No recente julgamento da Ação Penal 536, propus um diálogo institucional entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional a propósito do chamado foro por prerrogativa de função. Também conhecido como foro privilegiado, trata-se de uma reminiscência aristocrática genuinamente nacional, sem réplicas de abrangência comparável em outras democracias.
A Constituição brasileira prevê que um conjunto amplo de autoridades federais responda, nas ações penais, perante o STF ou o Superior Tribunal de Justiça. Todos os demais cidadãos são processados perante um juiz de primeiro grau. O sistema é muito ruim, por variadas razões. E só o Congresso Nacional pode mudá-lo.
A primeira objeção a que parlamentares, ministros, governadores e outros tenham foro especial é o seu caráter não republicano. Nas Repúblicas, todos os cidadãos são iguais e devem estar sujeitos às mesmas normas.
A desequiparação deve ser medida excepcional e justificada. Em segundo lugar, o julgamento em instância única suprime o duplo grau de jurisdição (o direito de recorrer a uma instância superior), o que suscita tensões com tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Por fim, um tribunal como o STF não deve ter por papel produzir provas e analisar questões de fato. Cortes supremas, em todo o mundo, têm a destinação de interpretar a Constituição e definir teses jurídicas que possam orientar e inspirar os demais juízes e tribunais do país.
Além de problemas ligados à filosofia constitucional, o foro privilegiado dá lugar a distorções exóticas e a espertezas diversas. Há os que procuram se eleger para mudar a competência do órgão que vai julgá-los, que passa do primeiro grau para o STF. Há os que deixam de se candidatar, depois de processados no STF, com o propósito inverso: fazer o processo baixar para sua área de influência. E há os que renunciam ao mandato aos 45 minutos do segundo tempo, igualmente manipulando o sistema e alterando o órgão competente para julgamento.
Um cidadão que se eleja prefeito, deputado e, depois, governador, faz o processo saltar três vezes: do Tribunal de Justiça para o STF e daí para o STJ. Tudo isso produz investigação fragmentada, prescrição e impunidade.
Daí a proposta que fiz durante o julgamento referido, que depende de uma emenda constitucional. Pouquíssimas autoridades deveriam conservar o foro especial no STF, como o presidente da República e o Vice, os presidentes do Senado, da Câmara e do STF, e o procurador-geral da República.
Vara federal
Para o julgamento das autoridades que hoje têm foro por prerrogativa de função poderia ser criada uma vara federal de primeiro grau, em Brasília. O juiz titular seria escolhido pelo STF, para um mandato improrrogável de quatro anos. Ao final desse período, seria automaticamente promovido para o Tribunal Regional Federal, na primeira vaga aberta, o que o imunizaria contra qualquer retaliação. Haveria tantos juízes auxiliares quantos necessários. Das decisões dessa vara especializada caberia recurso ordinário diretamente para o STF ou para o STJ, conforme a autoridade.
Há algumas razões que justificam e legitimam a criação de uma vara federal especializada, em lugar da regra geral, que seria a justiça estadual de uma das unidades da Federação. A primeira delas é não deixar a autoridade pública sujeita à má-fé ou ao oportunismo político de ações penais em qualquer parte do país, consumindo-lhe tempo e energia.
A segunda é promover a uniformidade de critério, que poderia ser calibrado por meio dos recursos ordinários. Detalhe importante: a vara especializada continuaria competente mesmo após a autoridade deixar o cargo, assim se eliminando as idas e vindas do processo.
Por outro lado, uma vara federal em Brasília neutralizaria a eventual influência do poder local, impedindo perseguições e favorecimentos. Um modelo simétrico poderia ser aplicado às ações de improbidade administrativa.
Naturalmente, esse conjunto de ideias é apenas um esboço, a ser aperfeiçoado com a contribuição do Congresso Nacional, de entidades representativas (como OAB, AMB, Ajufe, ANPR) e do debate público amplo. Democracias maduras não nascem prontas. Seu aperfeiçoamento constante exige mobilização da sociedade e autocrítica das instituições.
Sobre o autor
Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Conjur
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