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Quando a alienação parental é um crime de sonegação de incapazes

por Editoria Delegados

Por Ruchester Marreiros Barbosa e Lia Cristina Ferreira Rodrigues Muniz

É com frequência que nos deparamos com notícias de genitores objetificando os filhos em comum, descumprindo a torto e a direito o regime de convivência da guarda compartilhada fixada judicialmente. Além das notícias, também é comum esse tema vir à tona nas delegacias de polícia, quando genitores ao narrar fatos criminosos, e ao se reportarem a possível motivação para a sua prática, quando não diretamente, tangenciam os temas da guarda e da alienação parental.

O objetivo deste arrazoado é informativo e serve de alerta para auxiliar o intérprete em sua atuação, a identificar hipótese criminal de determinados comportamentos e certos casos que hoje vem sendo banalizados e renegados a segundo plano, ao argumento de se tratar de mero conflito familiar, em especial quando o genitor prejudicado nessa esteira é o homem, que possui sua voz marginalizada pela polarização do discurso, que permeiam grupos de militantes político-partidários que se utilizam de políticas afirmativas de proteção à mulher para se distorcer o viés de proteção a vulneráveis, para marginalizar opiniões críticas a respeito do mal uso dos mecanismos de proteção à mulher, por vezes, em detrimento à garantia fundamental do menor à convivência parental.

A lista de violações ao poder familiar é extensa, mas dentre as mais comuns tem-se a sonegação de incapazes, por sua vez, muito mal explorada no dia a dia forense, talvez pelo pouco interesse da doutrina em abordar essa prática criminosa por genitores mal-intencionados.

Segundo Bittencourt[1], o bem jurídico tutelado no crime de sonegação de incapazes, previsto no art. 248, última parte, do Código Penal “são o pátrio poder (hoje poder familiar), a tutela ou a curatela, mais especialmente os direitos a seu exercício”. (destaque nosso.)

Observe-se que o tipo penal visa proteger, dentre vários aspectos do poder familiar, “os direitos e o seu exercício”. Em outras palavras, protege-se o exercício de um direito familiar, como por exemplo, o exercício do direito de convivência pelo genitor como corolário lógico do direito fundamental do menor à convivência (artigo 227, CR/88).

Não podemos esquecer de modo algum, e isso será importante para a construção do raciocínio que implementaremos, é de que a redação deste tipo penal foi constituído sob a égide do Código Civil de 1916.

Sob teto deste diploma, as regras sobre a guarda, no desquite, arts. 326 e 327, e ao serem revogados pelo artigo 10, §2º, da Lei 6.515/77, quando surge o divórcio, não previam direito de convivência, ou como equivocadamente costuma-se empregar, “visitação”, termo preconceituoso e desqualificador da convivência na relação afetiva de genitores e filhos. A expressão “visita” é relativa a um contato curto e extemporâneo, significado oposto ao que deva ocorrer na relação de afeto entre genitores e filhos, que possuem direito fundamental “à convivência familiar”, conforme explicitado no artigo 227 da CR/88. O paciente visita o médico. Um amigo ou parente visita um preso. Pais e filhos, convivem!

Mesmo com o surgimento do divórcio pela Emenda Constitucional nº 9/77 e regulamentado pela Lei 6.515/77, o artigo 10, §1º define como regra, que a guarda deveria ficar com a mãe, em caso de separação judicial, presunção oriunda da sociedade patriarcal, repetindo a lógica da inexistência de regulamentação de convivência dos filhos com os pais separados, ou seja, não se tutelava o exercício do direito de convivência.

Posteriormente, o Código Civil de 2002, continuava a reproduzir a regra da guarda unilateral, ou seja, um deles se tornava guardião e o outro mantenedor e “visitador”, não tendo ingerência nas decisões sobre a escola, por exemplo, reafirmando a relação parental-familiar em cunho muito mais obrigacional do que afetivo-parental.

Somente em 2008, com lastro na doutrina do Direito das famílias e na doutrina da psicologia, surge a guarda compartilhada ou conjunta, conforme Lei 11.698/08, alterando os artigos 1.583 e 1.584 do CC/02.

Desta forma, a regra sobre o exercício de poder familiar, ou seja, do poder de decisão sobre os aspectos relevantes da vida do filho em comum, conforme previsto no artigo 227 da CR/88, passa a ter regramento para o exercido igualitário ou equilibrado (ao menos deveria) entre os genitores, independente do lar de referência do menor, consequentemente se amplia o bem jurídico tutelado do artigo 248 do CP.

Essa releitura constitucional traz reflexos no Direito Penal, tendo em vista ser cediço que alguns tipos penais buscam obrigatoriamente o conceito de poder familiar e seu exercício nas normas de Direito Civil, estando o intérprete vinculado a isso, também como reflexo de um princípio constitucional do direito penal, que advém da legalidade, qual seja o princípio da taxatividade, vedando a existência de tipos penais abertos e reportando seu alcance a outras normas responsáveis por regulamentação de questões específicas da natureza dessas relações jurídicas, como o Direito das Família, Ambiental,Iinformático etc.

Para um maior enlace entre o Direito Penal e o Direito das Famílias é imperioso que sua construção seja dialógica. Nosso ordenamento possui diversos exemplos para a adoção do sistema do diálogo das fontes de Erik Jayme[2] como alternativa ao critério excludente de solução de conflitos de normas, adotado pela Lindb:

“‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato — solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes).”

Assim, reza o artigo 248, do Código Penal:

“Art. 248 – Induzir menor de dezoito anos, ou interdito, a fugir do lugar em que se acha por determinação de quem sobre ele exerce autoridade, em virtude de lei ou de ordem judicial; confiar a outrem sem ordem do pai, do tutor ou do curador algum menor de dezoito anos ou interdito, ou deixar, sem justa causa, de entregá-lo a quem legitimamente o reclame:
Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.”

Como se observa, o tipo penal possui três modalidades penais, quais sejam: a) induzimento a fuga de menor ou interdito; b) entrega não autorizada de menor ou interdito a terceiro; e c) sonegação de incapaz.

O primeiro se distingue do artigo 249, do Código Penal, subtração de incapaz, porque o agente que induz o menor ou interdito a fugir da casa dos pais ou da casa de um dos pais, não o acompanha, caso contrário, estaríamos diante do crime do artigo 249.

No segundo, o crime ocorre quando, sem consentimento dos pais, ou responsável pelo interdito, é entregue a terceiro, como no caso do funcionário da escola que entrega o menor a uma pessoa cujos pais não consentiram.

Na sonegação de incapaz o crime ocorre quando o agente deixa de entregar o menor ou interdito a quem de direito. O tipo penal utiliza a elementar normativa “sem justa causa”, característica do que doutrina denomina de tipos anormais, posto que demandam um juízo de valor, seja científico, jurídico ou cultural, que salvaguardaria a conduta de deixar de entregar o menor a quem de direito, quando estivesse, por exemplo, com algum tipo de enfermidade, cuja locomoção pudesse piorar seu quadro.

Há de se distinguir este crime (248) do crime de subtração de incapaz (249). Neste, o menor é retirado (subtração) do poder de quem o tem sob sua guarda, em virtude de lei ou ordem judicial, enquanto na sonegação de incapaz o crime ocorre quando há recusa de entrega (retenção), sem justa causa, do incapaz a quem legitimamente o reclame.

Importante compreender a outra elementar normativa, “a quem legitimamente a reclame”, pois possui correspondência com o sujeito ativo. Se quem reclama a criança não possuir legitimidade, como ocorria no regime de guarda unilateral (CC/16), o genitor que tinha a guarda unilateral legal, poderia negar a entrega do filho ao outro genitor, não configuraria crime, consequentemente o genitor que nega o filho ao outro não seria sujeito ativo.

Na época, portanto, uma mãe não poderia praticar o crime se o negasse ao pai por ter a guarda legal unilateral diante da presunção legal de ser a pessoa que melhor tutelava o interesse do filho. E se o pai saísse para passear com o filho e o negasse à mãe, poderia ser sujeito ativo do crime, posto que a mãe seria pessoa que legitimamente o reclame? Ou seja, os genitores poderiam praticar os crimes do artigo 248 ou 249 do CP após a atual Carta Política de 88 e a nova regra da guarda compartilhada?

Bittencourt[3], sustenta que o sujeito ativo poderia ser qualquer pessoa, sem nenhuma exigência de qualquer qualidade especial, sem mencionar se poderiam ser os próprios pais, entretanto, quando comenta o artigo 249 do CP, faz a ressalva de que o sujeito ativo somente poderia ser um dos pais que estivesse “destituídos ou temporariamente privados do poder familiar, tutela, curatela ou guarda”, dando a entender que no crime do art. 248, não haveria óbice à um genitor violar o bem jurídico tutelado do exercício do poder familiar do outro.

Neste mesmo sentido, Cléber Masson[4], Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio Machado de Almeida Delmanto[5] e Rogério Greco[6].

Fernando Capez[7], afirma que no 248, os genitores que estão destituídos ou temporariamente privados de exercer o poder familiar praticam o crime do artigo 359 do CP, pois no caso de subtração de incapaz (249), o crime seria este mesmo em razão do seu §1º, ficando subentendido que genitores não praticam o crime, fora destas condições.

Em sentido mais explícito que Capez, Victor Eduardo Rios Gonçalves[8], Paulo Busato[9] e Rogério Sanches[10], entendem que o sujeito ativo “pode ser qualquer pessoa, inclusive os pais se tiverem sido afastados do poder familiar”. Essa explicação se baseia em entendimento esposado por doutrinadores clássicos, que interpretam o 248, atribuindo a este o mesmo sentido que existe na observação prevista no artigo 249, §1º, ao argumento genérico o bem jurídico tutelado seria somente o poder familiar. Desta forma, não poderia poderiam violar o próprio poder familiar, frise-se, como guardião legal, se omitindo sobre as hipóteses de guardião judicial.

Observe-se que a base do dispositivo tanto é a guarda unilateral de 1916, que atribui poderes absolutos ao guardião legal, como regra a mulher, que o §1º do artigo 249 faz referência a prática do crime somente pelo “pai ou tutor do menor”, em total afronta a igualdade parental à luz do artigo 227 da CR/88.

Luiz Regis Prado[11] aborda explicitamente a hipótese de guarda judicial, salientando a possibilidade da prática do crime pelos genitores quando, por exemplo, “o cônjuge separado judicialmente que retém o filho menor por prazo superior ao acordado”, sinalizando para uma interpretação à luz do bem jurídico tutelado do exercício igualitário do poder familiar e não somente do bem jurídico “poder familiar”, como fazem alguns.

Nucci[12], diferente dos demais, traz para o debate a “igualdade do poder familiar” entre pai e mãe, trazendo como consequência a impossibilidade de “automaticamente” um dos genitores reclamar ao outro o menor, quando o genitor reclamado estiver como guardião legal, deixando subentendido que na hipótese de guardião judicial, onde há regras de convivência especificamente delineadas em alvará de convivência, esta possa ser oponível inclusive ao guardião do menor, que caso o retenha do período de convivência do outro, pratica o crime previsto no artigo 248, do CP, seguindo a mesma lógica que Prado.

Na prática, a guarda unilateral (1916), por não dispor sobre regras de convivência, impedia o exercício do poder parental do outro, consequentemente o genitor que não era o guardião (legal) não possuía, para fins penais, legitimidade para poder exigir o menor do outro, em razão de uma presunção, inconstitucional perante a CR/88, de que o guardião legal seria o único que detinha o poder de dizer o que seria melhor para o filho, consequentemente, não fazia distinção entre poder familiar e seu exercício, dando azo a abusos, origem do movimento da sociedade para a institucionalização da guarda compartilhada, Lei 11.698/08 e, posteriormente, da Lei 12.318/10, lei de alienação parental.

Assim, o genitor que negava a entrega do menor possuía um poder absoluto e flagrantemente desigual, violando uma garantia do menor de conviver com outro genitor, fazendo surgir a famigerada prática da alienação parental, cuja regulamentação teve mais força, quando se instituiu a guarda compartilhada, agora sim, deixando mais nítida as distinções entre poder familiar e seu exercício, dialogando uma norma com a outra. Entretanto, faltou a doutrina penal dialogá-las com o artigo 248. Salientamos, que este dispositivo não possui a restrição do artigo 249, §1º, e não obstante seja uma norma penal que demande interpretação restritiva, contudo sua exegese não poderia violar o princípio constitucional da proibição da proteção deficiente, deixando de tutelar o direito à convivência familiar entre genitor e o menor.

Não há incompatibilidade jurídico penal do sujeito ativo poder ser um dos genitores na guarda judicial. O objetivo da norma é a tutela do exercício do poder familiar e não somente a tutela do poder familiar em si, cujo bem jurídico constitucional é a garantia fundamental à convivência familiar, atingindo um direito do genitor e do filho, caracterizando uma hipótese de dupla subjetividade passiva, semelhante ao que ocorre no aborto sem consentimento da gestante.

Concluímos que o genitor é pessoa que legitimamente pode reclamar o filho ao outro que deixa de entregar o menor, sem justo motivo, caracterizando assim o crime do artigo 248 do CP, não sendo o crime do artigo 330 do CP, quando do descumprimento judicial das regras de convivência definidas na guarda judicial, por diversos fatores, dentre eles a especialidade.

[1] BITTENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, Vol. 4, 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 260

[2] Apud MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 89/90.

[3] BITTENCOURT, Ibidem, p. 260

[4] MASSON, Cléber. Código penal comentado. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 910.

[5] DELMANTO, Celso [et al]. Código penal comentado. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 518.

[6] GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial, Vol. III, Niterói: Impetus, 2014, p. 739.

[7] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial, arts 213 a 319-H, 17ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 268.

[8] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios, Direito penal: parte especial, 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 672

[9] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 2, V. 3, 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 68

[10] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: volume único, 12ª Ed. Fortaleza: Juspodivum, 2020, p. 646

[11] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial, 2ª Ed. Vol. 3, São Paulo: RT, 2003, p. 547

[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal: parte especial, Vol.3. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 192.

 

Sobre os autores

Ruchester Marreiros Barbosa é delegado de polícia do RJ, professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers, autor de livros, palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

Lia Cristina Ferreira Rodrigues Muniz é advogada, especialista em Direito Constitucional, psicanalista clínica e residente jurídica da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, na área de Família.

 

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