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Infiltração de agentes policiais na internet nos casos de ‘pedofilia’

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO
Infiltração de policiais na internet nos casos de ‘pedofilia’


JURÍDICO


 

Por Emerson Wendt[1]

RESUMO

 

O artigo analisa o Projeto de Lei do Senado nº 100/2010, que trata da autorização de infiltração de agentes policiais na internet em casos de crimes contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes. Inicialmente, o assunto é introduzido referenciando-se a legislação já existente no Brasil e sua ineficácia quanto à forma prevista. A seguir, o estudo analisa os dispositivos que serão modificados no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), caso haja aprovação do projeto, passando, ao final, a fazer ponderações e argumentações necessárias para o debate e compreensão do tema em sua complexidade, já que a intenção do legislador com a modificação legal é de não incriminar eventual conduta penal do policial que se infiltra com autorização judicial em casos de “pedofilia”. Além disso, avalia a necessidade de se utilizar a medida judicial de infiltração de agentes frente aos ambientes virtuais públicos ou abertos.

Palavras-chave: pedofilia; infiltração policial na internet; agentes infiltrados; ECA; Projeto de Lei do Senado.

 

ABSTRACT

 

This article analyzes the Senate’s Bill no. 100/2010, regarding the authorization to use infiltration of police officers into the internet in order to investigate crimes against sexual freedom of children and adolescents. Initially, this matter is introduced by making a reference to the already existing law in Brazil and its inefficiency in the manner prescribed. Furthermore, the study analyzes the legal mechanisms that will be modified in the “Estatuto da Criança e Adolescente (ECA)”, in case the Bill is approved. It also discusses the theme further, bringing considerations and arguments needed for the debate and understanding of this issue and its complexity, since the intention of the legislator, when it comes to modifying the existing law, is not to incriminate incidental criminal conduct by police officers who infiltrate with a court order in cases of “pedophilia”. In addition, there is an evaluation of the necessity of using the police officer infiltration judicial measure towards public or private virtual environments.

Keywords: pedophilia; police infiltration into the internet; infiltrated agents; ECA; Senate’s Bill.

Sumário: 1. Introdução; 2. Aspectos previstos no Projeto de Lei do Senado nº 100/10; 3. Discussões necessárias e conclusões; 4. Referências bibliográficas.

  1. 1. Introdução

 

O Senado Federal aprovou o que pode ser um grande reforço ao combate à pedofilia no Brasil. O PLS[2] 100/10[3] permite a infiltração de agentes policiais na rede mundial de computadores para investigar crimes desse tipo, acrescentando cinco artigos ao Estatuto da Criança e do Adolescente[4] no Título VI, “Do Acesso à Justiça”.

A matéria ainda terá sequência no Congresso Nacional, pois depende da análise da Câmara dos Deputados e, pelo conteúdo e relevância, deve ter votação rápida. O PLS referido teve origem na CPI da Pedofilia.

O objetivo principal é[5]

 

prevenir e reprimir o chamado internet grooming, expressão inglesa que define o processo pelo qual o pedófilo, protegido pelo anonimato, seleciona e aborda pela rede as potenciais vítimas, crianças ou adolescentes e as vai preparando para aceitarem abusos. A palavra grooming pode ser traduzida por preparar, treinar, adestrar.

 

Portanto, o interesse do legislador é a proteção de crianças e adolescentes com auxílio da atividade investigativa na internet. Não é para menos, pois que o processo de abertura de um país democrático – como o Brasil – permite acessos irrestritos à internet, que independem da idade. Quanto mais tenra a idade, presume-se, maior a possibilidade de exposição na internet e, consequentemente, maiores os riscos, já que não possuímos uma “educação digital” adequada.

Certo é que o Brasil já possui uma legislação sobre infiltração, porém não específica e com vários aspectos restritivos à atuação policial investigativa, porquanto em momento algum permite ao agente infiltrado se imiscuir na criminalidade e não ser penalizado por isso, ou seja: não existe uma excludente de ilicitude para o policial que adentra na criminalidade para buscar informações e usá-las contra o crime.

Nesses parâmetros, a infiltração policial foi normatizada através dos seguintes atos normativos: no art. 2º, V, da Lei 9.034/95[6]; no art. 20 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto nº 5.015/2004); no art. 50 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 5.687/2006), e; no art. 53, I, da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, chamada de “Lei de Drogas”.

Tais atos normativos apenas se limitaram a citar o “instituto” da infiltração policial, porém não o descreveram.

Com efeito, os limites normativos atuais à infiltração policial são a estendê-la apenas ao crime organizado (quadrilha ou bando, associação e organização criminosa), prejudicando sua adoção aos casos isolados de atuação criminal, como ocorre em alguns casos de pedofilia.

 

  1. 2. Aspectos previstos no Projeto de Lei do Senado nº 100/10

 

O PLS vem para disciplinar os procedimentos relativos à infiltração policial de agentes para investigação de crimes contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes. Como referido, serão acrescidos cinco artigos ao ECA. Serão os artigos 190-A, 190-B, 190-C, 190-D e 190-E.

Para melhor compreensão do tema a comentários e críticas em relação ao texto, elencá-lo-emos e passaremos às considerações.

 

Art. 190-A. A infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de investigar os crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D desta Lei e nos arts. 217-A, 218, 218-A e 218-B do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) será precedida de autorização judicial devidamente circunstanciada e fundamentada, que estabelecerá os limites do referido meio de obtenção de prova, ouvido o Ministério Público.

§ 1º À infiltração, que não será admitida se a prova puder ser obtida por outros meios, aplicam-se as seguintes regras:

I – dar-se-á mediante requerimento do Ministério Público ou representação do delegado de polícia e conterá a demonstração de sua necessidade, o alcance das tarefas dos policiais e os nomes ou apelidos das pessoas investigadas, bem como, quando possível, os dados de conexão ou cadastrais que permitam a sua identificação;

II – não poderá exceder o prazo de 90 (noventa) dias, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que o total não exceda a 720 (setecentos e vinte) dias e seja demonstrada sua efetiva necessidade, a critério da autoridade judicial.

§ 2º A autoridade judicial e o Ministério Público poderão requisitar relatórios parciais da operação de infiltração antes da conclusão do prazo de que trata o inciso II do § 1º deste artigo.

§ 3º Para efeitos do disposto no inciso I do § 1º deste artigo, consideram-se:

I – dados de conexão: informações referentes à hora, à data, ao início, ao término, à duração, ao endereço de Protocolo Internet (IP) utilizado e ao terminal de origem da conexão;

II – dados cadastrais: informações referentes ao nome e endereço do assinante ou usuário registrado ou autenticado para a conexão a quem um endereço de IP, identificação de usuário ou código de acesso tenha sido atribuído no momento da conexão.

 

O legislador trouxe várias limitações à infiltração policial, condicionando-a, logicamente, à decisão judicial fundamentada e circunstanciada que estabelecerá os limites em que deve ocorrer. Da mesma forma, só deve ser autorizada nos casos dos crimes previstos ou no Código Penal ou no próprio ECA.

Os casos de crimes investigados em que pode ocorrer a infiltração policial é situação de numerus clausus, ou seja, não pode ser ampliada por entendimento de Delegado de Polícia, membro do Ministério Público ou do magistrado. Então, somente nos seguintes casos é que poderá o magistrado deferir a medida cautelar processual de infiltração policial:

  1. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente (art. 240 ECA);
  2. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente (art. 241 ECA);
  3. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente (art. 241-A ECA);
  4. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente (art. 241-B ECA);
  5. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual (art. 241-C ECA);
  6. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso (art. 241-D ECA)
  7. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos (art. 217-A do Código Penal);
  8. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem (art. 218 do Código Penal);
  9. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem (art. 218-A do Código Penal);
  10. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone (art. 218-B do Código Penal).

Portanto, em dez situações diferenciadas, de crimes que atentem diretamente contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes, é que poderá haver a autorização de infiltração policial.

Importante atentar que a autorização também é possível no caso ocorrer alguma das situações previstas nos parágrafos dos artigos mencionados, como v.g. nos casos de “quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos” nos casos de submissão, indução ou atração à prostituição ou outra forma de exploração sexual (Inc. I do §2º do art. 218-B do Código Penal).

De outra forma, se a solicitação de autorização da infiltração de agentes for solicitada por um dos delitos em específico e no decorrer do prazo o agente descobrir a ocorrência de outro delito, também previsto no rol citado, tal circunstância, s.m.j., deve ser imediatamente comunicado à Autoridade Judicial, que agregará na autorização a possibilidade de infiltração sobre essa nova circunstância criminal.

No caso de o agente policial infiltrado descobrir a ocorrência de qualquer outro delito que não os elencados para deferir a medida, poderá a autoridade policial, condutora da medida, solicitar autorização judicial de prova emprestada e encaminhar os documentos comprobatórios a quem o estiver investigando.

A exemplo do que acontece com a interceptação telefônica, a infiltração[7], segundo previsão do §1º do art. 190-A do PLS, não será deferida se houver outra forma de apuração do fato criminal. Ou seja, deve ser comprovada a necessidade da medida restritiva e que a investigação criminal não terá sucesso se não por meio da infiltração de agentes policiais.

Além disso, para ser deferida a medida deve cumprir dois requisitos específicos:

  1. dar-se mediante requerimento do Ministério Público ou representação do delegado de polícia e conter a demonstração de sua necessidade, o alcance das tarefas dos policiais e os nomes ou apelidos das pessoas investigadas, bem como, quando possível, os dados de conexão ou cadastrais que permitam a sua identificação;

Quanto aos legitimados ativos a requerer a autorização judicial de infiltração nada a comentar. Porém, o texto legal repete a exigência de demonstração da necessidade da medida judicial já contida indiretamente no texto do § 1º do art. 190-A.

Aspecto diferenciado, e que já é aplicado na prática de repressão qualificada criminal ao crime organizado, diz respeito à necessidade do promotor ou delegado descrever o alcance das tarefas dos policiais, ou seja, como serão feitas as diligências de infiltração e quais os resultados esperados com elas.

Também, obrigar-se-ão o delegado e/ou promotor a indicar os nomes ou apelidos das pessoas investigadas. A contrario sensu, a decisão não poderá ser deferida pela simples suspeita de usuário ainda não identificado sequer pelo apelido estar aliciando crianças em chats.

Felizmente, a exigência não pautou a necessidade, imprescindível, de informar os dados de conexão ou cadastrais identificativos do alvo investigado, pois tal informação dificilmente se terá em início de investigações criminais.

  1. a medida poderá ser deferida por prazo de 90 (noventa) dias, porém sem prejuízo de eventuais renovações e desde que o total não exceda a 720 (setecentos e vinte) dias. Nos casos de renovação deve ser demonstrada “sua efetiva necessidade, a critério da autoridade judicial”.

Quis o legislador se precaver, pois que eventual renovação de medidas cautelares processuais penais em fase de investigação sempre exigiram fundamentação e demonstração da necessidade de prorrogação.

No período de autorização da infiltração policial o magistrado e/ou o promotor poderão solicitar relatórios parciais da investigação criminal, o que é de todo prudente e natural, pois que as descrições das atividades do policial indicado para atual como infiltrado poderão dar subsídios para eventual medida cautelar e fundamental para, por exemplo, interromper a execução de um dos crimes investigados.

No que diz respeito ao §3º do art. 190-A, que traz as definições de “dados de conexão” e “dados cadastrais”, há que se referir que o PLS poderia ter inserido o conceito de “dados de acesso”, pois seriam referentes exclusivamente aos provedores de conteúdo[8] e não aos provedores de conexão[9]. No entanto, poder-se-á compreender a inclusão do conceito de “dados de acesso” no de “dados cadastrais”, porquanto são “informações referentes ao nome e endereço do assinante ou usuário registrado ou autenticado para a conexão a quem um endereço de IP, identificação de usuário ou código de acesso tenha sido atribuído no momento da conexão.” (grifos nossos)

Os acessos a chats servem para exemplificar a crítica à falta de conceituação mais específica aos “logs de acesso”, pois que o usuário já está conectado à internet através de um provedor de conexão e apenas acessa um serviço disponível pelo provedor de conteúdo (Terra, Uol etc.) sem, em regra, a necessidade de se autenticar por usuário e senha, apenas por um nickname[10] ou apelido. Tal dado será o referencial para solicitar os dados cadastrais ao provedor de conteúdo. No entanto, este provedor não terá condições de informar os dados cadastrais e sim somente os dados de protocolo de internet (IP), data e hora do acesso, informação que conduzirá os investigadores à nova solicitação de dados, agora de conexão, junto ao provedor de conexão.

 

Art. 190-B. As informações da operação de infiltração serão encaminhadas diretamente ao juiz responsável pela autorização da medida, que zelará pelo seu sigilo.

Parágrafo único. Antes da conclusão das operações, o acesso aos autos será reservado ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia responsável pela operação, com o objetivo de garantir o sigilo das investigações.

 

A previsão do art. 190-B também é lógica, porém não vinha sendo prevista em vista de outras medidas cautelares similares, como os casos de mandados de busca e apreensão e interceptação telefônica. Aliás, em relação a esta última, tão somente a Resolução nº 59/08[11], do CNJ, veio a impor algumas medidas visando a preservação do sigilo.

Fundamental, para o bom andamento da investigação criminal, é a previsão de que o acesso aos autos é reservado ao juiz, ao promotor e ao delegado de polícia até a “conclusão das operações”, ou seja, até ser necessária a técnica operacional de infiltração policial.

 

Art. 190-C O agente policial infiltrado que deixar de observar a estrita finalidade da investigação responderá pelos excessos praticados.

Parágrafo único. Não comete o crime o policial que oculta a sua identidade para, por meio da internet, colher indícios de autoria e materialidade dos crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D desta Lei e nos arts. 217-A, 218, 218-A e 218-B do Código Penal, observado o disposto no caput deste artigo.

 

O caput do art. 190-C também traz uma previsão lógica. Neste caso até desnecessária, pois que todo e qualquer agente policial que exceder aos limites de sua atuação, no caso de investigação, estará sujeito às penalidades (administrativas, cíveis e penais).

No entanto, a previsão do único parágrafo do art. 190-C vem a contento e com objetivo de atender uma necessidade fundamental da infiltração policial, qual seja, a de não se atribuir conduta típica penal ao agente policial infiltrado que oculta sua identidade para colher materialidade e autoria do(s) crime(s) investigado(s).

 

Art. 190-D. Os órgãos de registro e cadastro público poderão incluir nos bancos de dados próprios, mediante procedimento sigiloso e requisição da autoridade judicial, as informações necessárias à efetividade da identidade fictícia criada.

Parágrafo único. O procedimento sigiloso de que trata esta Seção será numerado e tombado em livro específico.

 

O art. 190-D traz a grande inovação na infiltração policial, previsão esta que falta na legislação atualmente vigente sobre o instituto: a possibilidade de o agente infiltrado usar uma identificação outra que não a real e, ainda, que esta identificação fictícia esteja devidamente registrada, mediante procedimento sigiloso e por requisição do juiz, no órgão de registro e cadastro público competente.

Em regra – em vários Estados – essa atribuição de registro civil é dos Departamentos de Identificação, que deverão se adequar à exigência legal, quando aprovada e sancionada. Também, tais setores deverão, necessariamente, adequar-se à necessidade de preservação do sigilo. O PLS não está prevendo, no entanto, a necessidade de que os servidores públicos envolvidos na confecção da identificação fictícia assinem um documento de confidencialidade, o que poderia ser feito nos termos do Decreto 4.553/02[12], o que seria aconselhável e adequado.

Outro aspecto importante relacionado à preservação da identidade do policial infiltrado é que os dados relativos a essa identificação fictícia serão colocados em autos apartados, conforme previsão do parágrafo único do art. 190-E.

 

Art. 190-E. Concluída a investigação, todos os atos eletrônicos praticados durante a operação deverão ser registrados, gravados, armazenados e encaminhados ao juiz e ao Ministério Público, juntamente com relatório circunstanciado.

Parágrafo único. Os registros de que trata o caput deste artigo serão reunidos em autos apartados, apensados ao processo criminal juntamente com o inquérito policial, assegurando-se a preservação da identidade do agente policial infiltrado, bem como a intimidade das crianças e adolescentes envolvidos.

 

A previsão de registro de todos os atos eletrônicos realizados pelo agente policial infiltrado é, também, uma forma de resguardo da preservação dos direitos e garantias fundamentais e, ainda, de adequação da conduta do policial em ação com aquela informada no momento do requerimento/representação.

O problema que advirá é justamente a escolha da melhor ferramenta, hardware e software, para esse registro de todos os atos eletrônicos. A ferramenta deve ser, s.m.j., informada desde o requerimento/representação inicial, pois facilitará a explicação de como as provas de autoria e materialidade serão colhidos. No entanto, a escolha da ferramenta deve recair sobre uma que registre todos os atos do agente policial infiltrado e, ao final de cada sessão, gere uma identificação única de cada arquivo eletrônico gerado. Assim, a prova não poderá ser contestada posteriormente.

Esses registros eletrônicos deverão fazer parte dos autos que ficarão em apartado do processo principal, porém apensados a ele juntamente com o Inquérito Policial. Quis o legislador proteger não só a identidade do agente infiltrado como também a intimidade das crianças e adolescentes eventualmente envolvidos e vítimas dos alvos investigados.

 

  1. 3. Discussões necessárias e conclusões

 

Algumas ponderações são necessárias e oportunas quanto ao PLS que visa modificar o ECA e acrescentar procedimento investigativo devidamente autorizado judicialmente.

Primeiro, o PLS não adotou e nem inseriu o conceito social de “pedofilia”[13], porquanto manteve o linguajar técnico e vem estabelecer que a infiltração de agentes policiais ocorrerá nos casos em que há necessidade de investigar crimes contra a liberdade sexual de criança e adolescente.

Segundo, o PLS veio a considerar a possibilidade, numa investigação criminal não necessariamente vinculada ao crime organizado, de efetivar uma infiltração de agentes policiais, que, além de poder usar uma identificação fictícia, também poderão imiscuir-se no mundo criminoso dos alvos investigados, por crimes que atentem contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes, sem que isso venha a ser considerado crime, ou seja, estarão abrangidos por uma excludente legal.

Essa previsão legal promete proteger o policial infiltrado de forma que não se havia visto ainda na legislação pátria. Estar-se-á, pela primeira vez, permitindo o que se chama de infiltração policial com estória-cobertura (EC) “complexa” ou “profunda”.

Em outros termos e visando a compreensão do tema, a infiltração policial é uma das espécies de “operações encobertas”, conforme o Manual das Nações Unidas de Práticas contra a Corrupção (United Nations Handbook on Practical Anti-Corruption) (UNITED NATIONS, 2004)[14]. Nela, ação de infiltração, a identidade do policial é dissimulada/fictícia com o objetivo de se detectar, confirmar, prevenir ou reprimir as atividades criminosas.

A atividade de infiltração, assim, poderá ser simples ou complexa. Esta também é conhecida por profunda e aquela também é conhecida por superficial.

Na primeira, simples, não há necessidade de um maior planejamento e em regra ocorre em curto espaço de tempo. Também, não há tanta preocupação quanto à segurança, pois o agente infiltrado mantém no máximo um ou dois contatos com o(s) alvo(s).

Já na infiltração complexa ou profunda há que existir um planejamento aprimorado e o tempo despendido também é maior, pois que a proximidade e o tempo contínuo com o(s) alvo(s) investigado(s) pode colocar em risco os agentes infiltrados. Em outros termos, o grau de envolvimento do agente infiltrado com o(s) investigado(s) será muito maior, causando-lhe maior risco à vida e ao sucesso da missão investigativa.

Importantes as observações de MARIATH (2009)[15], quando trata de operações encobertas e infiltração:

 

Vê-se, pois, que uma Operação Encoberta (Simples ou Complexa) possui como alicerce uma técnica denominada “Estória-Cobertura” (EC), que consiste no emprego de artifícios destinados à elaboração de uma “estória” para encobrir as identidades de pessoas, instalações ou organizações, com o objetivo de mascarar os seus reais propósitos.

Na atividade policial, essa técnica visa a alcançar objetivos (obtenção do dado, aproximação com o alvo, permanência em determinado local, realização de prisões, etc.) com a manutenção do sigilo da investigação, além de proporcionar a proteção do pessoal, do material e das instalações.

Em suma, o policial cria e vivencia uma “estória”, fingindo o que não é (simulação), para encobrir com astúcia (dissimular) os objetivos da ação policial, e, portanto, garantir o sigilo e sucesso da empreitada.

 

Assim, a utilização da técnica de infiltração tem inúmeros aspectos positivos e é fundamental à colheita de elementos probatórios, de autoria e materialidade. Serve, de outra forma, para preservar a identidade dos policiais envolvidos, trazendo proteção aos mesmos, além de indiretamente promover a proteção dos órgãos envolvidos. No caso do PLS tem a missão de prevenir e reprimir delitos relacionados à liberdade sexual de crianças e adolescentes, preservando-as.

Terceira e última ponderação diz respeito a se procurar estabelecer corretamente o aspecto da “necessidade” da medida judicial de autorização de infiltração policial nos casos de atentado contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes.

Importante trazê-la a baila em virtude de um único questionamento que poderá surgir: o ambiente virtual em que o “pedófilo” está procurando interagir, aliciar e “recrutar” crianças e adolescentes é público ou restrito?

A dúvida não ocorre nos casos em que os ambientes forem restritos, porquanto nestes casos há necessidade de acesso com usuário e senha. Portanto, nessas condições haverá necessidade de se requerer/representar pelo deferimento da autorização de infiltração policial.

Podemos, para melhor compreensão, estabelecer uma correlação com a residência e os locais públicos, trazendo a discussão para o âmbito da realidade não virtual.

Não há óbice legal que o policial estabeleça uma vigilância sobre o investigado e o que ele faz em locais públicos, como ruas, supermercados, shoppings etc. Diferente, portanto, de se estabelecer uma vigilância sobre o investigado quando ele se encontra em sua residência, quando há necessidade de autorização judicial, não só para o ingresso mas também para coleta e produção de provas.

Assim, também não haveria óbice de se estabelecer vigilância sobre o alvo em ambientes abertos na internet, pois, uma vez públicos, são acessíveis a todos, inclusive policiais, que podem monitorar atividades criminosas dos investigados. No entanto, como já referido, uma vez que o acesso aos ambientes virtuais for restrito, necessária é a providência judicial de autorização, mesmo que para uma infiltração do tipo simples ou superficial.

Essas observações não poderão ser consideradas caso haja necessidade de se dissimular a identificação dos policiais investigadores. Nesse caso, há sempre necessidade da autorização judicial, sob pena do agente policial, sem a devida vênia judicial, incorrer em crimes e não estar abrangido pela excludente.

Concluindo o presente trabalho, sem pretensões de encerramento do assunto, mas, sim, de acirrar o debate jurídico e prático relativo às ferramentas disponíveis para auxílio na investigação policial, esta forma de infiltração de agentes policiais na internet, visando prevenir e coibir, formal e procedimentalmente, os crimes sexuais envolvendo crianças e adolescentes, é extremamente válida, inovadora e construtora de um novo ideário na investigação criminal.

 

  1. 4. Referências Bibliográficas

 

Agência Senado. Senado aprova infiltração de policiais na internet para investigar pedófilos. Publicado em 12/05/2011, às 19h18min. Disponível em: http://www.senado.gov.br/noticias/print.aspx?codNoticia=110049. Acesso em: 15 mai. 11.

 

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 15 mai. 2011.

 

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm. Acesso em: 15 mai. 2011.

 

BRASIL. Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9034.htm. Acesso em: 15 mai. 2011.

 

BRASIL. Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9296.htm. Acesso em: 15 mai. 2011.

 

Brasil. Decreto 4553, de 27 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto/2002/D4553Compilado.htm. Acesso em: 15 mai. 11.

 

Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 59, de 09 de agosto de 2008. Disciplina e uniformiza as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação de comunicações telefônicas e de sistemas de informática e telemática nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário, a que se refere a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_59.pdf. Acesso em: 15 mai. 11.

 

MARIATH, Carlos Roberto. Infiltração policial no Brasil: um jogo ainda sem regras. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2251, 30 ago. 2009. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/13413. Acesso em: 15 mai 11.

 

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 100/10. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=90127&tp=1. Acesso em: 15 mai. 11.

 

UNITED NATIONS. United nations handbook on practical anti-corruption. Measures for prosecutors and investigators. Vienna, September 2004. Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/crime/corruption/Handbook.pdf. Acesso em: 15 mai. 11.

 

Wikipédia. Pedofilia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedofilia. Acesso em: 15 mai. 11.



[1] Emerson Wendt é Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, exercendo as funções de Diretor do Gabinete de Inteligência e Assuntos Estratégicos da Polícia Civil do RS. É pós-graduado em Direito pela URI – Campus de Frederico Westphalen-RS – e especializado em investigação de crimes cibernéticos e atividade de inteligência policial. É membro da Associação Internacional de Investigação de Crimes de Alta Tecnologia e Professor dos cursos de Pós-Graduação em Direito Eletrônico da FADISP-SP e Gestão Estratégica para a Prevenção da Violência Local e Urbana da UNISINOS-RS.

[2] Projeto de Lei do Senado.

[3] Íntegra do PLS 100/10 disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=90127&tp=1. Acesso em: 15 mai. 11.

[4] Lei 8.069/90.

[5] Agência Senado. In Senado aprova infiltração de policiais na internet para investigar pedófilos. Publicado em 12/05/2011, às 19h18min. Disponível em: http://www.senado.gov.br/noticias/print.aspx?codNoticia=110049. Acesso em: 15 mai. 11.

[6] Esta Lei 9.034/95 em seu artigo 1º, literalmente, “define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. Portanto, a infiltração policial em casos de “pedofilia” através da internet só podem ser investigados quando estivermos frente a uma “quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. Esse entendimento prevalecerá até a aprovação final do PLS nº 100/10.

[7] Lei 9.296/96.

[8] O “provedor de conteúdo” não é, necessariamente, aquele que dá acesso à internet, mas aquele que disponibiliza conteúdos e serviços aos usuários, mesmo que gratuitamente. Exemplo de provedor de conteúdo no Brasil é o IG, Terra.

[9] Provedor de conexão é, como o nome já diz, aquele que dá acesso à internet através da autenticação de um terminal, para envio e recebimento de pacotes de dados pela Internet, mediante a atribuição de um número IP (Internet Protocol). Sem o provedor de conexão não há acesso à internet. Exemplos de provedores de conexão são as empresas GVT (Global Village Telecom) e Oi (Oi Telecom).

[10] Nome de usuário.

[11] Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 59 de 09 de agosto de 2008. Disciplina e uniformiza as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação de comunicações telefônicas e de sistemas de informática e telemática nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário, a que se refere a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_59.pdf. Acesso em: 15 mai. 11.

[12] Brasil. Decreto 4553, de 27 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto/2002/D4553Compilado.htm. Acesso em: 15 mai. 11.

[13] A concepção social de “pedofilia” para definir os “crimes sexuais” cometidos contra criança e adolescentes não é totalmente errônea, porém é tida mais no aspecto médico do termo. A referência ao termo é contumaz e não necessariamente da técnica jurídica. Inclusive, o nosso legislador brasileiro a utilizou quando instalou a chamada CPI da Pedofilia. Vejamos o que traz o Wikipédia a respeito da conceituação de “pedofilia”.

A Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS), item F65.4, define a pedofilia como “Preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou do outro sexo, geralmente pré-púberes”.

O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 4th edition (DSM-IV), da Associação de Psiquiatras Americanos, define uma pessoa como pedófila caso ela cumpra os três quesitos abaixo:

  1. 1. Por um período de ao menos seis meses, a pessoa possui intensa atração sexual, fantasias sexuais ou outros comportamentos de caráter sexual por pessoas menores de 12 anos de idade ou que ainda não tenham entrado na puberdade.
  2. 2. A pessoa decide por realizar seus desejos, seu comportamento é afetado por seus desejos, e/ou tais desejos causam estresse ou dificuldades intra e/ou interpessoais.
  3. A pessoa possui mais do que 12 anos de idade e é no mínimo 5 anos mais velha do que a criança. Este critério não se aplica a indivíduos com 12-13 anos de idade ou mais, envolvidos em um relacionamento amoroso (namoro) com um indivíduo entre 17 e 20 anos de idade ou mais. Haja vista que nesta faixa etária sempre aconteceram e geralmente acontecem diversos relacionamentos entre adolescentes e adultos de idades diferentes. Namoro entre adolescentes e adultos não é considerado pedofilia por especialistas no assunto. (Exemplo: O namoro entre uma adolescente de 14 anos e um jovem de 18 anos). In Wikipédia. Pedofilia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedofilia. Acesso em: 15 mai. 11.

[14] UNITED NATIONS. United nations handbook on practical anti-corruption. Measures for prosecutors and investigators. Vienna, September 2004. Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/crime/corruption/Handbook.pdf. Acesso em: 15 mai. 11.

[15] MARIATH, Carlos Roberto. Infiltração policial no Brasil: um jogo ainda sem regras. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2251, 30 ago. 2009. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/13413. Acesso em: 15 mai 11.

 

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