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Fraude em concurso público e a legislação aplicável

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS
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JURÍDICO
Fraude em concurso público

e a legislação aplicável
O raciocínio é complexo, mas não é impossível

JURÍDICO

Por William Garcez

{loadposition adsensenoticia}Em 2007, o Deputado Federal Neilton Mulim apresentou o Projeto de Lei 2588, estabelecendo penalidades para as pessoas jurídicas responsáveis pela realização de concurso público ou vestibular, nos quais haja vazamento de gabarito ou qualquer outra fraude de natureza diversa. O referido projeto foi rejeitado pela Câmara dos Deputados.

Segue o teor do Projeto de Lei referido:

Art. 2° As pessoas jurídicas de direito público ou privado responsáveis pela realização de concurso público ou de vestibular estarão sujeitas às penalidades civis e administrativas previstas nesta lei, independente das sanções penais a que estão sujeitos os agentes pelo vazamento de gabarito ou por ocorrência de fraude na realização ou na aplicação da prova.

§ 1º Se a violação for durante a aplicação da prova depende de dolo ou culpa, devendo a entidade ressarcir as despesas dos candidatos além do dano devidamente comprovado em processo administrativo ou judicial, e também sofrer interdição para participar de promoção de qualquer concurso pelo período de 5 (cinco) a 8 (oito) anos.

§ 2º Se a violação foi devido a vazamento diretamente da entidade, quer seja de seus funcionários, prestadores ou sistema de segurança, independe de dolo ou culpa e além das penalidades do parágrafo 1º deste artigo sofrerá a suspensão imediata para participar de qualquer processo durante a apuração da fraude.

O texto em questão tinha como finalidade a moralização dos concursos públicos no país, que, diga-se de passagem, estão uma vergonha. O projeto pretendia a implementação de legislação específica relativa à responsabilização das empresas organizadoras de concursos lato sensu, uma vez que algumas vozes sustentam que não há legislação aplicável a esses casos.

Essa corrente doutrinária leciona a não aplicação da Lei 8.666/93 (Lei das Licitações) aos concursos públicos. Para esses, há verdadeira lacuna no ordenamento jurídico vigente, não havendo possibilidade de punição na esfera penal.

Pois bem: como referido, a Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara de Deputados rejeitou no dia 06 de outubro de 2011 o Projeto de Lei 2588/07.

Como a proposta tem caráter conclusivo, e foi rejeitada pela única comissão de análise do mérito, será arquivada – a não ser que haja recurso de cinquenta e dois deputados para sua análise pelo Plenário. Ou seja, ao que tudo indica, não haverá legislação específica para o vazamento de gabaritos ou a fraude lato sensu em concursos públicos.

Entretanto, isso não significa que esses fatos devam permanecer impunes, conforme acima referido.  Muito embora o Projeto de Lei 2588/2007 não tenha surtido o efeito esperado pelo seu propositor, a fundamentação utilizada para o seu arquivamento indica que uma nova lei seria desnecessária, uma vez que o ordenamento vigente seria capaz de resolver a questão.

Para o relator Deputado Eudes Xavier, o projeto deve ser rejeitado porque as penas previstas na Lei das Licitações (8.666/93) já se aplicam a esse tipo de conduta. O Deputado referiu, ainda, que a Legislação atual aplica-se aos responsáveis por concursos públicos de todo gênero.

Logicamente, essa interpretação só é possível se o concurso público for considerado uma das modalidades de licitação tratadas na lei específica. A Lei 8.666/93, que nasce para regulamentar o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.

A decisão da Câmara dos deputados de vedar o Projeto de Lei 2588, para alguns, soará como uma “carta branca” às fraudes nos concursos públicos ou como um “balde de água fria” na luta contra a impunidade dessas condutas. Para outros, soará como um alerta de que precisamos dar efetividade aos comandos normativos existentes.

Realizando um juízo de valor acerca da decisão do Deputado Eudes, acredito que a mesma poderia ter tomado outros caminhos, dada a dimensão jurídico-social que este problema alcançou. Entretanto, algumas considerações devem ser feitas na tentativa de buscar uma solução para o entrave que se criou.

Penso que seja de bom grado a realização de raciocínio hermenêutico acerca dos comandos legais possivelmente relacionados à matéria, a fim de viabilizar a aplicação de dispositivos existentes e evitar a impunidade criminal daqueles que fraudam concursos públicos.

Analisando os dispositivos legais em vigor, poder-se-ia dizer que, de fato, não precisamos de mais leis. O que precisamos é interpretar corretamente as normas vigentes. Não é preciso muito esforço para constatar que a criação de novas leis não supre a deficiência de uma hermenêutica mal desenvolvida. As Leis 8.666/93 e 8.429/92, se bem analisadas, são capazes de solucionar a questão.

Veja-se que, além de multas, advertências, suspensão temporária da participação em licitações e impedimento de contratar com a administração pública por até dois anos (aplicáveis inclusive às pessoas jurídicas), a lei 8.666/93 prevê detenção dos infratores (pessoas físicas) por período variável, dependendo do crime praticado (artigos 89 a 98).

Saliente-se, inclusive, que se a fraude no concurso contar com a participação de qualquer agente público há, ainda, a aplicação da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), de modo que essa lei, que prevê sanções civis e administrativas, tem aplicação a “todos” os envolvidos, mesmo que alguns não sejam agentes públicos, basta que estes concorram, de qualquer forma, para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficiem.

Então, em primeira análise, para repressão de fraudes em concurso público temos as disposições legais da Lei 8666/93 e da Lei 8.429/92, dependendo das circunstâncias. Ambas as leis prescrevem punições de cunho civil e administrativo, sendo que aquela prevê ainda sanções de natureza penal para as pessoas físicas envolvidas.

Não há lacuna. Basta que as leis existentes sejam integralmente aplicadas e exauridas em sua aplicação.

O raciocínio é complexo, mas não é impossível de ser realizado, basta que os aplicadores do direito optem por reprimir os fraudadores de concursos públicos, aplicando os dispositivos em vigor, ou deixá-los impunes, sob o retórico argumento da inexistência de legislação aplicável.

Sou adepto da primeira opção e indico as razões.

Veja-se que o artigo 22 da lei 8.666/93 prevê o “concurso” como modalidade de licitação, fornecendo, ainda, um conceito técnico-jurídico para esse instituto. In verbis:

Art. 22.  São modalidades de licitação:

(…)

IV – concurso;

(…)

§ 4o  Concurso é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes de edital publicado na imprensa oficial com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias. (grifei)

Analisando a redação do parágrafo acima transcrito, sem fugir do sentido literal das palavras nele encerradas, percebe-se a real possibilidade de aplicação da Lei 8.666/93 aos concursos públicos. O conceito fornecido pela lei é facilmente encaixado ao “universo dos concursos”. E, saliente-se, isso não tem nada a ver com “ampliação do alcance da norma”. Trata-se, pura e simplesmente, de interpretação gramatical, a mais simples de todas.

Ora, o concurso público, como se sabe, objetiva a seleção de interessados em contratar com a Administração Pública, de modo que os candidatos aprovados e classificados, após a nomeação e exercício do cargo, realizarão trabalho técnico (nível médio) ou científico (formação acadêmica), mediante remuneração, conforme previsto no respectivo edital do certame. Veja-se que tudo se extrai do conceito de concurso fornecido pela lei.

Ademais, o concurso público visa à realização de um “contrato de prestação de serviço” que será firmado entre os candidatos classificados e a Administração Pública, seja ela Federal, Estadual ou Municipal, nos termos do inciso XXI do artigo 37 da Carta Magna. Poder-se-ia aqui, inclusive, falar em interpretação conforme a Constituição, uma das modalidades mais bem quistas pelos operadores do direito, diga-se de passagem.

E mais, convém lembrar que o exercício da hermenêutica deve privilegiar a mens legis (vontade da lei). Nesse passo, convém refletir: Terá sido a vontade da lei excluir os concursos públicos de seu âmbito de aplicação? Quer parecer que não, afinal, além das razões acima expostas, é lógico que o concurso público deve ter “assegurada a igualdade de condições entre todos os concorrentes” (artigo 37, XXI, CF).

Sob essa ótica, o concurso público não deixa de ser um procedimento licitatório e, como tal, deve respeitar a todas as regras e princípios atinentes às licitações, inclusive no que diz respeito à punição para os casos de irregularidades e ilicitudes.

Segundo o artigo 3° da Lei 8.666/93:

A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

A proposta mais vantajosa, no caso, será avaliada a partir do grau de preparação dos candidatos que, de acordo com o seu intelecto, demonstrarão seu desempenho nas provas realizadas. Ou seja, a melhor proposta será a apresentada pelo candidato mais bem classificado, e assim sucessivamente.

Na esteira do procedimento licitatório, ainda, temos que o “objeto licitado” são as vagas que os candidatos disputam e a sua “adjudicação” vem ilustrada por meio da nomeação para o exercício do cargo, que é o ato pelo qual a Administração outorga o “objeto” ao vencedor.

Como se vê, os conceitos legais pertinentes às licitações podem ser utilizados, sem melindres, aos concursos públicos lato sensu, basta interpretar-se a norma de modo a extrair o seu verdadeiro sentido, exaurindo-a em sua aplicação.

Refira-se ainda que a venda de gabaritos ou qualquer outro tipo de fraude, viola todos os princípios que norteiam as licitações, principalmente os da legalidade, moralidade, probidade, impessoalidade e isonomia.

Um fato de tamanha gravidade, que, como se sabe, prejudica um universo incomensurável de pessoas, além de violar promiscuamente a fé pública, deve ser punido em todas as esferas da ciência jurídica. Os princípios basilares do ordenamento jurídico devem ser blindados, inclusive pelo direito penal, a fim de se evidenciar a sua real importância.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello , “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais (…)”.

Dessa forma, muito mais que proporcional ou razoável, a aplicação da lei 8.666/93 às fraudes lato sensu em concursos públicos é medida legal e necessária, a fim de se refutar a ideia da impunidade de todos aqueles que pretendem, fraudulentamente, ingressar ou franquear o ingresso de pessoas despreparadas e desonestas nos cargos públicos de qualquer das entidades federativas.

Sobre o autor

William Garcez é Delegado de Polícia do Rio Grande do Sul. Ex-Assistente de Promotoria de Justiça. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – CAMVA/RS

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