As leis paulistanas impedem que a regra de silêncio entre as 22h e as 5h seja cumprida no município. Limites de horário ambíguos, regras de exceção conflitantes e classificação omissa de estabelecimentos não permitem uma interpretação coerente do que se pode e do que não se pode fazer na capital. Esse emaranhado de normas foi alvo de um pedido de declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Ministério Público de São Paulo em Ação Civil Pública ajuizada na última semana.
Na ação, o MP requer à Justiça o fechamento imediato do Bar Bardot, no Itaim Bibi, São Paulo. Há cinco anos, moradores do bairro se queixam do excesso de barulho emitido pelo estabelecimento. Além do transtorno com os ruídos em horários e limites impróprios, a população da região encontrou outro entrave: a falta de ação efetiva do poder público municipal e estadual, apesar dos inúmeros apelos para a adoção de medidas mitigadoras da poluição sonora. A primeira ocorrência levada ao Programa de Silêncio Urbano (Psiu) pelos moradores data de 21 de dezembro de 2008, à qual se seguiram muitas outras.
O bar fica na Rua Clodomiro Amazonas, em zona classificada como mista de média densidade, predominantemente residencial, na qual é permitido o comércio de alimentos, associado a diversões. A própria municipalidade informou à Justiça que o imóvel onde funciona o bar consta no Cadastro de Edificações Irregulares da Prefeitura do Município de São Paulo. Ainda assim, emitiu licença para funcionamento de bar e lanchonete, e não revogou as licenças expedidas, apesar da falta de regularização.
Para se adequar aos “parâmetros de incomodidade”, segundo a legislação municipal, a emissão de ruído não deveria ultrapassar 65 decibéis no período diurno — das 7h às 22h —, e 45 decibéis das 22h às 7h. Segundo o promotor de Justiça do Meio Ambiente Washington Luis Lincoln de Assis, que encaminhou Ação Civil Pública Ambiental (ACP Ambiental) no último dia 25, “isso já contraria a Lei municipal 11.804/1995, em seu artigo 2º, inciso II, que considera período diurno o horário das 6h às 20h e período noturno das 20h às 6h”.
De acordo com o MP, em diversas ocasiões, o Psiu fez medições no local quando não havia música ao vivo ou quando o estabelecimento estava fechado. Em outras, a redução do ruído ocorreu minutos antes da chegada dos fiscais do Psiu, sendo reiniciada logo após deixarem o local.
Em laudo pericial contratado por um dos reclamantes — o Condomínio Edifício Castelamare, vizinho do bar — concluiu-se que “todos os valores ultrapassam o recomendável no máximo aceitável de 40dBA”, em medições feitas no dia 1º de julho de 2012 (domingo), após as 22h. Em alguns momentos, os ruídos produzidos pelo estabelecimento estavam próximos dos 100 decibéis, muito além do permitido para a garantia do conforto acústico.
Labirinto legal
Apesar de visar o controle da poluição sonora, a Lei municipal 11.501, de 1994, cuja vigência foi mantida pelo artigo 270 da Lei municipal 13.885/2004, não faz menção a bares, casas noturnas e similares. Com as alterações pela Lei municipal 11.986/1996, os estabelecimentos comerciais poluidores com capacidade para mais de 200 pessoas ficaram isentos de multa em caso de poluição sonora, motivo que o Psiu alega para não autuá-los até hoje.
Já a Lei municipal 12.879, de 13 de julho de 1999, chamada de Lei da 1 hora, dispõe que os bares não poderão funcionar após a 1h, nem iniciar suas atividades antes das 5h, mas não impede explicitamente que os bares funcionem no horário das 5h à 1h. No artigo 1º, a lei estabelece que ficam sujeitos ao horário fixado os estabelecimentos comerciais que funcionem de portas abertas, sem isolamento acústico, sem estacionamento e funcionários destinados à segurança e ainda aqueles que atrapalhem o sossego público.
Segundo o promotor autor da ação, essa lei não protege o sossego da população. “Ao contrário, tenta conceder licença para poluir quando não define o que seja ‘bar’ e quais as atividades que pode exercer. Na verdade, permite o funcionamento do ‘bar’ de portas abertas, sem isolamento acústico e que atrapalhem o sossego, no horário da 1h às 5h, inclusive após as 20h ou mesmo após as 22h, descuidando-se do disposto na Lei 13.885/2004”, afirma.
Por isso, o MP requereu a declaração de inconstitucionalidade da norma municipal. Solicitou o mesmo em relação ao disposto no artigo 8º, inciso I, alínea “a”, da Lei 11.501/1994, com as alterações feitas pela Lei 11.986/1996, no que concerne à concessão de 60 dias de prazo para requerer o licenciamento da atividade que cause emissão de som acima do permitido. Ou seja, constatada a emissão de som acima do permitido, o município concede mais 60 dias para continuar em ação. “Isso caracteriza licença para poluir”, acrescenta do MP.
Segundo o promotor, essas regras são “permissivas em relação à legislação federal e a Constituição Federal, pelo menos ao permitir, em tese, o funcionamento de ‘bares’ com quaisquer atividades que causem poluição sonora, após as 22h”. O promotor entende que “esse emaranhado de leis, incompletas, dúbias, insuficientes, sem a menor técnica legislativa, dão margem a todo tipo de interpretação de ocasião”. Tanto pela regulamentação, como pela ineficiente fiscalização, “a lei do silêncio em São Paulo não sai do papel porque não foi feita para sair”, conclui.
Responsabilidade objetiva
O MP entendeu que a conduta dos proprietários do bar imputa-lhes responsabilidade objetiva, decorrente da exploração de atividade potencialmente poluidora, sem medidas preventivas e corretivas.
O município é responsabilizado pelo MP pela ineficiência de sua atividade fiscalizatória e pelo descumprimento das próprias leis. A Fazenda Pública do estado de São Paulo, através de seu órgão Psiu, igualmente, omitiu-se no poder-dever de fiscalizar e coibir infrações penais e ambientais através da Policia Militar, diz o MP. O promotor afirma que “diversas infrações criminais, nos termos da Lei das Contravenções Penais (perturbar o sossego alheio) e da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) vêm ocorrendo no local ao longo dos últimos anos, com a total omissão da Fazenda Pública do estado de São Paulo, pois cabe à Polícia Militar a repressão aos crimes”. A ação da PM, igualmente, foi apontada como falha, “considerando-se que a prisão em flagrante é obrigatória”.
A fim de reparar o dano causado, o promotor defende que deve prevalecer o princípio da responsabilidade objetiva — previsto no artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal e na Lei 6.938/1981, em seu artigo 14, parágrafo 1º —, bem como o da reparação integral. Além disso, sugere que seja aplicada aos proprietários do estabelecimento multa no valor de R$ 1,7 milhão, e R$ 684 mil à Fazenda, a título de indenização por danos morais coletivos.
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