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Inexistência de Prazo para Remessa de Procedimento com Autoria Ignorada

por Editoria Delegados
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“O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça.” (Min. Celso de Melo, Supremo Tribunal Federal, em sede do HC 84548/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 21.6.2012).

 

Por Ayrton Figueiredo Martins Júnior

 

            A Polícia Civil é uma instituição cuja finalidade precípua reside na investigação das infrações penais comuns, excluídas as competências federal e militar, segundo a Constituição Republicana, art. 144,§4º, c/c arts. 4º, 6º, 10, 13 e ss., do Código de Processo Penal.

 

            No entanto, em virtude dos grandes saltos evolutivos da sociedade gaúcha, principalmente na década de 90 e nos anos 2000, pós o advento da era da informação, a criminalidade também se avolumou de maneira arrasadora. Fatos tais qual o advento da popularização de drogas pesadas como a cocaína e seus derivados (“crack”, “oxy”) e o caos penitenciário levaram ao grande contingente de procedimentos nas Delegacias de todo o estado.

 

            Tal problemática trouxe a lume nova cobrança, frente ao controle externo da atividade policial, referente aos procedimentos policiais sob investigações e o atendimento dos prazos legais.

 

            Sabendo-se que a atividade de polícia é eminentemente administrativa, temos que toda Autoridade Policial deve submeter-se ao crivo da legalidade, sendo cingindo seus atos pelo princípio da estrita legalidade administrativa, previsto no art. 37, “caput”, da CRFB 1988. O doutrinador Hely Lopes Meirelles[i] referiu-se sobre tal princípio:

 

“A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.”

 

            Neste ponto, a Autoridade Policial deve cingir-se aos exatos lindes estabelecidos pela legislação processual penal, no que se refere aos prazos para elucidação de crimes, devendo obedecer às normas e atuar nos exatos limites por elas previstos. Depreende-se disto que, havendo previsão estrita, não pode o Delegado de Polícia extravasar tais limites sob pena de incidir em abuso, eivando de ilegalidade o ato praticado.

 

            Primeiramente, prevê o Código de Processo Penal:

“Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.

       § 1o A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente.

       § 2o No relatório poderá a autoridade indicar testemunhas que não tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas.

       § 3o Quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz.”

 

            Fazendo-se uma digressão lógica dos termos acima carreados, é lúcido que o código processual se refere aos casos em que se tem uma autoria conhecida, ou seja, a persecução penal, ainda na fase preliminar, já possui um (uns) indivíduo (s) apontados como investigados e, comprovadamente autores do delito. Tanto é que os termos utilizados pelo legislador são “indiciado” e “preso”.

 

            Segundo a doutrina[ii], consiste o indiciamento é ato privativo do Delegado de Polícia:

 

“Indiciamento é a imputação a alguém, no inquérito policial, da prática da infração penal que está sendo apurada.”

 

            No entendimento do Supremo Tribunal Federal, temos posicionamento do Excelentíssimo Ministro CELSO DE MELLO, exarado nas razões de seu voto proferido no bojo do Inq 2041/MG, de 30/09/2003:

 

“Cumpre reconhecer, neste ponto, por oportuno, que o indiciamento de alguém, por suposta prática delituosa, somente se justificará, se e quando houver indícios mínimos, que, apoiados em base empírica idônea, possibilitem atribuir-se, ao mero suspeito, a autoria do fato criminoso. É inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, mas esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal. É por essa razão que o saudoso JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal”, p. 105, item n. 6.5, 10ª ed., 2003, Atlas), ao versar o tema do indiciamento, formula, acertadamente, a seguinte advertência: “Indiciamento é a imputação a alguém, no inquérito policial, da prática da infração penal que está sendo apurada. Embora a lei não se refira expressamente a ‘indiciamento’, menciona por várias vezes o ‘indiciado’ (arts. 6º, VIII, IX, 14, 15 etc.). Diante da colheita dos elementos que indicam ser uma pessoa autora do crime, a autoridade deve providenciar seu indiciamento, não constituindo o fato constrangimento ilegal (v. também item 648.2). Ao contrário, se não houver indícios razoáveis da autoria, mas mera suspeita isolada, não se justifica o indiciamento.”(grifei) Essa mesma percepção do tema é revelada por FERNANDO CAPEZ (“Curso de Processo Penal”, p. 80, item n. 10.16, 2ª ed., 1998, Saraiva), cujo magistério, a propósito da efetivação do ato de indiciamento, exige que este resulte “(…) da concreta convergência de sinais que atribuam a provável autoria de crime a determinado, ou a determinados, suspeitos”(grifei). Também perfilha igual entendimento, em magistério extremamente preciso sobre o tema ora em análise, o saudoso e eminente Professor SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO (“O indicia-mento como ato da Polícia Judiciá-ria”, in RT 577/313-316): “O indiciar alguém, como parece claro, não há de surgir qual ato arbitrário da autoridade, mas legítimo. Não se funda, também, no uso de poder discricionário, visto que inexiste a possibilidade legal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidade do ato. O suspeito sobre o qual se reuniu prova da autoria da infração, tem de ser indiciado. Já aquele que contra si possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito. A mera suspeita não vai além da conjectura, fundada em entendimento desfavorável a respeito de alguém. As suspeitas, por si sós, não são mais que sombras; não possuem estrutura para dar corpo à prova da autoria.” (grifei). Cabe referir, finalmente, a expressiva lição de SYLVIA HELENA F. STEINER (“O Indiciamento em Inquérito Policial como Ato de Constrangimento – Legal ou Ilegal”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 24/305-308, 307), hoje eminente Juíza do Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Estatuto de Roma: “(…) levando-se em conta que a Constituição Federal centra o rol de direitos e garantias individuais no princípio da dignidade do ser humano não temos dúvidas em apontar a ilegalidade do ato de indiciamento antes da definição da materialidade delitiva e antes que suficientes os indícios de autoria.” (grifei) Em suma: o indiciamento não pode, nem deve, constituir um ato de arbítrio do Estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia Judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito”.

 

 

            Abordando os mesmos pontos da presente discussão, na realidade da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, a Port. 164/2007/GAB/CH/PC dispôs que, concluído o procedimento policial, caberá à Autoridade Policial remeter os autos à autoridade competente, ou seja, ao MM. Juízo. No entanto, os prazos para tal remessa contar-se-iam a partir de dois termos específicos: o indiciamento e/ou a data da prisão em flagrante delito.

 

            Mais adiante, a mesma portaria, em caso de descuido quanto ao prazo de remessa, caberia à Autoridade Policial a justificativa de tal desatendimento, no próprio despacho de remessa de autos. Vejamos:

 

“Subseção XIII

Da Remessa

Art. 103. Concluído o procedimento policial, será determinada a remessa à autoridade competente.

Parágrafo único: O registro da remessa deverá ser feito no sistema informatizado disponível e, nas Delegacias de Polícia em que ainda não houver o SPJ, também no Livro de Instauração Distribuição e Remessa.

Art. 104. A remessa do procedimento policial à autoridade competente deverá ser documentada através de recibo firmado pelo funcionário responsável pelo recebimento, onde conste sua identificação legível, a data e o local da entrega.

Art. 105. Os procedimentos policiais serão remetidos à autoridade competente nos prazos fixados por lei.

Art. 106. Para efeitos do inciso anterior, considera-se início do prazo a data da prisão ou do indiciamento.

Art. 107. Quando a remessa ocorrer com o prazo vencido, a autoridade policial, no relatório ou no despacho de remessa, justificará tal circunstância.”

 

Uma vez mais, ressaltamos que os prazos de cumprimento obrigatórios pela Autoridade Policial se referem a procedimentos com autoria conhecida, ou seja, referendando a previsão legal, a douta chefia de polícia regrou a produtividade cartorária das Delegacias ao estipular o dever de obediência aos prazos de remessa de Inquéritos Policiais ou Termos Circunstanciados que preveja indiciamento e/ou prisão do(s) autor(es) do(s) fato(s).

 

Consultando-se a jurisprudência, por razões óbvias, temos tão-somente arestos que tratam de inquéritos policiais e termos circunstanciados que, efetivamente, logrou-se êxito em se determinar a autoria do fato, como já bem afirmado. Assim, não se vislumbra qualquer menção a prazo de remessa quando as mesmas investigações ainda não possuírem uma conclusão referente à autoria do fato. Vejamos os seguintes precedentes do nosso Egrégio Tribunal de Justiça Gaúcho:

 

“Ementa: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 33, CAPUT, DA LEI 11.343/06. PROCESSO AGUARDA A REMESSA DO INQUÉRITO POLICIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EXCESSO DE PRAZO CONFIGURADO. Art. 10 DO CPP. Comprovado o excesso de prazo, pois transcorrido mais de 03 meses sem que tenha sido concluído o Inquérito Policial. Configurado está, pois, o constrangimento ilegal, sendo corolário lógico a concessão da ordem. ORDEM CONCEDIDA. (Habeas Corpus Nº 70047708961, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Catarina Rita Krieger Martins, Julgado em 23/03/2012)”

 

Outro:

 

“Ementa: HABEAS CORPUS. AMEAÇA. ART. 147 DO CÓDIGO PENAL. PROCESSO AGUARDA A REMESSA DO INQUÉRITO POLICIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EXCESSO DE PRAZO CONFIGURADO. Art. 10 DO CPP. Comprovado o excesso de prazo, pois transcorrido mais de 02 meses sem que tenha sido concluído o Inquérito Policial. Configurado está, pois, o constrangimento ilegal, sendo corolário lógico a concessão da ordem. Precedentes jurisprudenciais. ORDEM CONCEDIDA. (Habeas Corpus Nº 70046825626, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Catarina Rita Krieger Martins, Julgado em 14/02/2012)”

 

Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também se manifesta pela cobrança de prazos para procedimentos com autoria conhecida, como podemos extrair do seguinte precedente:

 

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE. EXCESSO DE PRAZO NA REMESSA DO INQUÉRITO À AUTORIDADE JUDICIÁRIA. DENÚNCIA RECEBIDA. LIBERDADE PROVISÓRIA. TESE NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.

I – Tendo sido a denúncia recebida e encontrando-se o processo em regular andamento, a alegação de constrangimento ilegal por eventual demora na remessa do inquérito policial à autoridade judiciária restou superada (Precedentes).

II – Se o pedido de liberdade provisória não foi apreciado em segundo grau de jurisdição, dele não se conhece, sob pena de supressão de instância (Precedentes).

Recurso parcialmente conhecido, e nesta parte desprovido.

(RHC 14.875/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 02/10/2003, DJ 03/11/2003, p. 327)”

 

           

            Observa-se, que findas as diligências, apenas restarão dois caminhos a seguir: a conclusão do feito com posterior indiciamento ou não indiciamento dos suspeitos, ou aguardo por novas diligências e/ou informações que levem a uma provável autoria, caso não haja qualquer suspeito para a infração penal investigada.

 

            Nos termos do art. 17 do Código de Processo Penal, nos casos em que não se vislumbrou a ocorrência de delito, ou que, por maiores que fossem os esforços envidados, não se atingiu a identidade do provável autor, não cabe à Autoridade Policial determinar, ex officio, o arquivamento de feitos. O Delegado de Polícia deverá sempre realizar a remessa de autos com tal solicitação ao MM. Juízo, para que este, então, venha a dirimir sobre a solicitação. Nestes termos:

 

   “Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.

   Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.”

                                                                                                                                             

            Diante do exposto, resta claro que, em que pese a obrigatoriedade da investigação e da continuidade das diligências em prol da elucidação de toda e qualquer infração penal da competência administrativa da Polícia Civil, não se possui previsão legal de obrigatoriedade de remessa de autos, quando o procedimento investigatório resta ainda sem autoria conhecida.



[i] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.86.

[ii] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal, 10ª ed. Atlas, 2003, p. 105, item n. 6.5.



Sobre o autor

 

Ayrton Figueiredo Martins Júnior é Delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul

 

 

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