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Lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de Polícia com o advento da Lei 12.830/13

por Editoria Delegados
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O delegado de polícia, necessariamente com formação superior em Direito, cujos membros eram de fato e agora o são de Direito integrantes das ‘carreiras jurídicas’, essenciais e exclusivas de Estado, conforme art. 2º, da Lei 12.830/2013, publicada em 20.06.3013, possuem, ao lado de defensores públicos, procuradores do Estado, promotores de justiça e juízes de Direito, certa margem de discricionariedade jurídica na condução de seus trabalhos. Logicamente tal discricionariedade limita-se ao entendimento jurídico adotado pela autoridade policial, conforme a exegese das leis, bem como da doutrina e aplicação da jurisprudência dominante.

Aliás, o art. 3º da lei em comento determina ainda que se confira o mesmo tratamento protocolar dispensado àquelas autoridades citadas, ou seja, deve-se, a partir de agora, todos os endereçamentos e comunicações oficiais entre estas autoridades políticas e de Estado serem antecedidas pelo pronome “Excelência”, fato que se reflete na importância dispensada às funções de polícia judiciária desempenhada pelos Exmo. Sr. Delegados de Polícia.

Dessa forma, é crível e totalmente cristalino hodiernamente o entendimento segundo o qual cabe somente ao delegado de polícia a decisão pela lavratura ou não do auto de prisão em flagrante delito em crimes comuns, até por que existe previsão legal especifica a respeito, que se extrai do art. 2º, §6º, da Lei 12.830/2013, no seguinte sentido: “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e circunstâncias”.

Isso por que, quando da lavratura do flagrante, se estará, automaticamente, efetuando o indiciamento do suspeito pela prática de um “crime”. Indiciamento este ‘privativo’’ da autoridade policial. Assim, indiciado torna-se aquele sujeito de direitos (e não simples objeto de investigação), eleito pela autoridade policial, representando o Estado-investigador, conforme seu entendimento jurídico, como autor de infração penal.

Em momento oportuno a investigação apontará o(s) indício(s), quando então o delegado de policia, seguindo sua convicção jurídica, providenciará o devido indiciamento, ou não, de quem de direito se encontrar na posição de suspeição ativa, seja determinando sua oitiva na forma de interrogatório, seja ratificando o interrogatório do conduzido em procedimento flagrancial, seja decidindo não indiciá-lo, lavrar ou não o auto de prisão em flagrante, e, nestes casos, tendo em vista a ausência de tipicidade material da conduta, excludente de injuridicidade, ausência de conduta, nexo causal, etc, enfim, cabendo-lhe, por corolário legal, adentrar, necessariamente, no estudo do conceito analítico do que venha ser considerado ‘crime’ a fim de proceder nas corretas tipificações e atribuição de responsabilidades e, por fim, nos demais atos que dele advém.

O argumento acima explanado encontra-se lastreado legalmente, posto que ao delegado de polícia cumpre, conforme disposição do art. 144, §4, da CF, bem como do 4º do CPP, “apurar infrações penais e sua autoria”.

Assim, deve o delegado apurar a autoria de infração penal, ou seja, autoria de “crime”.

Caso o delegado entenda, juridicamente, analisando o fato sob o prisma de quaisquer teorias da tipicidade que adote (clássica, finalista, conglobante, imputação objetiva, constitucionalista do delito, etc), que o ‘autor’ não praticou “crime”, então a única solução será decidir pelo seu não–indiciamento, ou pela não lavratura do auto de prisão em flagrante, posto que não lhe compete indiciar “autor de fato ATÍPICO”, nem “autor de conduta típica e LÍCITA”, mas sim “autor de infração penal”, ou, em outras palavras, autor de crime.

E crime é, dentre os diversos conceitos analíticos que o explicam, existentes e aplicáveis aos delitos ocorridos no Brasil, no mínimo, um fato típico e ilícito (cf. Teoria Finalista Bipartida).

Com efeito, a investigação policial, com sua conseqüente decisão de indiciamento ou não do suspeito tomada pelo delegado de polícia, não serve apenas de fornecer subsídios para que o membro do Ministério Público promova a denúncia, mas sim para fundamentar, de igual modo, uma “opinio delicti negativa”, a fim de que seja o inquérito policial arquivado pelo Magistrado, a pedido do “parquet”.

Do mesmo modo, contribui para que o Juiz exerça o primeiro juízo de admissibilidade da acusação, no caso de oferecimento da denúncia. E, não é demais insistir, ao delegado cabe apurar a “autoria de infração penal”, e não somente autoria de ‘fato típico’. Assim, poderá agir socialmente no sentido de reduzir os riscos de acusações informais (em inquéritos policiais ou APF´s) infundadas, temerárias, evitando-se, portanto, um streptus fori desnecessário ao suspeito, apto a lhe causar dano social às vezes irreparável.

Assim sendo, deverá o delegado de polícia cumprir seu mister de forma completa, ou seja, apurar a “autoria de crime”, e não apenas apurar autoria de “metade do conceito analítico de crime” (autoria de fato típico).

Afinal, se ao réu é garantido Constitucionalmente a “presunção de sua inocência”, em nada lhe prejudicará – pelo contrário, só lhe será benéfico -, que o primeiro profissional do Direito em contato direto e imediato com a situação penalmente relevante em seu desfavor, – o delegado de polícia -, lhe garanta a fiel efetividade desse postulado, aplicando seus conhecimentos jurídicos exigidos quando da assunção ao cargo em prol da legalidade, da humanidade, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.

Entrementes, causava estranheza, mesmo antes do advento da Lei 12.830/2013, o argumento semeado por alguns membros do Ministério Público, na tentativa de incutir na cabeça de estudantes de curso de Direito ou cursinhos preparatórios para concurso público, a ideia de que o delegado de polícia não deveria ‘opinar’ sobre a tipificação do delito, nem mesmo sobre excludentes de ilicitude, quando da feitura do relatório final no inquérito policial.

Pois bem. Primeiramente, entendo com parcial razão tais profissionais/docentes, pois não deve mesmo o delegado de polícia “opinar” no relatório final do inquérito ou em sede de Auto de Prisão em Flagrante. “Opinar” não é, de fato, atribuição de delegado de polícia.

 

Assim, deve o Excelentíssimo Sr. Dr. Delegado de Polícia, em verdade, fato agora reforçado pelo advento da Lei 12.830/2013, lançar nos autos de persecução criminal sua decisão de indiciamento fundamentada, conforme art. 2º, §6º, do mesmo diploma, em Inquérito Policial, mediante instauração de Portaria nesse sentido, lavratura de Termo Circunstanciado ou de Auto de Prisão em Flagrante. Afinal, s.m.j, aqueles profissionais do Direito que ‘opinam’ em processos são os dignos integrantes do Ministério Público (por meio de cotas, manifestações, etc), já que nada presidem legalmente em aspecto criminal, cabendo aos delegados de polícia “decidir”, ao final da investigação criminal que presidem, se indiciam ou não os suspeitos pela prática de crime, assim como aos juízes cabem “decidir”, ao final dos processos que presidem, se condenam ou não réu devidamente denunciado pelo ‘parquet’. E tudo isso deverá ser fundamentado, conforme se observa das diretrizes Constitucionais e legais, furto da nova tendência garantista que converge ao inquérito policial atualmente.

Ainda podemos afirmar que, diante de toda experiência obtida ao longo de 10 anos de carreira, a investigação policial perpetrada e formalizada mediante inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei conduzido pelo delegado de polícia, conforme art. 2º, §1º, da Lei 12.830/2013, delimitará, sem sombra de dúvidas, o que será discutido em sede judicial, não se avançando, em quase nada, de regra, na esfera instrutória-processual.

De fato, sustentar pensamento contrário quanto ao real legitimado para presidir-decidir sobre lavratura ou não de auto de prisão em flagrante conduziria a uma desnecessidade da própria existência da figura do delegado de polícia, pois, se assim o fosse, bastar-se-ia instalar nos portões dos Fóruns locais “caixas eletrônicos penais”, os quais contivessem  todos os preceitos primários e secundários possíveis e, acompanhados pelo policial/condutor, obter o suspeito seu ‘e-ticket’ de encaminhamento ao presídio, com início imediato à prisão provisória, aguardando-se, então, a acusação e devido julgamento.

 

Porém, não é o que determina a Constituição Federal nem as Leis processuais penais a respeito. Assim, todos os atos da administração publica devem obediência ao princípio da Legalidade, previsto no art. 37, ‘caput’, da CF,  bem como a garantia prevista no art. 5º, LIV, da CF, a qual dispõe que ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

 

Por outro norte, nada impede que o delegado arquive ‘boletins de ocorrência’ produzidos na delegacia, pois tais são lavrados em função de comunicação de fatos, em tese, criminosos, cabendo a autoridade policial averiguar sua existência, tipicidade penal, bem como se há ofensa relevante à bens jurídicos e interesses protegidos dignos de apuração na esfera penal.

 

Inclusive, o doutrinador Guilherme Nucci, em sua obra MANUAL DE PROCESSO PENAL E EXECUÇÃO PENAL, 3ª Ed., pág. 553, trás hipótese do delegado de polícia efetuar o relaxamento do Auto de Prisão em Flagrante elaborado, no seguinte sentido:

 

“ …o delegado quando se inteira do que houve e acreditando haver hipótese de flagrância, inicia a lavratura do auto. Excepcionalmente, no entanto, pode ocorrer a situação descrita no §1º do Art. 304, isto é, conforme o auto de prisão em flagrante desenvolve-se, com a colheita formal dos depoimentos, observa a autoridade policial que a pessoa presa não é, aparentemente, culpada”.
                 
Cita ainda, em sua obra, Maurício Henrique Guimarães Pereira, o qual explica que:

 

“ o Delegado de Polícia pode e deve relaxar a prisão em flagrante, com fulcro no art. 304, §1º, interpretado a “contrario sensu”, correspondente ao primeiro contraste de legalidade obrigatório, quando não estiverem presentes algumas condições somente passíveis de verificação ao final da formalização do auto, como, por exemplo, o convencimento, pela prova testemunhal colhida, de que o preso não é o autor do delito, ou, ainda, quando chega à conclusão que o fato é atípico (Habeas Corpus e polícia judiciária, p. 233-234)” – grifo nosso (grifo nosso).

 

Roberto Delmanto Júnior, citando Câmara Leal, menciona que “se as provas forem falhas, não justificando fundada suspeita de culpabilidade, a autoridade, depois da lavratura do auto de prisão em flagrante, fará por o preso em liberdade (As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração, p. 121).

 

Em verdade, a decisão pela lavratura do flagrante pelo delegado de polícia apresenta certo grau de discricionariedade, logicamente dentro de limites vinculados em lei. Senão vejamos o que diz a coleção de jurisprudência a respeito:

TACRSP: “(…) Inocorre o delito do art. 319 do CP, na conduta de Delegado de Polícia que deixou de lavrar auto de prisão em flagrante de acusado que nessa situação se encontrava, iniciando somente o Inquérito Policial, pois a regra da lavratura do auto de prisão em flagrante em situações que o exijam, não é rígida, sendo possível certa discricionariedade no ato da Autoridade Policial, que pode deixar de fazê-lo em conformidade com as circunstâncias que envolvem cada caso” (RDJTACRIM 51/193).

 TACRSP: “Para a configuração do crime previsto no art. 319 do CP é indispensável que o ato retardado ou omitido se revele contra disposição expressa de lei, inexistindo norma que obrigue o Delegado de Polícia autuar em flagrante todo cidadão apresentado como autor de ilícito penal, considerando seu poder discricionário, não há se falar em prevaricação” (RT 728/540) – (grifo nosso).

TACRSP: “A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente (RJTACRIM 39/341) – (grifo nosso).

TACRSP: “Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente pode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razões para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade (RT 622/296-7). No mesmo sentido, TACRSP: RT 679/351, JTACRIM 91/192.

Destarte, se a Autoridade Policial tem esse rosário jurisprudencial expelido em favor de suas atribuições para discernir sobre o caso concreto e aplicá-lo, do mesmo modo tal agente público apenas não pode estabelecer seu múnus in casu de forma incontinenti.

Isto posto, conclui-se que o delegado de polícia não está, sequer em tese, vinculado à classificação delitiva aportada em noticias-crime trazidas pelos policiais militares, ou rodoviários estaduais ou federais, podendo perfeitamente, dessa forma, arquivá-los se entender inconsistentes, e/ou promover o relaxamento ou não lavratura do auto de prisão em flagrante de suspeitos trazidos à sua presença, fundamentando seu despacho conforme seu entendimento jurídico adotado para o caso concreto.

Finalizando, se não cabe a ninguém discutir sobre a livre convicção sustentada por um juiz de direito na aplicação da sentença, bem como da independência funcional do promotor de justiça quando do oferecimento ou não da denúncia, de igual sorte a ninguém cabe se imiscuir na decisão tomada pelo delegado de polícia quando da lavratura ou não de auto de prisão em flagrante, bem como do indiciamento ou não de suspeitos em sede de inquérito policial devidamente instaurado. Ainda mais agora, com o advento da Lei 12.830/2013, que sacramentou entendimento nesse sentido, conferindo ao delegado de polícia a incumbência da condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, conforme art. 2º, § 1º,  do mesmo diploma.

Sobre o Autor,

Fabrício de Santis
Atualmente Delegado de Polícia no Estado do Rio Grande do Sul; Colunista e correspondente da região Sul do Portal Nacional dos Delegados (www.delegados.com.br); Pós graduado em Direito Penal pela UniFmu/SP e especialista em Tribunal do Júri pela Escola Superior de Advocacia/SP; Professor Universitário e de cursos preparatórios. Foi Delegado de Policia no Estado da Paraíba, Vice-presidente da Adepol/PB; Gerente de Inteligência da Sec. Segurança/PB; Advogado Criminalista/SP; Membro da Comissão de Tribunal do Júri Penha de França/SP; Membro Assessor da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP; Defensor dativo na área do Júri, junto à PGE/OAB de São Paulo.


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