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Sobre desmilitarização da Polícia Militar e unificação com a Polícia Civil

por Editoria Delegados

 

Várias manifestações tomaram as ruas do Brasil neste ano de 2013 e os vários casos noticiados na imprensa sobre alguns abusos praticados na contenção dos protestos trouxeram à tona a discussão sobre a necessidade de mudança sobre o modelo de policiamento militar ainda existente no Brasil.

    A propósito, sobre duas das principais instituições policiais existentes, impende registrar inicialmente que a Polícia Militar, força auxiliar das Forças Armadas, é a polícia administrativa, responsável pelo policiamento ostensivo e pela preservação da ordem pública, estando subordinada diretamente ao Poder Executivo.

    A Polícia Civil, também denominada Polícia Judiciária, por sua vez, é a encarregada da apuração dos crimes, fase preliminar que antecede ao Processo Penal, estando estreitamente ligada à função jurisdicional do Estado e vinculada finalisticamente ao Poder Judiciário, embora teratologicamente permaneça subordinada ao Poder Executivo.

    Feito esse registro, no mês em que a Constituição Federal completa 25 anos, fica evidente que ainda vivenciamos a experiência de uma recente da redemocratização.

    Nesse contexto, a formação da Polícia Militar não se apresenta consentânea com o modelo democrático fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana, fundamentos da República Federativa do Brasil inscritos no artigo primeiro Carta Constitucional.

    O reflexo disso foi visto nos embates e na forma com que alguns cidadãos foram reprimidos pela Polícia Militar em manifestações populares amparadas pelo direito à livre manifestação do pensamento (inciso IV) e pelo direito de reunião (inciso XVI), ambos previstos no art. 5º da CF/88, culminando em grandes manifestações contra a forma de atuação da referida corporação.

    Recentemente, mais dois casos emblemáticos firmaram a convicção de que algo precisa ser feito com relação a esse modelo de policiamento. O primeiro deles foi o caso Amarildo, em que dez policiais militares – inclusive um Major e um Tenente – foram indiciados pelo Delegado de Polícia Civil da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro no inquérito policial em que se apurou o desaparecimento daquele morador logo após ser preso pela Polícia Militar.

    O outro caso emblemático foi a forma como professores do Rio de Janeiro foram debelados pela Polícia Militar durante movimento que pleiteava a melhoria das condições de trabalho dos educadores, profissionais responsáveis pela formação de nossos futuros cidadãos.

    Esses são apenas dois exemplos dentre muitos outros noticiados na imprensa que resultaram no que hoje se mostra como um grande movimento pela desmilitarização da Polícia Militar.

    Embora a desmilitarização seja uma reivindicação legítima, nesses momentos surgem especialistas prontos para propagandear panaceias mirabolantes, pré-fabricadas, aguardando o momento oportuno para deflagrá-las, geralmente momentos de forte instabilidade institucional, criando o ambiente propício para dispararem ideias de questionável interesse público.

    Um desses kits prontos de fábrica é a proposta que, valendo-se da discussão em torno da desmilitarização da Polícia Militar, prevê logo um pacote completo –  desmilitarização da Polícia Militar, unificação com a Polícia Civil e unificação de todas as carreiras existentes dentro das polícias.

    Tal ideia de unificação total e irrestrita virou um verdadeiro transtorno obsessivo compulsivo (TOC) de seus idealizadores, que sempre ficaram à espreita, tamanha a desfaçatez da proposta, até que qualquer coisa relacionada à segurança pública fosse aventada (desta vez é a desmilitarização da Polícia Militar), aproveitando assim do momento para propagar à exaustão nas mídias sociais e nos meios publicitários seus ideais quiméricos para curar todos os problemas de segurança pública, como se a repetição tivesse o dom de mudar a essência das coisas, adotando pensamento estratégico de Joseph Goebbels, o qual afirmara que “uma mentira contada mil vezes, se torna realidade”.

    Certamente, não se pode cair em tais contos, porquanto cabe às cabeças pensantes o dever de aclarar as coisas e analisar tudo o que for proposto nessa área de modo bastante acurado.

    Fazendo uma análise sóbria da questão, sem o atrevimento de  propor qualquer solução mágica, a primeira conclusão é que uma mudança se faz necessária, notadamente no que tange à formação e à forma de atuação da Polícia Militar.

    Porém, qualquer mudança efetiva e duradoura deve ser feita passo a passo, de forma responsável, pois não se muda uma cultura de várias décadas com a alteração de uma lei. Antes disso é preciso a mudança de valores, da cultura que permeia a formação dos integrantes da instituição policial, sendo esse apenas o primeiro passo de um longo processo de readequação de um modelo já consolidado.

    No caso da proposta de desmilitarização da Polícia Militar, será necessário o transcurso de pelo menos quinze ou vinte anos até que uma nova cultura, totalmente diferente da utilizada até hoje, esteja arraigada na consciência coletiva de todo o efetivo, tempo esse também necessário para que uma renovação ao menos parcial da tropa se realize.

    Essa anotação é importante haja vista que os especialistas que aparecem em cada esquina insistem no discurso repetitivo de que a desmilitarização deve ser seguida de uma unificação da Polícia Militar (desmilitarizada apenas no nome) com a Polícia Judiciária (Polícia Civil) e, se não bastasse, unificando também todas as carreiras.

    Com a devida venia às opiniões dos especialistas que defendem tal proposta, mas ela não passa de um discurso frágil e perigoso, que sucumbe ao menor esforço intelectivo capaz de constatar, além do risco ao próprio estado brasileiro, o efeito inverso que uma unificação dessa natureza proporcionaria.

    Devemos atentar para o fato de que as Polícias Judiciárias, de formação civil desde a sua instituição pela Constituição Federal de 1988, com formação humanística e atuação subordinada aos ditames da lei, possui hoje um quadro de servidores consideravelmente menor se comparado com as Polícias Militares.

    Por isso, a intenção de trazer para dentro das Polícias Civis todo um efetivo militar, sem um período anterior de “amortecimento” do modelo anterior recém-desmilitarizado, fará com que a suposta solução vire um problema ainda maior, já que ao invés de desmilitarizar a Polícia Militar, promover-se-á a militarização da Polícia Civil como efeito reflexo da união das duas instituições.

    Não há dúvida de que os policiais militares que se juntarão aos civis trarão consigo um modelo de policiamento com o qual conviveram por toda a vida profissional, que não desaparece de um dia para outro com uma passe da mágica, parecendo óbvio que a consequência mais evidente dessa união funesta será a sobreposição do modelo até hoje adotado pela Polícia Civil pela doutrina trazida pelos policiais militares.

    A proposta de unificação da Polícia Militar e Polícia Civil se torna ainda mais nefasta se notarmos que o Brasil ainda experimenta uma pequena experiência de recente redemocratização, o que desaconselha a adoção de um modelo de polícia única, que consequentemente formaria uma enorme força policial, sem referência em termos de efetivo e de concentração de poder, já que se aproximaria ou ultrapassaria o efetivo de todas as Forças Armadas brasileiras.

    Essa nova polícia, única em cada Estado da Federação, com efetivo digno de um exército, com predominante engajamento e formação militar em sua origem, ficaria sob a tutela de cada um dos governadores, o que demonstra a gravidade de tamanha concentração de força que, em última análise, é um risco ao modelo federativo de nossa República.

    Um exemplo claro da falta de razoabilidade da proposta de unificação é que nos EUA existe mais de 17 mil agências policiais, com aproximadamente 12.300 departamentos de polícia municipais e de condados, 3100 xerifados, além das polícias estaduais e inúmeras agencias policiais federais, das quais se destacam o Federal Bureau of Investigation (FBI), a Drug Enforcement Administration (DEA), o U.S. Marshals (USM), o Immigration and Naturalization Service (INS), o U.S. Treasury Department (Departmento do Tesouro), o Bureau of Alcohol, Tobacco, and Fire Arms (ATF), o Department of Interior (DI), o U.S. Postal Service (USPS), dentre outros, sendo que alguns destes se subdividem em outras agências policiais, cada uma com atribuições específicas, existindo casos de agências policiais encarregadas de investigar outras polícias.

    Isso mostra que a existência de mais de uma instituição policial, ao invés de ser combatida, deve ser aperfeiçoada através da especialização de suas funções, garantindo assim uma atuação mais eficaz.

    Nesse sentido, a Polícia Judiciária hoje investiga até mesmo os crimes comuns praticados por policiais militares, como no caso do desaparecimento de Amarildo no Rio de Janeiro, fato amplamente noticiado na imprensa, que culminou no indiciamento pela Polícia Civil do Rio de Janeiro de dez policias militares.

    A manutenção da separação das instituições é necessária e, principalmente, aconselhável, pois o Brasil ainda carece de maior amadurecimento em termos institucionais, antes que se vislumbre a unificação de forças policiais, conquanto a especialização e a separação das funções sejam aconselháveis, especialmente no nosso caso.

    Ademais, os defensores da unificação sustentam que no restante do mundo todas as polícias são de ciclo completo. Conquanto seja questionável a assertiva de que em todo o mundo tal modelo é adotado, fato é que nas polícias que adotam o ciclo completo, invariavelmente existe uma divisão interna, exatamente para distinguir aqueles policiais que exercem o policiamento preventivo, fardado e ostensivo, daqueles que exercem a função velada de investigação das infrações penais.

    Por isso, a tese de que o ciclo completo torna o modelo de gestão mais eficiente e funcional é no mínimo questionável, já que não há um modelo no qual o mesmo policial que age no policiamento ostensivo preventivo, fardado, funcione também na investigação, até mesmo pela inviabilidade de se fazer tudo ao mesmo tempo.

    Exemplo claro é que no próprio EUA, que costuma ser utilizado como exemplo, o policial ingressa como oficial, encarregado do policiamento ostensivo, não atuando na fase de investigação. O mesmo se diz do investigador, que não atua no policiamento fardado ou de manutenção da ordem pública.

    Isso mostra que a divisão existente no Brasil nada mais é que a especialização dessas funções em duas instituições, racionalizando e dando mais eficácia ao exercício das respectivas funções, de modo que a separação é salutar, pois as instituições possuem particularidades, formação específica para a atividade fim e atribuição distintas, cada uma estando finalisticamente ligada a Poder diversos – a Polícia Militar diretamente vinculada ao Poder Executivo, encarregada da prevenção e da manutenção da ordem pública; e a Polícia Judiciária que, como o próprio nome diz, está finalisticamente ligada ao Poder Judiciário, encarregada da fase preliminar ao processo penal, consistente na apuração das infrações penais.

    Outra alegação dos defensores do ciclo completo é a de que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) seria um bom exemplo de polícia de ciclo completo. Todavia, o argumento é insustentável, pois a PRF não pode ser comparada com os demais modelos de polícia, seja a Polícia Militar seja a Polícia Civil, menos ainda se considerarmos a junção das complexas funções de ambas em uma só instituição.

    Embora o argumento seja tentador e seduza os incautos, ele não se sustenta, pois a função da PRF, nos termos §3º do art. 144 da CF/88, restringe-se ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais, não havendo razão para se falar em ciclo completo se ele é completo apenas no que tange ao restrito círculo de atribuição da instituição, que, repita, é de policiamento ostensivo.

    Enfim, o que existe no Brasil no que tange as atividades exercidas atualmente pela Polícia Militar e pela Polícia Civil é apenas a especialização de funções, dividas em duas instituições para melhor aperfeiçoamento e exercício das atividades das quais estão incumbidas.

     Isso deixa evidente que ambas as instituições policiais, ainda que venham a possuir natureza civil, possuem distinções marcantes que aconselham a manutenção da especialização de cada uma delas na respectiva área, ao menos até que uma nova cultura seja implantada e absorvida institucionalmente pelos integrantes da atual Polícia Militar que, em um tempo razoável, exigirá pelo menos vinte e cincos anos.

    Enfim, essas e outras razões demonstram que a desmilitarização da Polícia Militar é uma necessidade, mas que a pretensão de uni-la à Polícia Judiciária é um equívoco que não atende ao interesse público e desconsidera a negativa experiência recente findada com a redemocratização.

    Diante dessas circunstâncias, é evidente que a Proposta de Emenda Constitucional nº 51/2013 do Senado é um retrocesso, pois mudanças – quando necessárias – devem ser graduais, especialmente quando interferem em instituições tão sensíveis à manutenção da tranquilidade institucional de nosso juvenil estado democrático de direito.

    Por isso, qualquer mudança nessa área deve primar pela ausência de rupturas abruptas ao modelo muito bem definido pelo constituinte originário, mantendo-se a continuidade dos serviços essenciais realizados pela que porventura venha a se tornar a Polícia Administrativa Civil dos Estados (atual Polícia Militar).

    Forte nessas razões, a melhor forma de se realizar a desmilitarização da Polícia Militar e retirando-lhe, primeiramente por lei, a natureza militar, mudança essa que deverá vir acompanhada de profunda reforma do modelo de formação de seus integrantes e de sua forma de atuação. Manter-se-á obviamente as mesmas funções de polícia administrativa ostensiva e de preservação da ordem pública, podendo, nessa função, receber o apoio complementar das guardas municipais, porém sob um novo prisma democrático e de respeito aos direitos individuais.

    Por fim, sobre a Polícia Judiciária, aqui consideradas tanto a Polícia Federal como as Polícias Civis dos Estados e do Distrito Federal, ela deverá ser aperfeiçoada, uma necessidade premente para que exerça com eficiência sua relevante e indeclinável função de promover a investigação das infrações penais, gozando de autonomia financeira, funcional e administrativa, além de independência funcional para o membro da carreira de Delegado de Polícia.

    Tais garantias são essenciais à atividade de investigação criminal – que deve agir sem influxos externos que maculem a isenção e a imparcialidade necessárias à finalidade pública da qual estão investidas as Polícias Judiciárias -, primando assim pelo fortalecimento e coesão do sistema de justiça criminal, que começa com a investigação pela Polícia Judiciária, passa pela promoção da ação penal pelo Ministério Público e se encerra com o julgamento pelo Poder Judiciário, os quais devem estar estruturados tanto financeiramente como funcionalmente, condições necessárias para se reduzir o grave problema de criminalidade existente no Brasil.

 

Sobre o autor

Thiago Frederico de Souza Costa é delegado de Polícia do Distrito Federal

 

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