Por Eduardo Luiz Santos Cabette
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia aposentado, Parecerista Jurídico, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
1) SUICÍDIO E AUTOMUTILAÇÃO
O ato suicida não é previsto como crime por razões de política criminal, de forma que a pessoa que tenta suicidar-se não comete infração penal. O tipo penal descrito no artigo 122, CP, visa à punição daquele terceiro que induz, instiga ou auxilia outrem ao suicídio, num quadro em que o suicida figura na qualidade de vítima. Com o advento da Lei 13.968/19, não é somente o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio que é incriminado no artigo 122, CP. Passa a ser também previsto como crime o ato de induzir, instigar ou prestar auxílio a outrem a fim de que tal pessoa se automutile, ou seja, se autolesione, cause lesões a si mesma, no próprio corpo, sem a necessidade de pretender tirar a vida. Seria o caso de induzir, instigar ou auxiliar alguém a, por exemplo, amputar ou mutilar um dos dedos da mão ou do pé, a se cortar, a se queimar com cigarros, a ingerir substâncias que possam causar mal – estar, doenças ou distúrbios, ainda que não letais etc. Observe-se que também a autolesão ou automutilação não é prevista em si como crime. Quem se automutila não é criminoso, possivelmente tem algum distúrbio nervoso ou mental. [1] O criminoso, nos termos do artigo1222CPPP, é aquele que induz, instiga ou auxilia outra pessoa a se automutilar.
Observe-se, porém que embora seja impune aquele que tenta matar-se ou que tenta ou mesmo consegue se automutilar, a vida e a integridade física continuam sendo bens jurídicos indisponíveis, tanto que a lei não considera ilegal a coação praticada para impedir o suicídio (ver artigo 146, § 3º, II, CP).
2) OBJETIVIDADE JURÍDICA
Os bens jurídicos tutelados são a vida humana e a integridade física da pessoa. Neste ponto surge uma questão importante. O crime previsto no artigo 122, CP está no Título I – “Dos Crimes contra a pessoa”, Capítulo I – “Dos Crimes contra a Vida” do Código Penal Brasileiro. Até o surgimento da Lei 13.968/19 não havia dúvida de que se tratava de um crime exclusivamente contra a vida. Acontece que essa novel legislação incluiu também o induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, o que implica na abrangência de outro bem jurídico, que já não é mais somente a vida humana, mas também a integridade física. Certamente, a melhor opção do legislador seria ter incluído essa questão do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, não no artigo 122, CP, mas diretamente no Título I – “Dos Crimes contra a pessoa”, Capítulo II – “Das Lesões Corporais”, do Código Penal Brasileiro. A automutilação ficaria melhor alocada no corpo do artigo 129, CP e não no artigo 122, CP como foi procedido. Com isso, o legislador acabou criando um tipo penal anômalo, que embora esteja no capítulo dos crimes contra a vida, tutela também, em parte, a integridade física. Isso, como se verá mais adiante, gerará, inclusive, problemas quanto à competência para o processo e julgamento das condutas tipificadas no atual artigo 122, CP, requerendo atenção do intérprete e do aplicador da lei, não só na seara penal como também na Processual Penal.
3) SUJEITO ATIVO
Qualquer pessoa, tratando-se de crime comum.
4) SUJEITO PASSIVO
Qualquer pessoa que tenha capacidade de resistência à prática do suicídio ou da automutilação. Se essa capacidade é nula ou inexistente, não ocorre o crime do artigo 122, “caput”, CP, nem mesmo as figuras qualificadas pelos resultados lesão grave ou gravíssima (artigo 122, § 1º., CP) CP, ou morte (artigo 122, § 2º., CP), mas sim aquelas previstas nos §§ 6º. e 7º., do mesmo artigo 122, CP. Estes parágrafos por último mencionados tratam, respectivamente dos resultados lesões gravíssimas e morte. Entretanto, qual seria a diferença desses §§ 6º. e 7º. para os §§ 1º. e 2º., que também se referem aos resultados respectivos lesões graves ou gravíssimas e morte?
Em primeiro lugar, enquanto o § 6º., que trata de lesões se refere especificamente a lesões gravíssimas, o § 1º., menciona tanto o resultado lesões gravíssimas, como lesões graves.
Mas, a distinção principal se encontra exatamente na condição da vítima que não tem capacidade de resistência psíquica à influência do criminoso. Basicamente, nos §§ 6º. e 7º., as vítimas serão aqueles denominados no Código Penal Brasileiro como “vulneráveis”, ou seja, os menores de 14 anos; pessoas que por enfermidade ou deficiência mental, não têm o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não podem ofertar resistência. Nessas situações, considera a legislação que a vítima não toma uma decisão válida a ser considerada quanto à conduta de se autolesionar ou se matar. A vítima não passa de um títere nas mãos do influenciador, numa situação aproximada de autoria mediata (ousa-se denominar a essa situação de “autoria mediata vitimal”). Dessa forma, se impõe a si mesma lesões gravíssimas, o influenciador responderá nas penas do crime de lesões gravíssimas, de acordo com o § 6º., do artigo 122, CP. Se vier a se suicidar, não responderá o influenciador nas penas do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, mas sim naquelas do crime de homicídio.
Anteriormente a essa previsão legal, já se considerava doutrinária e jurisprudencialmente, que o influenciador, nos casos de vítima incapaz de resistência psíquica, não responderia nos termos do artigo 122, CP, mas por crime de lesão corporal ou de homicídio, conforme o que ocorresse.
A Lei 13.968/19 converteu essa solução dogmática em lei, a positivou.
A nosso ver, tal positivação se deu de maneira bastante débil. Explica-se:
Antes da alteração, sempre que alguém influenciasse outrem incapaz a se autolesionar ou a se matar, responderia, no primeiro caso por lesões corporais, de acordo com o resultado (leves, graves ou gravíssimas) ou por homicídio, no segundo caso. Quanto ao homicídio não há alteração na solução, apenas sua positivação. Mas, no que tange à lesão corporal a situação fica confusa.
Observe-se que as qualificadoras pelos resultados previstas nos §§ 1º. e 2º., são aplicáveis aos casos de vítimas capazes, não vulneráveis. Então a responsabilização mais gravosa quando a vítima é vulnerável ou incapaz, somente se dará no caso de lesão “gravíssima” “ex vi” do artigo 122, § 6º., CP, o qual não menciona as lesões graves. Isso deixa uma margem interpretativa que gera insegurança jurídica.
Duas compreensões podem surgir:
a) No caso de vítimas vulneráveis, se houver lesões gravíssimas, o influenciador responderá no artigo 122, § 6º., CP. Mas, se houver lesões leves responderá no artigo 122, “caput”, CP. E se houver lesões graves, no artigo 122, § 1º., CP. Isso porque o § 6º., do artigo 122, CP não cita as lesões leves ou graves.
b) A nosso ver, a solução acima é insustentável porque as vítimas vulneráveis não têm capacidade de resistência e equivalem, como já dito, a um títere, uma massa de moldar nas mãos do influenciador. Elas, vítimas, não passam de uma “longa manus” do influenciador. Dessa forma, há que reiterar, nos casos de lesões leves ou graves, o antigo sistema que seguia a orientação dogmático – jurisprudencial não positivada. Ou seja, o influenciador deve responder pelo crime de lesão corporal e não pelo de induzimento, instigação ou auxílio à automutilação. Responderá por lesões leves se as lesões forem assim, por lesões graves se forem graves (respectivamente, artigo 129, “caput”, CP e artigo 129, § 1º., CP). Ademais, no caso dos menores de 14 anos, respondendo pelo artigo 129, “caput” ou 129, § 1º., nos casos respectivos de lesões leves ou graves, haverá que impor o aumento da ordem de um terço da pena, de acordo com o disposto no artigo 129, § 7º., CP. A vulnerabilidade da vítima está a exigir maior rigor na reação penal e isso ocorrerá certamente no caso das lesões graves (o artigo 122, § 1º., CP prevê pena de reclusão, de 1 a 3 anos; já o artigo 129, § 1º., CP prevê pena de reclusão, de 1 a 5 anos). Porém, no caso das lesões leves, mesmo que se trate de vítima menor de 14 anos, em que ocorrerá o aumento de pena do artigo 129, § 7º., CP, já mencionado, a pena será sempre menor do que aquela prevista no artigo 122, “caput”, CP. A situação é uma encruzilhada. Por isso, entende-se que o melhor seria que o legislador não houvesse alterado essa questão e simplesmente deixado que fosse tratada de acordo com o estado da arte da dogmática e da jurisprudência.
Em resumo, o entendimento defendido neste trabalho é o seguinte:
a) Para vítimas maiores e capazes (não vulneráveis):
-Havendo influência e ocorrendo lesões leves ou ausência de lesões, o crime será o do artigo 122, “caput”, CP.
-Havendo influência e resultando lesão grave ou gravíssima, o crime será o do artigo 122, § 1º., CP.
-Havendo influência e ocorrendo morte da vítima, seja decorrente de suicídio ou de agravamento da automutilação, o crime será o do artigo 122, § 2º., CP.
b) Para vítimas vulneráveis ou incapazes que qualquer resistência psíquica à atuação do influenciador:
-Havendo lesões leves, responderá por crime de lesão corporal leve, nos termos do artigo 129, “caput”, CP, com eventual aumento de pena previsto no artigo 129, § 7º, CP se o caso for de vítima menor de 14 anos (retomar-se-á o tema mais abaixo). Se , nessa situação, não houver lesões, mas a vítima chegar a tentar praticá-las diante da influência do infrator, haverá o crime de tentativa de lesões corporais leves, também com eventual aumento supra mencionado (artigo 129 c/c 14, II, CP ou Artigo 129, § 7º., c/c 14, II, CP).
-Havendo lesões graves, responderá pelo crime de lesões corporais graves, nos termos do artigo 129, § 1º., CP, com eventual aumento de pena previsto no artigo 129, § 7º., CP se o caso for de vítima menos de 14 anos. Comprovado o dolo do agente em causar lesões de natureza grave na vítima, usando-a como instrumento, mas não o conseguindo por motivos alheios à sua vontade, haverá o crime de tentativa de lesões corporais graves (artigo 129, § 1º. c/c 14, II, CP).
-Havendo lesões gravíssimas, responderá pelo crime previsto no artigo 122, § 6º., CP, com as penas previstas para o crime de lesões corporais gravíssimas, de acordo com o artigo 129, § 2º., CP. Como se verá melhor mais adiante no estudo da tentativa do artigo 122, CP, comprovado o dolo do agente em causar lesões de natureza gravíssima na vítima, usando-a como instrumento, mas não o conseguindo por motivos alheios à sua vontade, descartado o resultado mais gravoso, haverá responsabilização pelo artigo 122, “caput”, CP.
-Havendo morte decorrente do suicídio ou de agravamento das lesões autoinfligidas, responderá pelo crime do artigo 122, § 7º., CP, com as penas previstas para o crime de homicídio, que poderá ser simples ou qualificado, conforme o caso, nos termos do artigo 121, “caput”, CP ou 121, § 2º., CP (essa questão também será melhor explorada mais adiante). Aqui também descartado o resultado mais gravoso, haverá responsabilização pelo artigo 122, “caput”, CP.
O legislador acabou, ao positivar sofrivelmente a antiga solução dogmático – jurisprudencial, criando duas situações do que se chama de “crime remetido”, que ocorre quando “a sua definição se reporta a outros delitos, que passam a integrá-lo”. [2] Ora, é exatamente isso que acontece com os§§ 6ºº. e7º.., do artigo1222CPPP, quando descrevem a conduta, mas remetem o intérprete ou aplicador às penas respectivas dos artigos129§ 2º…CPPP e 121CPP.
Frise-se que no caso e efetivo suicídio, nas circunstâncias do artigo 122, § 7º., CP, as penas do homicídio aplicáveis ao caso poderão ser as do artigo 121, “caput”, CP (simples) ou também do artigo 121, § 2º., CP no caso de haver alguma qualificadora (v.g. cometer o induzimento para obter a impunidade por outro crime, por motivo fútil, por motivo torpe, com emprego de veneno, por meio insidioso etc.).
As pessoas vulneráveis, como já visto, podem ser por questão etária (menores de 14 anos). Nesse caso será inevitável a discussão sobre se esse limite etário será objetivo ou se variará subjetivamente de acordo com cada vítima concreta. A nosso ver, tendo em conta a sistemática do Código Penal e o entendimento jurisprudencial acerca da vulnerabilidade etária, já firmado inclusive pelo STJ, a análise é simples e objetiva. Se a vítima tem menos de 14 anos, incide o influenciador nas penas dos §§ 6º. ou 7º., conforme o caso, bastando a prova documental da idade (v.g. RG, Certidão de Nascimento). Isso porque no caso do “Estupro de Vulnerável” (artigo 217 – A, CP) já se manifestou sumularmente o STJ no seguinte sentido:
“Súmula 593, STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso como o agente”.
Se a idade da vítima é absolutamente determinante, segundo a orientação do STJ, para aferir sua capacidade de discernir para a prática ou não de atos sexuais, o que dizer da situação em que se trata de discernimento para a prática em si mesma de lesões corporais gravíssimas ou suicídio, estando em jogo, não a mera liberdade sexual (que em geral se refere a uma opção), mas a integridade física atingida de forma extrema e, pior, a vida humana?
Já no caso do enfermo ou deficiente mental há que ponderar e avaliar em cada caso concreto o grau da enfermidade ou deficiência para saber se a pessoa tem ou não discernimento suficiente para não ser considerada como vulnerável.
Finalmente, quando a lei aqui trata da pessoa que “por qualquer outra causa” não é capaz de ofertar resistência, pode-se estar diante de casos em que a vítima não é menor de 14 anos e é hígida mentalmente, no entanto é induzida a erro, enganada, ludibriada. Um exemplo clássico é o do ator de teatro que simula em uma peça um suicídio com uma pistola cenográfica. Em certa apresentação, outro ator que o invejava, troca a pistola cenográfica por uma pistola real e a vítima efetua um disparo letal na própria têmpora. Externamente há um “suicídio”, mas internamente jamais a vítima deliberou matar-se. Por isso seria o caso de aplicação das penas por homicídio, nesse caso certamente qualificado pelo motivo torpe (inveja) e pelo meio insidioso.
Aproveitando a menção da qualificadora do motivo torpe para a pena do homicídio, note-se que pode haver quem entenda que as penas do homicídio qualificado seriam afastadas nos casos do artigo 122, § 7º., CP, tendo em vista que os casos mais comuns, que seriam os motivos torpe e fútil, estão previstos como causas de aumento de pena no § 3º., inciso I do artigo 122, CP, de modo que a aplicação da pena qualificada do homicídio resultaria em “bis in idem”. Tal entendimento certamente é equivocado, pois que, tendo em vista a interpretação lógica e sistemática do Código Penal, bem como a posição topográfica do § 3º., é de se concluir que ele somente é aplicável aos casos do “caput” e §§ 1º. e 2º., do artigo 122. Um parágrafo, normalmente, se aplica somente às figuras que ficam acima dele e não abaixo.
Para a configuração do crime do artigo 122, CP, em qualquer das suas modalidades, é necessário, porém que a vítima (s) seja (m) determinada (s). [3] Vejamos exemplos
a) Um indivíduo convence uma ou mais pessoas determinadas a suicidarem-se porque o fim do mundo está próximo – configura-se o crime do art. 122, CP.
b) O mesmo indivíduo escreve um livro sobre o assunto para venda em geral – Fato Atípico.
5) TIPO OBJETIVO
O tipo penal prevê três condutas (crime de ação múltipla, de conteúdo variado ou tipo misto alternativo), a saber: induzir, instigar e prestar auxílio material. As duas primeiras (induzimento e instigação) são chamadas de “participação ou concurso moral”, enquanto o auxílio é chamado de “participação ou concurso físico ou material”.
As condutas do induzimento e da instigação diferem. No induzimento o agente cria a ideia do suicídio ou da automutilação que não existia na vítima. Já na instigação o agente apenas incentiva uma ideia anterior de matar-se ou automutilar-se, oriunda da própria vítima. Em ambos os casos a conduta do agente é meramente psicológica, de convencimento. Agora, no auxílio, existe uma participação material do autor. Por exemplo, fornecendo uma arma, fornecendo veneno, ministrando instruções sobre meios de suicidar-se ou de automutilar-se, montando um aparato para o suicídio ou automutilação, iludindo um vigia que impediria o suicídio ou a automutilação para que a vítima possa dar cabo da própria vida ou se autolesionar, dificultando o socorro imediato do suicida etc. Não obstante é importante notar que essa intervenção física do agente não pode extrapolar o mero auxílio e acabar adentrando em atos de execução da morte ou lesão, senão ocorrerá homicídio ou crime de lesão corporal. Por exemplo, o indivíduo chuta a cadeira para a vítima seja enforcada; o indivíduo, na hesitação da vítima, pega a lâmina de barbear e faz vários cortes em seu braço (da vítima). Observe-se que, por obviedade, não importará em nada o consentimento da vítima nesses atos, eis que estamos diante de bens jurídicos indisponíveis (vida e integridade física). Observe-se que no Brasil, nem mesmo a “eutanásia” ou o chamado “suicídio assistido” nos casos de doentes terminais são permitidos. No primeiro caso ocorrerá, de regra, homicídio privilegiado (artigo 121, § 1º., CP); no segundo caso, ficará configurado, sem dúvida, o auxílio ao suicídio (artigo 122, “caput” ou §§ 1º., 2º., 6º. ou 7º., dependendo das consequências do ato e das condições psíquicas da vítima).
A doutrina e a jurisprudência vêm considerando que os simples maus – tratos infligidos à vítima não configuraram o tipo penal em discussão, a não ser em casos extremos, comprovado o dolo do agente. [4]
A prática do crime por omissão tem sido objeto de polêmica:
Em primeiro lugar, tratando-se de suposto crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, há que analisar a relevância dessa omissão, ou seja, somente configurar-se-ia eventual figura típica nos casos em que o agente tivesse o “dever jurídico” de atuar para impedir o suicídio ou a automutilação, nos estritos termos do artigo 13, § 2º, a, b e c, CP.
A questão se divide doutrinariamente com mais destaque quando se trata da questão da possibilidade do “auxílio” por omissão:
São da opinião da possibilidade Nelson Hungria, Aníbal Bruno, Magalhães Noronha e Mirabete. Em sentido contrário posicionam-se Frederico Marques, Damásio E. de Jesus, Bento de Faria, Heleno Fragoso e Euclides Custódio da Silveira. [5]
A orientação que melhor se afigura no caso é aquela que admite a possibilidade inclusive da prática do “auxílio” por omissão. Veja-se elucidativo exemplo de Altavilla:
“Em um hospital é internado um doente que sofre atrozmente e manifesta propósitos suicidas. O enfermeiro, violando a norma do regulamento que manda recolher as armas de toda pessoa internada, deixa-lhe o revólver, para que ele (o doente) possa realizar seu desígnio. Essa omissão não configura induzimento ou instigação, mas auxílio ao suicídio”. [6]
Tendo em vista a inclusão da figura da automutilação, é preciso atentar para eventuais casos em que alguém induza, instigue ou auxilie outrem a práticas que causam, de certa forma, lesões no corpo, mas que são socialmente usuais. Tratam-se, por exemplo, de tatuagens, Body Piercing, brincos com furo na orelha etc. A questão deve ser tratada da mesma forma que já se faz com relação ao ilícito de lesão corporal, com a única diferença de que no caso do artigo 122, CP, será a própria suposta vítima quem ira proceder à aplicação da técnica respectiva, causando eventual lesão em si mesma. Se a influência se dá para a realização da técnica em situação legalmente regulada e permitida, envolvendo pessoas maiores, ou mesmo menores, mas com autorização dos responsáveis e cumprindo todas as normas de saúde pública, não há ilícito. E essa exclusão se dará por qualquer caminho dogmático que se tome em relação à Teoria do Delito. No Finalismo, haverá a explicação da Adequação Social; na Teoria da Imputação Objetiva, o Risco Permitido; na Tipicidade Conglobante, a atipicidade e assim por diante. Agora, se a influência se dá para que a pessoa provoque lesões em si, mediante uso dessas técnicas fora dos padrões legalmente estabelecidos. Um menor, por exemplo, que se tatua por indução de terceiro, sem o consentimento dos pais. Ou uma pessoa, ainda que maior, induzida a fazer a aplicação e Body Piercing sem os devidos cuidados higiênicos. Nesses casos irregulares, poderá, em tese, haver a configuração do crime do artigo 122, CP, assim como, se realizada a conduta por terceiro sobre a vítima, haveria o crime de lesões corporais.
Finalmente importa salientar que também com a inclusão da automutilação, a influência de alguém a se embriagar até passar mal, como costuma ocorrer em alguns “trotes” universitários, pode configurar também o crime do artigo 122, CP.
5.1 – NECESSIDADE DE RESULTADO APÓS A LEI 13.968/19?
Na redação original do Código Penal o crime do artigo 122, CP só ocorreria se houvesse um dos resultados preconizados no preceito secundário (morte ou lesão corporal de natureza grave), sendo as penas então previstas respectivamente de reclusão de 2 a 6 anos e de 1 a 3 anos. Portanto, não existia tentativa, ou ocorria um dos resultados ou o fato era atípico.
Mas, hoje, com o advento das alterações promovidas pela Lei 13.968/19, tudo isso é passado.
Não há mais exigência dos resultados lesões graves ou morte para que haja o crime e a pena. Atualmente o induzimento, a instigação e o auxílio material ao suicídio ou à automutilação configuraram o crime, com ou sem tais resultados. De crime eminentemente material, se converteu, por força da Lei 13.968/19, em crime formal.
Eventuais resultados como lesões graves, gravíssimas ou morte decorrentes da prática do suicídio, da tentativa de suicídio ou da automutilação, somente surgem agora como qualificadoras nos §§ 1º., 2º., 6º., e 7º., todos do artigo 122, CP. Suas aplicações variarão, como visto, de acordo com a vítima (vulnerável ou não).
Atualmente se alguém induz, instiga ou auxilia outrem a se suicidar ou automutilar, mesmo que não ocorra resultado algum derivado da tentativa de suicídio ou automutilação ou ocorram apenas lesões leves, estará configurado o artigo 122, “caput”, CP, salvo no caso de vulneráveis, em que poderá ocorrer crime de lesão corporal leve ou grave consumado ou tentado, eis que não previstas essas consequências nos §§ 6º. e 7º., do artigo 122, CP. A ausência, portanto, dos resultados lesões graves ou morte, não mais implica atipicidade.
Sendo o crime formal em sua redação atual, surge possível polêmica quanto à tentativa. A consumação se dá com o induzimento, instigação ou auxílio. No caso do auxílio material o crime estará consumado com o fornecimento da ajuda material, venha ou não a vítima a suicidar-se ou automutilar-se. Aí está preservada a característica formal do crime. Mas, obviamente, será viável a tentativa, vez que se trata de conduta plurissubsistente, com o “iter criminis” fracionável, sendo plenamente possível que alguém impeça o infrator de fornecer o auxílio à vítima. Por exemplo, um indivíduo pede uma arma para se matar. Quando o infrator vai lhe levar tal arma, é submetido a uma revista pessoal, vez que a vítima estava internada num manicômio, sendo encontrada a arma e apurado o seu fim de auxílio ao suicídio alheio. Há tentativa (artigo 122 c/c 14, II, CP).
Quanto aos verbos induzir ou instigar, a tentativa somente se daria por escrito, como é regra nos crimes formais. Diante desses verbos, o crime se consuma com o ato de induzimento ou instigação, independentemente da atuação da vítima, que será mero exaurimento da infração ou ensejará qualificadoras (v.g. artigo 122, §§ 1º. , 2º., 6º. e 7º., CP). Dada a natureza desses verbos, é bem possível que o agente chegue a induzir ou instigar a vítima, mas esta não venha a perpetrar ato algum de tentativa de suicídio ou de automutilação. Nesse caso, parece mais correto reconhecer o crime consumado com o mero induzimento ou instigação, principalmente tendo em vista que o legislador deixou de exigir resultados ulteriores para a configuração do ilícito, o que dá a entender que considera criminoso já o próprio induzimento ou instigação. Por exemplo, uma pessoa reclama de problemas existenciais. O infrator lhe propõe o suicídio como alternativa, mas a vítima descarta tal proposta como absurda. O crime está consumado. Eventual suicídio seria exaurimento e configuraria qualificadora, conforme acima exposto. Este entendimento adotado neste trabalho se dá tendo em vista o raciocínio usado em geral pela doutrina para solucionar os casos da chamada “receptação imprópria” (artigo 180, “caput”, parte final, CP – “influir para que terceiro , de boa fé adquira, receba ou oculte”), onde o verbo “influir” é considerado formal, bastando a mera “influência” de terceiro de boa fé e não necessitando que este último adquira, por exemplo, o bem oriundo de ilícito. [7] Não há motivo para que as interpretações desses dois tipos penais formais venham a divergir. Elas devem, em verdade, convergir, em nome da segurança jurídica e de uma interpretação sistemática sólida do Código Penal.
6) TIPO SUBJETIVO
O elemento subjetivo é o dolo, consistente na vontade consciente de induzir, instigar ou auxiliar a vítima ao suicídio ou à automutilação. Nesse passo, pode-se afirmar que a descrição típica permite que a finalidade do agente se direcione para duas possibilidades, o suicídio da vítima (sua morte) ou a automutilação (a lesão).
O dolo poderá ser direto, eventual ou mesmo alternativo, inexistindo previsão de figura culposa. Observe-se ainda que se o agente atua com vistas somente à automutilação, o artigo 122, CP não é um “crime doloso contra a vida”. E ainda que resulte morte derivada dessa automutilação, esse resultado mais gravoso se dará a título de preterdolo. Já quanto à ocorrência de lesões graves ou gravíssimas no caso de automutilação, essas poderão decorrer do dolo do agente (ele visa, desde o início a lesão mais gravosa) ou mesmo de preterdolo (o agente visava uma lesão mais leve, mas ocorre uma mais grave). Doutra banda, quando o agente visa o suicídio da vítima e ocorre apenas lesão (leve, grave ou gravíssima), na verdade, seu dolo era superior ao que de fato acabou resultando. Mas, esse dolo é suficiente para configurar o crime do artigo 122, CP, já que atualmente, como já visto, os resultados mais gravosos não são exigência para a punição, mas tão somente circunstâncias que qualificam o crime.
Alguns doutrinadores falam em dolo específico, considerando este a finalidade de obter a morte da vítima (v.g. Magalhães Noronha e Manzini) e atualmente, alternativamente, a autolesão. Outros consideram o dolo genérico porque sempre está presente no ato de indução ao suicídio o desejo da morte da vítima (Mirabete e Damásio), o mesmo se podendo afirmar com relação ao desejo de lesão quando a indução é à automutilação. O segundo entendimento parece ser o mais consentâneo com o bom senso, pois é mesmo impensável que alguém instigue outrem ao suicídio sem a intenção inerente a essa conduta de que a vítima morra ou a induza à automutilação sem o intento de provocar lesão.
Como visto, não existe modalidade culposa. Se, culposamente, se participa de um suicídio ou de uma autolesão, pode haver responsabilização por homicídio culposo ou lesão culposa, mas jamais por infração ao artigo 122, CP. No entanto, há autores (v.g. João Mestieri e Mirabete) que consideram impossível a responsabilização por homicídio culposo, sendo simplesmente fato atípico.
Mais uma vez deverá ser analisado caso a caso pelo seguinte critério:
a) Se houve realmente eliminação voluntária da vida pela pessoa ou autolesão voluntária, possibilitada pela conduta culposa, trata-se de fato atípico, pois inexiste participação culposa em suicídio ou em automutilação. Por exemplo, se o pai negligente deixa a arma ao alcance do filho, sendo este filho de idade mais avançada (v.g. 20 anos), tendo plena consciência de seus atos. Se pega a arma e se mata ou se autolesiona, trata-se realmente de fato atípico.
b) Se a conduta culposa inicial leva a um acontecimento acidental que causa a morte, tem-se um caso de homicídio culposo ou de lesão corporal culposa. Por exemplo, o mesmo pai desidioso que deixa uma arma ao alcance do filho menor, o qual é de pouca idade (v.g. 03 anos) e, acidentalmente, se fere e morre ou apenas se lesiona. Não houve propriamente um suicídio para que se pudesse falar em “participação culposa atípica”, também não foi o caso de automutilação deliberada. Houve mesmo um homicídio culposo ou uma lesão corporal culposa, conforme o resultado, informados pela negligência.
7) AUMENTOS DE PENA
O antigo Parágrafo Único do artigo 122, CP foi excluído pela Lei 13.968/19 e atualmente os aumentos de pena estão regulados nos §§ 3º., 4º., e 5º., do mesmo dispositivo.
No § 3º., há duplicação da pena nos antigos casos previstos no excluído Parágrafo único. Inova-se, porém, no inciso I, ao acrescentar, além do “motivo egoístico”, os motivos “torpe” e “fútil” como causas também de aumento de pena.
No motivo egoístico há a revelação do desprezo do agente pela vida alheia, sobrepondo interesses pessoais. São exemplos: desejo de receber herança, desejo de receber seguro de vida, eliminação de rival em caso amoroso, competição em negócios, vingança, ódio, maldade etc. Note-se que o motivo egoístico, para sua caracterização, não pressupõe somente interesses materiais.
Torna-se um desafio a distinção entre o “motivo egoístico” e o “motivo torpe”. A princípio não se vê diferenciação plausível, mas apenas formas diversas de expressão da mesma circunstância. Neste sentido, por exemplo, Teles caracteriza o “motivo egoístico” justamente pela sua “torpeza”. [8] Entretanto, Nucci acena com a alegação de que o “motivo egoístico” seria uma espécie do gênero mais abrangente “motivo torpe”. [9]
Já o motivo fútil é aquele em que se revela a desproporção entre o ato gravíssimo de influenciar alguém a se matar ou se autolesionar e aquilo que motivou a conduta do agente. Por exemplo, praticar indução ao suicídio contra alguém devido a uma dívida de dois reais.
No segundo caso (inciso II do § 3º.), o que vai ser aferido é a capacidade psíquica de resistência da vítima ao convencimento da prática do suicídio. A rigor, quando a lei fala em “menor” significariam os menores de 18 anos (art. 27, CP). Existem, porém, posições doutrinárias (v.g. Damásio E. de Jesus e Magalhães Noronha), afirmando que seriam os menores entre 14 e 18 anos, pois que, numa interpretação sistemática do Código Penal, os que estivessem abaixo dos 14 anos não apresentariam nenhuma capacidade de resistência a influências externas, de modo que seriam então vítimas de homicídio ou de lesão corporal (neste último caso, considerando a nova figura da automutilação). Há ainda um terceiro entendimento, apontando para a necessidade de verificação no caso concreto, independentemente da idade da vítima, se esta tinha plena resistência ou não, sendo a menoridade apenas um indicativo não conclusivo. Entretanto, tem predominado ainda neste caso o posicionamento que interpreta a palavra “menor” ora enfocada como sendo aqueles entre 14 e 18 anos. Ademais, com a Lei 13.968/19 e a atribuição explícita das penas de homicídio ou lesão corporal gravíssima para o caso de influência de menores de 14 anos (artigo 122, §§ 6º. e 7º., CP), a tese de que a palavra “menor” no artigo 122, § 3º., II, CP se refere à faixa entre 14 e 18 anos, ganha força total. É evidente, de acordo com a redação do artigo 122 e parágrafos que se a vítima for menor de 14 anos, haverá responsabilização nas penas de lesões corporais (automutilação) ou homicídio (suicídio). Então, o aumento de pena para vítima menor, somente pode se referir àqueles menores entre 14 anos completos e 18 anos incompletos.
Afora os menores, o inciso II do dispositivo ora enfocado abre fórmula genérica para abarcar outras pessoas, embora maiores, que tenham sua capacidade de resistência psíquica diminuída. Estariam abarcados então os alienados, débeis mentais, embriagados, drogados, enfermos etc., os quais tenham diminuída sua capacidade de resistência. Não se pode esquecer que se tais pessoas não têm qualquer capacidade de resistência ao invés de sofrerem de somente uma diminuição dessa capacidade, ocorrerá aplicação das penas de lesões corporais (automutilação) ou de homicídio (suicídio).
O § 4º. prevê outra causa de aumento da ordem do dobro para os casos em que a conduta seja praticada por meio de rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real. Note-se que ainda há aqui necessidade de determinação da vítima, não cabendo a tipificação do artigo 122, CP em casos de vítimas indeterminadas, conforme já esclarecido. Certamente o que motivou essa causa de aumento foi o fenômeno do “jogo” que ficou conhecido como “Baleia Azul”, no qual, por meio de redes sociais ou contatos via internet, pessoas eram influenciadas a praticarem “desafios”, chegando à autolesão e até mesmo à pratica suicida. Ainda com o mesmo escopo, vem o § 5º., do artigo 122, CP determinar nova causa de aumento de metade da pena quando o agente é líder ou coordenador de grupo ou rede social. Isso significa que se a influência à automutilação ou ao suicídio se dá por meio informático a pena é aplicada em dobro para todos os participantes desse evento. Porém, se identificado o líder ou coordenador de um grupo que se dedica a tal prática, este receberá a pena em dobro e mais um acréscimo de metade.
Dois pontos são relevantes sobre esses aumentos de pena:
a) Eles são aplicáveis cumulativamente, pois nada impede que ocorram conjuntamente num mesmo caso, não configurando “bis in idem”. Por exemplo, digamos que alguém induza outrem ao suicídio por motivo egoístico, por meio de comunicação virtual por internet, envolvendo um grupo de pessoas do qual é o líder ou coordenador. Os aumentos de pena serão aplicados em cascata. Somente não haverá aplicação em cascata no caso dos dois incisos do § 3º., do artigo 122, CP estarem presentes concomitantemente. Ali somente é previsto o aumento do dobro para os dois casos. Seria interessante que no § 3º. o legislador não houvesse estabelecido um aumento fixo do dobro, mas um aumento escalonado, por exemplo do dobro até o triplo ou de metade até o dobro, o que resolveria a situação em que o indivíduo incidisse em ambos os incisos por meio de individualização do “quantum” de incremento penal.
b) Devido à posição topográfica dos §§ 3º., 4º. e 5º., do artigo 122, CP, esses aumentos somente são aplicáveis ao crime simples do artigo 122, “caput”, CP ou às formas qualificadas do artigo 122, §§ 1º. ou 2º., CP. Ocorre que, em regra, um parágrafo somente se aplica às figuras legais que estão acima dele no dispositivo que compõe. Significa que nos casos de crimes qualificados no artigo 122, §§ 6º. ou 7º., CP, não é possível a aplicação das majorantes em estudo. Além da questão topográfica de técnica legislativa, é preciso observar que nas qualificadoras que envolvem vulneráveis a pena aplicada já será muito mais gravosa, de lesão corporal gravíssima ou de homicídio simples ou mesmo qualificado. Assim sendo, a aplicação de aumentos de pena configuraria uma violação à proporcionalidade por excesso punitivo. Imagine-se que uma pessoa realmente matasse a outra (vítima vulnerável) e tivesse a pena aplicada normalmente de acordo com o artigo 121, CP. Por outro lado, se não matasse diretamente, mas apenas induzisse a vítima vulnerável a se suicidar, usando, porém, recurso de rede social. Teria a pena do artigo 121, CP aplicada em dobro. Ora, isso nitidamente viola do princípio da proporcionalidade, pois que não se pode duvidar do fato de que o crime de homicídio é mais grave do que o de induzimento ao suicídio, o mesmo valendo para a efetiva lesão corporal e o mero induzimento à automutilação.
8) AÇÃO PENAL E COMPETÊNCIA
O crime previsto no artigo 122, CP, é de ação penal pública incondicionada em todas as suas formas (inteligência do artigo 100, CP). Como visto, com a inclusão indevida da automutilação em um crime doloso contra a vida ao invés de alocar tal conduta no crime de lesão corporal, surge uma alteração na competência para o processo e julgamento das figuras do artigo 122, CP.
Se o induzimento, instigação ou auxílio se dirigir à prática do suicídio, pretendendo, portanto, o agente atingir o bem jurídico vida, a competência para processo e julgamento será do Tribunal do Júri.
Contudo, se o induzimento, instigação ou auxílio se voltar tão somente à automutilação, ainda que dela resulte preterdolosamente a morte, porque o agente queria apenas a autolesão, decorrendo desta a morte que não era objetivada, a competência será do Juiz Singular, tendo em vista que claramente não se trata de um crime doloso contra a vida, embora alocado no Capítulo “Dos Crimes contra a vida”.
Será sempre necessário, portanto, para fins de estabelecimento de competência para o processo e julgamento do artigo 122, CP, em qualquer de suas modalidades, a aferição do dolo do agente, se informado pelo intento de provocar o suicídio ou de provocar autolesão. Afinal o Júri somente tem competência para o processo e julgamento dos “crimes dolosos contra a vida”, não de crimes que são informados pelo “animus laedendi” ou “animus nocendi” ou mesmo por preterdolo.
9) DIREITO INTERTEMPORAL
A Lei 13.968/19 criou novas condutas criminosas e incrementou algumas punições nos casos do artigo 122, CP.
A inclusão da previsão como crime da indução, instigação ou auxílio à automutilação constituiu, em todas as figuras em que aparece (tirante aquelas que envolvem vulneráveis), “novatio legis incriminadora”, de modo que não pode retroagir a situações pretéritas nas quais a autolesão, ainda que considerando a conduta de quem influenciava terceiro para isso, era fato atípico.
Também constitui “novatio legis incriminadora” a conduta de induzir, instigar ou auxiliar alguém ao suicídio, sem que haja os resultados lesões graves ou morte. Antes da Lei 13.968/19 essa conduta não configurava sequer a tentativa do crime, sendo fato atípico. Novamente impossível a aplicação retroativa do disposto no artigo 122, “caput”, CP.
Houve continuidade normativo – típica e manutenção da pena antes prevista no caso de influência ao suicídio com lesões graves ou gravíssimas, sendo a vítima capaz. Assim, não havendo nem melhora nem agravamento sob o aspecto penal, pode haver aplicação retroativa do artigo 122, § 1º., CP. O mesmo se diga da hipótese em que o suicídio se consuma e o influenciado é capaz (artigo 122, § 2º., CP).
Também houve continuidade normativo – típica para os casos lesões leves, lesões graves, gravíssimas ou morte, sendo a vítima vulnerável. Nessas situações, conforme visto, o agente não responderá por participação em suicídio ou em automutilação, mas, considerando a incapacidade de resistência (nula) da vítima, continuará respondendo pelos crimes supra mencionados (lesões leves ou graves), como sempre foi, já que o prejudicado não passa de um instrumento para a prática criminal pelo autor. Na última hipótese acima (morte), apenas se deve sublinhar que o autor não responderá propriamente por homicídio (simples ou qualificado), mas nas penas do homicídio (simples ou qualificado conforme o caso). O mesmo se diga das lesões gravíssimas. O indivíduo responderá nas penas do crime de lesões gravíssimas, mas não pelo crime de lesões gravíssimas. Acontece que essa já era a solução dada, mesmo antes do advento de sua positivação pelo artigo 122, §§ 6º. e 7º., CP, de maneira que nada se altera, a não ser a tipificação. A reação penal se dá na mesma intensidade e proporção anteriores. Portanto, também o artigo 122, §§ 6º. e 7º., CP , pode ser aplicado retroativamente. Lembremos que se a morte derivar de automutilação inicial com preterdolo, também não poderá haver retroação, já que se trata de “novatio legis in pejus”. Acontece que sendo a vítima incapaz de resistência, haveria lesões corporais seguidas de morte (artigo 129, § 3º., CP), cuja pena é bem menor do que a do artigo 122, § 7º., CP, que remete ao artigo 121, CP.
Quanto aos aumentos de pena agora previstos, tratando-se de inovações e, portanto, “novatio legis in pejus”, não poderão retroagir aqueles previstos no artigo 122, §§ 4º. e 5º., CP. Essas causas de aumento não existiam e não podem ser aplicadas a casos pretéritos.
Por outro lado, os aumentos previstos no § 3º., do artigo 122, CP têm o mesmo patamar de incremento punitivo (a pena é duplicada). Assim sendo, se o caso de aumento for o motivo egoístico (primeira parte do inciso I) ou a vítima menor ou com capacidade de resistência diminuída (inciso II), ocorre continuidade normativo típica e os aumentos podem permanecer sendo aplicados a casos pretéritos apenas se alterando o dispositivo, antes um Parágrafo Único, agora o § 3º. Entretanto, se a causa de aumento for embasada no “motivo torpe” ou no “motivo fútil” (parte final do inciso I), haverá configuração de “novatio legis in pejus”, já que esses incrementos não eram previstos antes da Lei 13.968/19. Assim sendo, não podem ter força retroativa.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 1. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CLAYTON, Paula J. Automutilação Não Suicida. Disponível em https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-mental/comportamento-suicidaeautomutila%C3%A7%C3%A3o/automutila%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-suicida, acesso em 13.01.2020.
DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7ª. ed. Paulo: RT, 2008.
TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004.
[1] Clayton descreve a chamada “automutilação não suicida” no Manual MSD dentre os distúrbios da saúde mental. Cf. CLAYTON, Paula J. Automutilação Não Suicida. Disponível em https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-mental/comportamento-suicidaeautomutila%C3%A7%C3%A3o/automutila%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-suicida, acesso em 13.01.2020.
[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 1. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 288.
[3] Neste sentido, ver pela doutrina em geral: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 96 – 97.
[4] Ver por todos: MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 50.
[5] Cf. Op. Cit., p. 51.
[6] Apud, Op. Cit., p. 51.
[7] Ver Delmanto apontando a impossibilidade de tentativa da receptação imprópria e Greco, citando Cezar Roberto Bitencourt e a doutrina em geral, apontando para a característica formal e a consumação com a mera “influência”. DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 656. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 919.
[8] TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004, p. 162.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7ª. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 709.
DELEGADOS.com.br
Portal Nacional dos Delegados & Revista da Defesa Social