JURÍDICO
‘Receptação culposa’
- Breve análise típica, Por Leonardo Marcondes
JURÍDICO
Leonardo Marcondes Machado
Delegado de Polícia em Santa Catarina, atualmente em exercício na Comarca de Joinville, pós-graduado em Ciências Penais pela UNISUL/IPAN/LFG, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie / São Paulo e colaborador-articulista em diversas revistas jurídicas eletrônicas.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar os elementos típicos do crime de receptação culposa (art. 180, § 3º, do Código Penal).
Sumário: 1. Noção Geral. 2. Tipo Objetivo. 3. Tipo Subjetivo. 4. Consumação e Tentativa.
Palavras-Chaves: Dogmática Penal; Teoria do Delito; Tipicidade; Receptação Culposa.
1. NOÇÃO GERAL.
A receptação culposa encontra previsão legal no § 3º, do art. 180, do Código Penal, o qual estabelece: “Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso”.
A incriminação da figura culposa da receptação justifica-se diante da premente necessidade, por parte daquele que adquire ou recebe algo de outrem, de sempre certificar-se quanto à origem lícita da coisa. O ordenamento penal não concebe que sejam praticados negócios jurídicos por agentes descuidados ou indiferentes sobre a procedência do objeto.
2. TIPO OBJETIVO.
O tipo objetivo está concentrado em dois verbos núcleos do tipo, a saber: adquirir e receber. Observe que não foi consagrada a modalidade de ocultação, vez que esta pressupõe conduta dolosa – aquele que oculta o objeto material evidentemente tem conhecimento de sua origem delituosa.
Semelhantemente, deixou de estabelecer o legislador a figura culposa da chamada “receptação imprópria”. Por conseguinte, o mero influir, desde que culposo, constitui caso atípico. A mediação culposa é impunível.
“A expressão deve presumir-se denota conduta culposa, já que o agente deixa de presumir o que é presumível, não se utilizando da diligência devida para antever que a coisa por ela obtida é de origem criminosa.”[1]
“Como a culpa se caracteriza por um dever de cuidado objetivo e subjetivo, na receptação culposa o adquirente descumpre tal dever, negligenciando, isto é, nas circunstâncias omite-se das cautelas devidas na verificação da origem da coisa que adquire ou recebe”.[2]
Vê-se, portanto, que a conduta culposa da receptação manifesta-se pela negligência, imprudência ou imperícia do agente na análise da procedência da coisa que estava adquirindo ou recebendo. Trata-se de descuido quanto à exata origem da coisa, a qual deveria ser presumida de procedência criminosa e, portanto, deixada de lado pelo agente.
O dispositivo legal estabelece três critérios objetivos para determinar a presunção de ilegalidade da res, a saber: i) pela natureza da coisa; ii) pela desproporção entre o valor e o preço; iii) pela condição de quem a oferece.
Segundo Hungria, esses indícios relativos à origem criminosa da coisa decorrem de id quod plerumque accidit. A lei pressupõe que qualquer deles deve gerar a presunção de que a coisa procede de crime, pouco importando, em princípio, que o acusado não tenha legalmente presumido tal inocência.[3]
Nessa esteira, ensina Damásio que “nos três casos, o sujeito não sabe que a coisa é produto de crime. Se sabe, responde por receptação dolosa. Entretanto, em face dos indícios reveladores da procedência ilícita do objeto, não deveria recebê-lo ou adquiri-lo. Fazendo-o, responde pela forma culposa. Os indícios deveriam fazer com que o sujeito ativo desconfiasse da origem do objeto material. A ausência dessa desconfiança impeditiva de aquisição ou do recebimento faz com que surja a culpa”.[4]
O primeiro elemento indicativo de culpa é a “natureza da coisa”. Segundo Noronha, “natureza é essência; é condição própria; é o conjunto de todos os atributos e propriedades da coisa”. Ex: uma valiosíssima obra de arte, constando selo de propriedade de terceiro ou um automóvel, sem a documentação correta.
O segundo indício objetivo de culpa consiste na desproporção entre o valor e o preço, ou seja, a acentuada diferença entre o quantum (obviamente, econômico) que a coisa deveria custar e o que efetivamente é atribuído como condição de troca. Diferença flagrante entre o preço estipulado pelo vendedor e o valor real da coisa, tal como atribuído pelos especialistas ou pelo mercado. Ex: relógio da marca rolex no importe de R$ 10,00 (dez reais) ou aquisição de obra de arte dita famosa por valor ínfimo.
Registre-se, no entanto, que “a jurisprudência tem realçado que se o adquirente desconhece o verdadeiro valor da coisa, inexistirá o crime, observando que um homem rústico e alheio ao comércio das coisas como as que lhes são ofertadas, ao adquiri-las, não comete o delito, pois, se tal pudesse ocorrer, teríamos uma clara admissão do versari in re illicita, isto é, da responsabilidade penal objetiva. A menção ao homem rústico, ao campesino, é apenas um exemplo que não afasta a possibilidade do homem letrado, desligado de certos bens e coisas materiais, desconhecer o valor real da coisa”.[5]
O terceiro e último indício consagrado pelo legislador é o da condição de quem oferece a coisa, ou seja, da qualidade pessoal do agente, analisando-se as condições físicas, culturais, econômicas, etc. Segundo Noronha, “essa condição, na mais das vezes, é apreciada pelo aspecto ou aparência do indivíduo, caso em que não se confirma o brocardo de que o hábito não faz o monge… Um andrajoso, vendendo um brilhante, é coisa que despertará suspeitas na mais ingênua ou cândida das criaturas. Bem vestido e bem trajado o meliante, em regra, não alerta se realiza a mesma transação”.[6]
Vale ressaltar que os aludidos indícios são relativos, ou seja, podem ser afastados, diante da análise do caso concreto, desde que fique evidenciado erro escusável ou razoáveis contra indícios no sentido da legitimidade da coisa, extra reatum est. “A decidir-se de outro modo, teria o Código criado, em contraste com um de seus princípios centrais, um caso de responsabilidade objetiva. Todo indício pode ser desacreditado por um contra-indício. A casuística legal dos indícios só teve em mira evitar um ilimitado arbítrio do juiz na identificação do crime, e não endossar o contra-senso de uma responsabilidade sem culpa. Por mais forte que seja um indício, não está jamais a coberto de ser infirmado por outro em sentido contrário”.[7]
Observe, ainda, que a relatividade desses indícios implica na necessidade de, em uma análise pontual – caso a caso –, aferir se o adquirente reunia, em face do senso comum (da capacidade do homem médio), condições para detectar a possível ilicitude do objeto material, pela natureza da coisa, pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferecia.
Oportuno registrar, neste ponto, algumas decisões judiciais sobre a presunção de ilegalidade do negócio jurídico com base nos critérios objetivos já anunciados, senão vejamos:
– “A condição de quem ofereceu o aparelho, pessoa desconhecida, no interior de uma boate e a desproporção entre valor (R$ 200,00) e preço pago (R$ 30,00), permitiam ao acusado, ainda que seja pessoa pobre e de reduzida instrução, presumir a origem ilícita”.[8]
– “A condição do vendedor, que tinha fama de ladrão e aparência de louco, e a desproporção entre o seu valor e o preço pago, ensejavam a presunção de sua origem ilícita”.[9]
3. TIPO SUBJETIVO
O tipo subjetivo é marcado, obviamente, pela conduta unicamente culposa do agente, em momento anterior ou concomitante ao de aquisição ou recebimento da coisa.
Note que o sujeito não pode ser punido por receptação culposa caso os indícios objetivos estudados se verifiquem após a consumação do delito, ou seja, em ato posterior ao recebimento ou aquisição da coisa. Exemplo: o comprador de obra rara que apenas depois de três meses de celebrado o negócio e já em posse do objeto descobre que o quadro está marcado com um selo de determinada loja de preciosidades, da qual o suposto vendedor não tem qualquer relação, bem como que este último estava sendo processado por furto de obras de arte.
4. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
A consumação se dá nos mesmos termos da receptação dolosa própria (art. 180, caput, 1ª parte), ou seja, trata-se de delito material, sendo alcançado o momento consumativo com a efetiva aquisição ou recebimento da coisa. Enfim, o crime se consuma com a tradição da res. Admite tentativa.
Referências Bibliográficas.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. v. VII (arts. 155 a 196). 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte especial. v. 2. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. v. 2. 32 ed. São Paulo:Saraiva, 2001.
PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial (arts. 121 a 234). 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 2. parte especial (arts. 121 a 183). 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
[1] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 2. parte especial (arts. 121 a 183). 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 642.
[2] PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial (arts. 121 a 234). 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 621.
[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. v. VII (arts. 155 a 196). 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 319.
[4] JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte especial. v. 2. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 508.
[5] PIERANGELI, José Henrique. op. cit., p. 623.
[6] NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. v. 2. 32 ed. São Paulo:Saraiva, 2001, p. 509.
[7] HUNGRIA, Nélson. op. cit., p. 319.
[8] TJRS – Turma Recursal Criminal – Turmas Recursais – Recurso Crime n. 71001623602 – Rel. Ângela Maria Silveira – j. em 02.06.08.
[9] TJRS – Turma Recursal Criminal – Turmas Recursais – Recurso Crime n. 71002338671 – Rel. Cristina Pereira Gonzales – j. em 30.11.09 – DJ de 04.12.09.
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