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A venda de bebidas alcóolicas a criança e adolescentes e interpretação sistemática

por Editoria Delegados
22nov12-william.2

 

 

TÍTULO ORIGINAL: A VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS A CRIANÇAS E ADOLESCENTES
E A VERDADEIRA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA

 

É perceptível para os operadores do direito, notadamente nos últimos tempos, o crescimento dos defensores da corrente jurídica que tenta emplacar a tese de que o fornecimento de bebida alcoólica a crianças e adolescentes não seria crime, lecionando que tal agir configura mera contravenção penal. Algumas vozes, ainda mais simplórias, sustentam a atipicidade da referida conduta.

Dada a dimensão social do problema, aliada ao resultado de pesquisas realizadas acerca dos efeitos da bebida alcoólica em menores de idade, tem-se que tal entendimento cresce ao arrepio das finalidades do legislador pátrio e da sociedade como um todo.

O que causa maior preocupação é ver que referida tese, de argumentos levianos que vão de encontro aos fundamentos jurídico-sociais do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, não apenas está sendo adotado por defensores de acusados e réus, como também vem sendo, cada vez mais, acatada pelas cortes superiores a magistrados de primeiro grau.

O tratamento que por alguns está sendo dispensado à questão, além de negligenciar a proteção merecida pelos menores, como pessoas em desenvolvimento, trás conseqüências práticas desastrosas, como penas irrisórias, prescrição de ações em curso, sentimento de impunidade, etc.

Por não se aprazer com os inconsistentes argumentos dessa tese e, pelos fundamentos jurídicos a seguir expostos, é forçoso reconhecer que a prática de fornecer bebida alcoólica a menores de idade constitui crime e como tal deve ser repreendida, não apenas para se estabelecer a sensata reprovação e prevenção de sua ocorrência, mas para dar efetividade aos ditames protetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição Federal. Veja-se:

A Constituição Federal, em seu art. 227, caput e §4°, estabelece:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(…)
§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

Iniciando-se a análise do tema pela norma basilar de toda a matéria, resta claro que a Constituição Federal firmou que é dever da sociedade brasileira estar empenhada na proteção integral de crianças e adolescentes. Para isso, asseverou, por meio da expressão a lei punirá, que instrumentos seriam criados para punição daqueles que infringirem seus dispositivos.
Foi sob a égide da proteção integral que surgiu, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069), que, logo nas suas disposições preliminares, dispõe:

“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

E, seguindo a mesma linha, dando ênfase ao modelo protecionista adotado e pensando em dar efetividade às normas de proteção e repressão, o próprio ECA, em seu art. 243, estampou como crime a conduta daquele que:

Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:
Pena – detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.

A norma visa responsabilizar aquele que coloca à disposição de menores, por meio dos verbos que o tipo incriminador elenca, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, sendo a bebida alcoólica, a toda evidência, um desses produtos.

Entretanto, na contramão do direito, alguns juristas e profissionais da área vêm sustentando a tese segundo a qual a conduta de quem fornece bebida alcoólica a menor de idade estaria tipificada no art. 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais1.
Sustentam, os defensores desta teoria, a utilização do que entendem ser uma “interpretação sistemática” do Estatuto da Criança e do Adolescente, aduzindo que o próprio Estatuto, ao diferenciar bebida alcoólica (art. 81, II) de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida (art. 81, III), demonstraria que a bebida alcoólica não entraria  inserta no tipo do art. 243.

Com todo o respeito aos que assim lecionam, não podemos admitir que o simples fato de o legislador não ter inserido no artigo 243 do ECA o texto contido no inciso II, do artigo 81 da Lei nº 8.069/90 afasta as bebidas alcoólicas do seu âmbito de incidência.

A interpretação sistemática não abrange apenas os artigos 81 e 243 do ECA. Essa interpretação é deficiente e precária. A verdadeira interpretação sistemática, tão festejada pelos defensores do afrouxamento penal, deve abranger toda a legislação positiva e mais ainda, extrair o alcance da norma que se busca interpretar de acordo com o objetivo estabelecido pelo sistema jurídico, por isso diz-se sistemática!

É corolário lógico que o sentido real do sistema somente será alcançado na medida em que lançarmos mão das finalidades da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente e não apenas comparando “verbos” e “expressões” dos dispositivos mencionados.

É absolutamente incoerente o entendimento de que o sistema visa reprimir como crime a venda de cigarro às crianças e adolescentes e não tenha interesse em reprimir da mesma forma o fornecimento de bebida alcoólica, expressamente vedado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no próprio art. 81.

Se tal entendimento está baseado em interpretação sistemática, qual a lógica do sistema? Será que tal entendimento é, de fato, inferido do sistema? Claro que não. Não se pode conceber que a lógica seja a de que o Estatuto da Criança e do Adolescente deixaria sem repressão o fornecimento de bebida alcoólica aos menores, conduta que ele mesmo proíbe. Não é preciso pensar dois segundos para se perceber que não é essa a mens legislatoris.

Coloquemos-nos no lugar do legislador por um momento. Se estivéssemos nós elaborando o Estatuto da Criança e do Adolescente, como já se disse, pautado pela doutrina da proteção integral, iríamos nós pretender deixar descriminalizada, perante este diploma protecionista, a conduta em voga? A resposta é natural.

Aliás, poderíamos nos valer aqui da interpretação teleológica, que nada mais é do que o estudo filosófico dos fins. Certamente o objetivo ou propósito do legislador ao criar o Estatuto da Criança e do Adolescente não era deixar ao léu a conduta de vender bebida alcoólica às pessoas de sua especial proteção.

O art. 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente é claro:

“Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.
Ainda, o art. 73, reza:

“A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade de pessoa física ou jurídica, nos termos desta lei”.
Uma leitura conjunta de todos os dispositivos norteadores da questão, esclarecerá que a venda de bebidas alcoólicas a menores é crime que deve ser punido nos moldes do ECA. Está expressa a vontade do legislador. A um, porque esculpiu a conduta no artigo 243. A dois, porque a violação de qualquer norma de proteção, como o é o art. 81, deverá ensejar responsabilização do infrator, nos termos “desta lei”, ou seja, do Estatuto da Criança e do Adolescente (e não nos moldes da Lei das Contravenções Penais).

Ademais, onde está escrito que a configuração do artigo 243 do ECA depende de interpretação do seu artigo 81? Definitivamente, não está escrito em lugar algum. Nem tampouco observa a boa técnica interpretar-se o sistema dessa forma. O fruto desse entendimento é resultado de uma adequação descabida e da pretensão de se fazer política criminal ao arrepio da Lei.

Com todo o respeito, o que temos presenciado em algumas jurisprudências é um raciocínio jurídico inapropriado que exsurge completamente divorciado do espírito protecionista e em prejuízo da sociedade e da credibilidade do direito penal.

Ora, o artigo 243 é norma penal em branco. Assim, conforme se ensina nos bancos acadêmicos, para se saber quais substâncias causam dependência física e psíquica, e, assim, completar-se o tipo penal do artigo 243, é preciso reportar-se aos atos normativos da ANVISA e do Ministério da Saúde, e não à disposição gráfica do artigo 81.

È certo que tal inferência se dará a contrário sensu, uma vez que não há, de fato, portarias da ANVISA dizendo quais são as drogas lícitas, mas há, como cediço, portarias prescrevendo o rol das drogas ilícitas, que contêm substâncias de uso proscrito. Diante deste contexto deve imperar a máxima de que “tudo o que não é proibido (leia-se ilícito) é permitido (leia-se lícito)”.

A inferência lógica é a de que, além das drogas ilícitas, existem as drogas lícitas, que também causam dependência física e psíquica, mas, mesmo assim, têm autorizada a sua comercialização por não causarem ao organismo os mesmos transtornos causados por aquelas.

Pela clareza da redação, transcrevem-se fragmentos do artigo “O álcool é uma droga”2, buscando dar ênfase aos efeitos devastadores causados pelo álcool, mormente em se considerando a sua ingestão por crianças e adolescente:

“O Álcool está inserido no grupo de drogas lícitas e depressoras. São Lícitas porque são comercializadas livremente e depressoras porque causam diminuição da atividade global do Sistema Nervoso Central (SNC), da atividade motora e da ansiedade.

(…)

O álcool, ou Etanol (álcool etílico), é uma molécula que tem movimentação fácil através das membranas celulares. Essa substância adere rapidamente à corrente sanguínea, de onde é distribuída para a maioria dos órgãos dos diversos sistemas do corpo de acordo com SENAD (2010), (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas).

(…)

De acordo com a SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre drogas), o álcool seguramente é a droga lícita psicotrópica de uso e abuso mais amplamente disseminada por um grande número de países. O Decreto Presidencial de número 6.117 de 22 de Maio de 2007 considera bebida alcoólica aquela que tiver 0,5 grau Gay-lussac que equivale à quantidade em mililitros de álcool absoluto em 100 mililitros de bebidas destiladas e fermentadas.

(…)

De acordo com a OMS o álcool é a droga lícita mais consumida no país, provocando danos sociais e a saúde; o alcoolismo é a terceira causa de mortalidade e morbidade no mundo com ocorrência significativa de mortes e doenças associadas ao uso abusivo. A cada ano, em média 2 bilhões de pessoas, consomem bebidas alcoólicas, o que corresponde a quarenta por cento (40%) da população mundial acima de 15 anos de idade e 2 milhões de pessoas morrem em decorrência das seqüelas negativas pelo uso do álcool – cirrose hepática, intoxicações agudas, violência e acidentes de trânsito.

Indivíduos que ingerem grandes quantidades de bebida alcoólica, com o tempo, podem desenvolver sérias complicações como: inflamações no esôfago, no estomago, esteatose (gordura no fígado), hepatite, cirrose hepática, pancreatite, demências e câncer. As glândulas reagem ao álcool por serem muito sensíveis, e podem ter seu funcionamento afetado.

Em 2006 a SENAD em parceria com a UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), da Universidade Federal de São Paulo, verificou através de estudo que 45% (quarenta e cinco por cento) dos adultos brasileiros que usam o álcool apresentavam problemas decorrentes do beber.

A questão do álcool interfere de forma significativa e negativa no grande número de acidentes automobilísticos. A legislação brasileira tolera a ingestão de bebidas alcoólicas desde que o individuo seja maior de dezoito anos e não dirija veiculo automotor. (…)”.

Insta referir que, dependendo de circunstâncias, mesmo as drogas lícitas podem sofrem restrição à sua comercialização. Como é o caso das bebidas alcoólicas3, cujo ECA veda a sua venda a crianças e adolescente.

Como se não bastasse os argumentos assim mencionados, cumpre lembrar que o artigo 243 está inserido na parte dos crimes, não guardando qualquer relação de dependência com o artigo 81, o qual sequer trata-se de norma explicativa.
Por essa razão, concluir que o álcool não causa dependência física e psíquica simplesmente porque o legislador o esculpiu em inciso diverso foge de todos os ensinamentos acerca do assunto4. E, da mesma forma, dizer que essa seria a intenção do legislador ao redigir o artigo 243 foge de todos os critérios de razoabilidade.

É digno de nota, ainda, que um dos fundamentos da hermenêutica jurídica é justamente o de que não se pode admitir interpretações que conduzam ao absurdo. Então, como interpretar o sistema e chegar-se às conclusões mencionadas no parágrafo anterior?!

Independentemente do argumento com que se pretenda justificar tal entendimento – seja com base no princípio da especialidade5, seja com base no princípio da tipicidade restrita6 –, este é impróprio e deficiente, oriundo de verdadeira incoerência e distorção interpretativa.

A disposição do artigo 81 está inserida no título III do Estatuto, tratando da prevenção, e seu rol é exemplificativo. Ou seja, apenas relaciona algumas condutas cuja realização ofende a integridade dos menores. Não é de boa técnica admitir que tal artigo condicione a configuração do delito descrito no artigo 243 do Estatuto.

O fato de o legislador ter colocado bebidas alcoólicas em inciso diverso é unicamente com o intuito de dar maior ênfase a esta droga e não o de fazer a descabida suposição de que, para o Estatuto da Criança e do Adolescente, o álcool não causa dependência.

Assim, utilizando-se da verdadeira interpretação sistemática, tem-se que o art. 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, claramente, visa a responsabilizar o infrator que está a violar o dever de prevenção – princípio basilar do Estatuto, com ênfase constitucional – ao fornecer, às crianças e aos adolescentes, produtos cujos componentes podem causar dependência, sendo o álcool, evidentemente, um desses produtos.

NOTAS

1.    A título de conhecimento, registre-se que há quem sustente a atipicidade da conduta de vender bebidas alcoólicas a crianças e adolescente. Tal posicionamento está calcado no argumento de que, afastada a aplicação do artigo 243 do ECA, a contravenção tipificada no artigo 63 do Decreto-Lei 3688/41 apenas contempla o verbo servir, não contemplando o verbo vender.
2.    http://www.webartigos.com/articles/47416/1/O-ALCOOL-E-UMA-DROGA-UMA-REFLEXAO/pagina1.html#ixzz1KrOdPpSA.
3.    O processo de dependência do álcool desenvolve-se como o de qualquer outra dependência, como, por exemplo, em relação ao tabaco, à maconha, à cocaína e outras substâncias psicoactivas. Começa-se por experimentar beber, depois bebe-se pontualmente e daí passa-se a beber com regularidade, até criar dependência. Para algumas pessoas é um processo relativamente rápido. (http://www.portaldasaude.pt/portal/conteudos/enciclopedia+da+saude/estilos+de+vida/dependenciaalcool.htm).

4.    “O alcoolismo pode potencialmente resultar em condições (doenças) psicológicas e fisiológicas, assim como, por fim, na morte. O alcoolismo é um dos problemas mundiais de uso de drogas que mais traz custos. Com exceção do tabagismo, o alcoolismo é mais custoso para os países do que todos os problemas de consumo de droga combinados”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Alcoolismo).

5.    Sustentam que o artigo 63, I, da Lei das Contravenções Penais é especial, pois trata especificamente das bebidas alcoólicas.

6.    Sustentam que a expressão bebidas alcoólicas não consta da redação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Sobre o autor

WILLIAM GARCEZ

Delegado de Polícia do Rio Grande do Sul
Ex-Assitente de Promotoria de Justiça
Bacharel em Direito pela Unversidade de Caxias do Sul – CAMVA/RS

 

 

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