC 78168, DJ 29/08/2003, conferindo a legitimidade do artigo 104, XIII, b, da Constituição do Estado da Paraíba, que concede a prerrogativa de foro aos Procuradores de Estado e aos Defensores Públicos, excetuando os casos de competência do Tribunal do Júri, por serem oriundos diretamente da Lei Maior estando e assim se posicionando num plano de hierarquia superior.
Não obstante, pacificou-se no julgamento da ADI 2587-GO, por maioria de votos a possibilidade de a Constituição Estadual expandir o rol das autoridades que possam ser julgadas diretamente no Tribunal de Justiça. Isto porque as normas Constitucionais que outorgam autonomia ao Ente Federativo para se auto-organizar diante dos seus poderes constituídos, respeitado os princípios inerentes a Constituição Federal, chancela esta prerrogativa.
Destacou-se a priori que a natureza da norma que institui o foro por prerrogativa de função é mais de natureza constitucional e política do que de natureza processual, não sustentando os argumentos de que a norma constitucional que confere a União competência para legislar sobre matéria processual teria sido usurpada.
Assim, na Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo Partido dos Trabalhadores – PT em face da alínea “E”, do inciso VIII, do artigo 46 da Constituição do Estado de Goiás, foi esta julgada parcialmente procedente, entendendo legítima a possibilidade de criação de espécies de foro por prerrogativa de função que não foram contempladas pelo Poder Constituinte Originário, como para os Defensores Públicos e Procuradores de Estado. Foi esta ação julgada parcialmente procedente, porque no tocante aos Delegados de Polícia foi declarada a inconstitucionalidade do instituto restando vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello que a julgavam totalmente improcedente.
9. A QUESTÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA
O Delegado de Polícia tem papel que merece destaque dentro da estrutura do Estado. Foi ele citado no texto constitucional “A Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira” e na legislação processual penal “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais”.
A notoriedade do cargo é bem explicada pelas próprias palavras do Minsitro Carlos Ayres Britto:
Sempre que a Constituição nomina certos cargos, ela o faz com o evidente propósito de prestigiá-los, sobretudo quando organiza tais cargos em carreiras. É o caso dos Delegados de Polícia, dos Defensores Públicos, dos Procurados de Estado, sem falar em Juízes e Membros do Ministério Público. (ADI 2587, 2004, p. 101)
É notório que a carreira do Delegado de Polícia, possui uma natureza diferenciada. Principalmente, por ser dentre as carreiras jurídicas a que mais se têm “baixas” no exercício da função ou em relação a ela. Logo, são diversos os riscos inerente ao ofício que são abraçados por esses servidores, desde iminente risco de vida ao lidar com as mazelas da sociedade, perseguições políticas (como recentemente temos visto no caso Protógenes), e até mesmo a falta de condições de exercício isento de seu ofício pela falta de garantias que a magistratura e o Ministério Público dispõe (remoções compulsórias).
Não obstante, como carreira chave de Estado a função de Delegado de Polícia é aquela que está mais sucetível ao rompimento da linha tênue entre legalidade e ilegalidade, entre o lícito e ílicito, isto porque no calor dos acontecimentos decisões tem que ser tomadas e suportadas justamente pela autoridade policial (como entrada e resgate de reféns que pode originariamente repercutir em algum revés ou em decidir sobre a lavratura ou não de um flagrante) em prol do melhor cumprimento de sua função.
É certo que o foro por prerrogativa de função visa garantir justamente que certos agentes políticos realizem suas funções com o máximo de isenção possível, livre de quaisquer pressões externas, com alto grau de independência que reflete na certeza que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias.
O “denuncismo” genérico é uma realidade em relação a uma classe que atua justamente com a liberdade das pessoas e seu patrimônio, que desmantelam quadrilhas que subtraem milhões seja do erário público ou de empresas privadas gerando um sentimento de revanchismo em relação ao indiciado.
Assim, que diante da realidade com que a função se submete o risco criado por uns é completamente suportado por estes agentes públicos, cuja justificativa para o foro diferenciado, partiria, em primeiro lugar, da perspectiva de interesse público.
Porém nem todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal detém esta visão. Vejamos as palavras do voto do Ministro Maurício Corrêa no julgamento da ADI 2587-GO: “Com todo o respeito aos advogados públicos e delegados de polícia, que prestam relevantes serviços a sociedade, não vejo em que a autonomia ou efetividade de suas atuações esteja relacionada com a necessidade de deterem foro especial por prerrogativa de função”. (ADI 2587, 2004, p. 97)
E assim, na ADI 2587-GO, foi expressamente julgado inconstitucional por maioria de votos a criação pelas Constituições Estaduais quanto ao foro por prerrogativa de função dos Delegados de Polícia.
Analisemos os principais argumentos utilizados:
Ministro Carlos Ayres Britto:
Excluiria os delegados, por uma razão também objetiva. Eles são de assento constitucional, há previsibilidade expressa quanto ao cargo de delegado. Porém a própria Constituição diz que eles chefiam as polícias civis. E tanto as polícias civis quanto os corpos de bombeiros militares e a polícia militar são instituições subordinadas, conhecem subordinação hierárquica por desígnio expresso da Constituição. Então, excluiria os delegados por esta razão. (ADI 2587, 2004, p.129)
Ministro Maurício Corrêa:
É que gozando eles da prerrogativa de foro, estar-se-ia diante de incompatibilidade substancial entre as suas atribuições e as dos membros do Ministério Público, a quem incumbem o controle externo da atividade policial, a requisição de diligências e a instauração do inquérito policial, funções instrumentais destinadas a permitir a promoção da ação penal pública, na forma da lei, e que estão ‘supra-ordenadas’ as funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais (ADI 2587, 2004, p.99)
Cabe ainda ressaltar que alguns ministros destacaram que no critério de correlação os Delegados Federais não teriam foro por prerrogativa de função, motivo pelo o qual não poderia a Constituição Estadual ampliar este rol.
Neste contexto teceremos algumas considerações sobre as posições dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Primeiramente, vale destacar, data vênia os votos proferidos, que o critério utilizado para declarar a inconstitucionalidade do foro por prerrogativa de função da carreira dos Delegados de Polícia foi mais de ordem política do que de matéria constitucional.
Porque admitir para os Procuradores e Defensores e não para os Delegados? Afinal os procuradores não seriam subordinados também ao Chefe do Poder Executivo? Questiono-me ainda pensando qual função estaria mais sujeitas a “perseguições”, as do Delegado de Polícia (que investiga, representa por prisão, interceptação telefônica, seqüestro de bens, mandados de busca e apreensão e etc.) ou do Defensor Público?
Tomemos o mesmo questionamento então do Ministro Cezar Peluso:
Nem vejo grande diferença do ângulo da subordinação, entre os Delegados de Polícia, os Procuradores do Estado e os Defensores Públicos. Estes, aliás, não padecem nenhum risco de interferência política no exercício das funções. Que razões pretextaria Defensor Público para exigir igual prerrogativa? (ADI 2587, 2004, p. 105)
Ressalta-se que o argumento preponderante foi que os Delegados de Polícia sofrem o controle externo do Ministério Público e que a concessão de foro por prerrogativa de função incompatibilizaria esta previsão constitucional, fiscalizatória, do regular exercício do controle externo do Parquet face a Polícia Judiciária.
Questiono-me novamente se o controle externo não seria mais de caráter institucional do que pessoal. Não vislumbro qualquer incompatibilidade em uma autoridade policial ser julgada em um tribunal colegiado e isto afetar o controle externo do Ministério Público, afinal o promotor de 1º grau, continua investido na sua função de fiscalizar os atos da instituição Polícia Civil podendo determinar as providências de responsabilização da autoridade policial.
Percebe-se que justamente pela natureza institucional do controle exercido pelo Ministério Público, não há qualquer incompatibilidade entre os delegados de polícia terem a prerrogativa de foro, e o regular exercício da Lei Complementar 75/93 (institui o Ministério Público da União) que por determinação da Lei 8625/93 – art.80 (aplica-se subsidiariamente aos Estados).
Ainda que um Delegado de Polícia respondesse uma ação no Tribunal de Justiça, poderiam os promotores de 1º grau continuarem a exercerem sua prerrogativa disposta no artigo 9º “I- ter livre ingresso em estabelecimentos policiais e prisionais; II- ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial; III- representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou para corrigir ilegalidade ou abuso de poder; IV- requisitar à autoridade competente a instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial”.
Portanto, sábia as lições de Paulo Rangel em seu magistério sobre Controle Externo do Ministério Público: “Não Passa o Ministério Público a ser um órgão correcional da polícia, mas sim um órgão fiscalizador das atividades de polícia, seja ela judiciária ou preventiva.” (RANGEL, 2009, p.94)
Parece-nos que o principal critério utilizado para declarar a inconstitucionalidade do foro por prerrogativa de função dos Delegados de Polícia foi o político, que no intuito de frear a banalização do foro por prerrogativa de função, instituto questionado por diversos segmentos da sociedade, a inconstitucionalidade tornou-se uma realidade para as autoridades policiais.
Por fim, destacamos o brilhante questionamento do Ministro Marco Aurélio que julgava improcedente a ação e fazia uma interpretação favorável a contemplação do instituto do foro por prerrogativa de função ser extensível aos Delegados de Polícia:
Poderíamos tomar por empréstimo as atividades essenciais ao implemento da Justiça; seria um critério. Indago: na fase primeira, da persecução criminal, em que há atuação do delegado de polícia, não há razoabilidade em se estabelecer, numa opção, repito, política do Estado membro, a prerrogativa de foro no que tange a esses delegados, como ocorre com procuradores das assembléias? (ADI 2587, p.132).
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os argumentos expostos acima visaram trazer aos operadores do direito a reflexão sobre o instituto do foro por prerrogativa de função e principalmente a análise da possibilidade de expandir esse rol nas Constituições dos Estados membros. Destacou-se por fim a peculiar declaração de inconstitucionalidade no julgamento da ADI 2587-GO no que tange a estipulação do foro por prerrogativa de função dos delegados de polícia, muito mais por um critério político do que por um critério jurídico de cunho constitucional em última análise. Ponderamos assim, que embora aja parcela da sociedade contra o instituto do foro por prerrogativa de função ele é uma realidade e em certas ocasiões se faz necessário, entretanto, vislumbramos que a banalização da amplitude do rol é algo preocupante e por um critério político do legislador e até mesmo do judiciário, muitas vezes cargos que deveriam ter esta garantia acabam sendo preteridos por conveniência “jurídica-política”.
Sobre o autor:
THIAGO ALMEIDA LACERDA
Agente de Polícia Civil do Distrito Federal/DF (2009). Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul/RS. Diretor de Representação da 2ª Delegacia Regional Metropolitana na Associação dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul/ASDEP. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/RJ. Especialista em Direito Processual Penal pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro/RJ. Especialista em Investigação Policial pela Universidade Católica de Brasília/Academia de Polícia do Distrito Federal/DF. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Anhanguera/LFG/SP. Aprovado em diversos concursos de Delegado de Polícia Civil – SC, PB, RN, RS
REFERÊNCIAS
AMB. Associação dos Magistrados Brasileiros. Cartilha: Juízes Contra a Corrupção. 2006
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União de 05, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2587, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2004, DJ 06-11-2006 PP-00029 EMENT VOL-02254-01 PP-00085 RTJ VOL-00200-02 PP-00671. Acesso em 01/08/2010.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 15ª ed. 2008.
COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. 2009.
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DELEGADOS.com.br
Revista da Defesa Social
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