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Direito a intimidade. Investigação não pode se basear só na quebra de sigilo

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

Existe luz no fim do túnel para advogado criminalista, que defende cliente vítima de quebra de sigilo ilegal, solicitado pelo Ministério Público Federal e deferido pelo juiz, empenhados ambos em dar satisfação ao clamor público, mesmo quando isso significa violar a Constituição. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça, decidiu frear esse tipo de atitude e determinou que o MP não pode pedir quebra de sigilo bancário ou fiscal, simplesmente por não existir outra forma de investigação. Por incrível que possa parecer, isso existe.

Os sócios da empresa Emesa S/A foram acusados de evasão de divisas por terem mandado ilegalmente dinheiro para o exterior por meio das chamadas contas CC-5 (que permitiam a remessa legal de dinheiro para o fora do país), entre 1992 e 1998. A Procuradoria da República do Rio de Janeiro instaurou procedimento administrativo-criminal, buscando a quebra do sigilo bancário e fiscal da Emesa, para comprovar suas suspeitas. A solicitação foi aceita, mesmo não existindo inquérito policial. Nesse caso, a “investigação” era conduzida pelo Ministério Público Federal.

O objetivo da Procuradoria da República era obter “mínimos elementos necessários à investigação”. O advogado da Emesa, Luís Guilherme Vieira, recorreu da decisão da primeira instância afirmando falta de fundamentação, mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região negou o recurso. Considerou a quebra de sigilo “indispensável para apurar a existência de indícios de irregularidade”.

No Superior Tribunal de Justiça, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, conhecida pela defesa dos direitos fundamentais mesmo que isto resulte em sensação de impunidade por parte da população que desconhece as regras do Processo Penal, não acatou a decisão do TRF-2. Disse que o acórdão foi “proferido com argumentos vagos” e “sem amparo em dados fáticos que pudessem dar azo a procedimento tão drástico, com a invasão da intimidade do cidadão”.

Para a ministra, relatora do pedido de Habeas Corpus ajuizado por Luís Guilherme Vieira, “não se pode aceitar o argumento de que não há outra linha de investigação possível. Fosse assim, as portas estariam abertas para o poder estatal devassar a intimidade de todos, sem peias. Deve-se partir do fato para se alcançar a autoria. Não se admite investigar a vida dos cidadãos para, a depender da sorte, encontrar algum crime.”

“Toda intervenção na esfera íntima do cidadão deve ser encarada como exceção. Somente se justifica tal procedimento em caso de necessidade e atendendo-se aos requisitos legais, faticamente demonstrados”, considerou.

A decisão de declarar nula a quebra de sigilo autorizada pela Justiça também já foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal. “Meras ilações e conjecturas, destituídas de qualquer evidencia material, não têm o condão de justificar a ruptura das garantias constitucionais preconizadas no artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal”, já entendeu o ex-ministro Maurício Corrêa, em março de 2002, ao julgar Mandado de Segurança com pedido de quebra de sigilo por Comissão Parlamentar de Inquérito. Essa tem sido a tendência dos Plenos do STJ e STF.

A 6ª Turma, por maioria de votos, concedeu a ordem para anular a decisão de quebra do sigilo fiscal decretada e decidiu que a prova colhida deveria ser envelopada, lacrada e encaminhada para a autoridade fiscal.

Ministro inconformado.

No julgamento do HC no STJ, em agosto de 2006, também votaram os ministros Paulo Gallotti e Paulo Medina — hoje, afastado do Tribunal por suposto envolvimento num esquema de venda de decisões para favorecer o jogo ilegal. Gallotti votou pela manutenção da ordem de quebra de sigilo.

Medina acompanhou a ministra Maria Thereza e pareceu inconformado com o caso. “Apurar não é apurar de qualquer jeito, passando por cima, violentando a intimidade do cidadão. Apurar é usar a técnica mais científica possível, a mais aprimorada possível, é utilizar os recursos os mais aquinhoados possíveis, para conferir uma apuração com tranqüilidade, uma apuração sem publicidade prévia, uma apuração capaz de ensejar a punição que se quer e que se exige de quem está a delinqüir”, disse.

O então ministro ainda considerou que “o Direito Penal é o Direito da tríplice dolor: a dor do castigo, a dor da punição e a dor da apuração. Aqui, se assentou na dor da apuração. O poder estatal não deve romper, não deve devassar a intimidade de todos nós”.

“Quando observamos que autoridades, em quaisquer níveis, estão a estimular prisões, estão a incentivar apurações, estão a impulsionar a atuação das Polícias — federal e estaduais, em qualquer nível —, temos que nos preocupar um pouco e agir em nome da impunidade ou para combater a impunidade, mas devemos fazer isso em nome da garantia do cidadão”, disse.

Paulo Medina ainda usou o voto para desabafar sobre uma entrevista que o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, tinha dado para a revista Veja, Na reportagem, ele afirmava haver corrupção no Poder Judiciário. “É muito sério quando um homem, com o peso que tem o senhor ministro da Justiça, faz tal afirmação, porque esse fato enfraquece o Poder Judiciário, enfraquece o juiz, enfraquece a independência de cada um de nós. É quanto a essa manifestação que estou a discordar.”

“Penso que nós, ministros desta Casa, nós, advogados, nós, ministros políticos temos que estar unidos para corresponder à responsabilidade que é exigida de cada um de nós. Não podemos permitir que ninguém possa duvidar de nós, nem mesmo que autoridades de nível mais alto possam argüir um possível comprometimento do Poder Judiciário ou de seus membros”, desabafou.

Medina não imaginava, então, que menos de um ano depois de dizer essas palavras não totalmente desprovidas de sensatez, teria de se afastar da Corte, justamente por ser acusado de corrupção.

Leia a decisão.

HABEAS CORPUS Nº 59.257 – RJ (2006/0106112-6)

RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA

IMPETRANTE: LUÍS GUILHERME VIEIRA E OUTROS

ADVOGADO: MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA

IMPETRADO: SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2A REGIÃO

PACIENTE: A K

PACIENTE: O P N

PACIENTE: E D P

EMENTA

INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS. QUEBRA DE SIGILO FISCAL. DECISÃO SEM MOTIVAÇÃO. REVOGAÇÃO.

1. Pedido e decretação de quebra de sigilo fiscal com o fim de colher mínimos elementos necessários à investigação.

2. Não foi declinado o fumus commissi delicti, pelo contrário, decretou-se a quebra a fim de buscá-lo.

3. Manifesta violação do art. 93, IX, da Constituição Federal.

4. Ordem concedida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.Vencido o Sr. Ministro Paulo Gallotti que denegava a ordem.” Os Srs. Ministros Nilson Naves, Hamilton Carvalhido e Paulo Medina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Medina. Dr. Luis Guilherme Vieira pelos pacientes.

Brasília, 22 de agosto de 2006 (Data do Julgamento)

Ministra Maria Thereza de Assis Moura

Relatora

RELATÓRIO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relator): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional, com pedido de liminar, em favor dos pacientes acima mencionados, em que se afirma, resumidamente, o seguinte:

a) a empresa Emesa S/A, cujos sócios são os pacientes, teria, entre 1992 e 1998, de acordo com “dossiê” da Justiça Federal de Cascavel (PR), feito remessas de dinheiro ao exterior por meio das chamadas contas CC-5;

b) a Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro, então, instaurou procedimento administrativo-criminal, buscando a quebra do sigilo bancário da Emesa, o que foi deferido pelo Juízo da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro (RJ);

c) a competência foi firmada perante a 3ª Vara Federal de Volta Redonda (RJ);

d) posterior requerimento de quebra de sigilo bancário dos pacientes visaria obter “mínimos elementos necessários à investigação”;

e) não seria possível uma quebra de sigilo para se obter tais indícios mínimos;

f) o pedido foi deferido pelo Juízo; não existiria, até a presente data, inquérito policial;

g) não existiriam os “sérios indícios de prática criminosa relacionada à empresa Emesa”, mencionados pelo Juízo;

h) tal decisum não apontaria onde se encontram citados indícios, além de estar sem fundamentação;

i) o writ originário restou denegado pelo e. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por duas vezes;

j) o acórdão estaria fulcrado em “termos genéricos”;

l) tanto o voto condutor, quanto o voto-vista não teriam demonstrado sob que fundamento se acusam os pacientes; segundo os impetrantes, “tudo não passa, é certo, de mero feeling “.

Liminarmente, pediu-se a sustação dos efeitos da decisão impugnada, até o julgamento do mérito do writ ou, alternativamente, caso o resultado da quebra do sigilo já tenha sido encaminhado ao Juízo, que seja lacrado para que ninguém possa ter acesso; no mérito, pleiteou-se seja declarada nula a decisão de quebra de sigilo fiscal dos pacientes.

Por fim, pediram os impetrantes sejam intimados da sessão de julgamento, bem como vista dos autos após o parecer ministerial e decretação de segredo de justiça nos presentes autos.

A liminar foi indeferida pelo Ministro Hélio Quaglia Barbosa, bem como o pedido de intimação para a sessão de julgamento e a vista dos autos após o retorno do Ministério Público Federal. Deferiu-se a decretação de segredo de justiça.

Diante da documentação acostada ao habeas corpus, dispensou-se a apresentação de informações. O Ministério Público Federal ofereceu parecer pela denegação da ordem, afirmando que “em situações como a presente, a conclusão a respeito de eventuais delitos só se faz possível através da quebra dos sigilos fiscal e bancário. Não há outra linha de investigação possível.”

Sobrevieram dois pedidos de reconsideração do indeferimento da liminar. O primeiro foi indeferido pelo Ministro Peçanha Martins. O segundo continha, alternativamente, o requerimento de julgamento na sessão seguinte, uma vez que aos autos já foi juntado o parecer ministerial.

É o relatório.

VOTO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relator): A ordem deve ser concedida. Como salientava Carnelutti, o processo penal já configura, em si mesmo, uma pena para o réu. Os rigores da persecução penal são deveras estigmatizantes, daí a necessidade de cuidado no seu trato. Desde que se optou por um modelo de Estado de cariz democrático, em que se assinala a dignidade da pessoa humana como seu fundamento, toda intervenção na esfera íntima do cidadão deve ser encarada como exceção. Somente se justifica tal procedimento em caso de necessidade e atendendo-se aos requisitos legais, faticamente demonstrados.

Revista Consultor Jurídico

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