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Serviço de Inteligência das Polícias Militares: mais uma ilegalidade tolerada na investigação criminal

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

Augusto Cavalheiro Neto, Delegado de Polícia.

1. Considerações iniciais:

Dentre as inúmeras ilegalidades que vêm sendo cometidas pelas polícias militares (e toleradas por certos setores do Poder Judiciário e, principalmente, do Ministério Público) na tentativa de praticarem atos privativos das polícias judiciárias na fase investigativa da persecução criminal, merece destaque a atividade desenvolvida pelos chamados Serviços de Inteligência destas corporações.

Também conhecidos como “P2”, “PM2” ou “polícia secreta”, tais unidades, em viaturas discretas e trajes paisanos, têm realizados atos de natureza eminentemente investigativa, como campanas, cumprimentos de mandados de busca e apreensão, mandados de prisão, realização de interceptações telefônicas, dentre outras.

A maior ilegalidade é que tais atos, ao contrário do que se poderia pensar, não estão sendo dirigidos contra militares e destinados à apuração de crimes desta natureza na forma estabelecida pela legislação castrense. Ao contrário, esta atividade, ao menos no Estado do Rio Grande do Sul, vêm sendo realizada visando a apuração de crimes comuns cometidos por civis, contrariando as disposições, tanto da Constituição Federal, quanto do Código de Processo Penal.

Diante deste cenário, este breve estudo almeja resgatar os fundamentos constitucionais da atividade administrativa de investigação criminal, assim como demonstrar a ilegalidade deste atos praticados pelas polícias militares.

2. A finalidade dos Serviços de Inteligência:

Os denominados Serviços de Inteligência das Polícias Militares têm sua origem na estruturação das instituições que compõem as Forças Armadas, mais precisamente o Exército, a Marinha e a Força Aérea. Toda a unidade militar, em princípio possui as chamadas “Seções”, sendo a 2ª Seção, igualmente conhecida por “S2”, a responsável pela captação de informações, modernamente chamado de “dados de inteligência”, acerca de setores que interessem a atividade-fim da Organização Militar.

Assim, os militares que integram a 2ª Seção, ou Serviço de Inteligência, possuem, em regra, as missões de correição à conduta dos militares e a coleta e análise de dados, produzindo um “conhecimento”, que possa orientar toda a atividade desenvolvida pela Força.

As Polícias Militares, estruturadas e organizadas sobre o padrão das Forças Armadas, também desenvolveram seus Serviços de Inteligência, que têm como objetivo a realização de coleta de informações objetivando orientar o planejamento e execução do policiamento ostensivo. Para tanto, efetuam trabalho de campo e a pesquisa de toda a espécie de informação que possa contribuir para o êxito das ações empreendidas.

Neste contexto, não há hoje, e nem pode haver em razão da importância desta atividade para as unidades militares, nenhuma Polícia Militar no Brasil que não possua um Serviço de Inteligência ou uma “PM 2”.

3. A investigação criminal hoje no Brasil – fundamentos constitucionais:

Àrea extremamente conturbada na atual conjuntura do direito processual penal brasileiro é a investigação criminal, ou seja, a fase preliminar à propositura da ação penal. Seja pelo avanço do Ministério Público que postula a atribuição investigativa, em casos que considere “relevantes”, demonstrando de forma cristalina um inaceitável caráter seletivo na investigação, mitigando o princípio da obrigatoriedade, seja pela sempre almejada autorização para investigar crimes civis pelas Polícias Militares, certo é que em nenhum momento da história brasileira, nunca houve tanta interferência nas atribuições constitucionais das Polícias Judiciárias.

Contudo, para evitar a perda do foco, esta reflexão se restringirá ao tema proposto e anteriormente exposto
Como em todo o Estado Democrático de Direito, no Brasil a criação do Estado e a determinação de competências e atribuições está definida pela Carta Constitucional. Neste sentido, insta destacar a lição de ALEXANDRE DE MORAES acerca do próprio conceito de constituição: “ Juridicamente, porém, Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos.”

No mesmo sentido, versa PAULO BONAVIDES “Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais”.

Não por outra razão, os principais autores do Direito Administrativo, seja brasileiro ou alienígena, consagram como pedra fundamental do Estado de Direito, o princípio da legalidade (artigo 37 da CF) . Segundo os comandos deste princípio, já exaustivamente conhecido, a Administração Pública só pode agir quando houver expressa autorização legislativa, ou como ensina ODETE MEDAUAR “ (…) a Administração poderá justificar cada uma de suas decisões por uma disposição legal; exige-se base legal no exercício dos seus poderes.” E o não menos renomado CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO leciona “Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática.

Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito Brasileiro.”

Neste cenário, a investigação criminal, enquanto atividade de natureza eminentemente administrativa, somente poderá ser considerada válida e legítima se praticada em consonância as disposições constitucionais e infraconstitucionais que atualmente estão em vigor.

Hoje, os fundamentos das atividades investigativas para a apuração de infrações penais, excetuadas as formas investigativas anômalas, (v.g. as CPI’s – artigo 58, §3º CF, dentre outras) se encontram nos seguintes artigos: a) Artigo 144, § 1º da Constituição Federal, para a Polícia Federal ; b) Artigo 144, § 4º da Constituição Federal, para as Polícias Civis; c) Artigo 144, § 4º, in fine, da Constituição Federal , para as polícias das Forças Armadas e Polícias Militares, apenas para a apuração de crimes militares.

Assim, a Constituição Federal é clara ao determinar a atribuição da Polícia Federal e, por exclusão, a atribuição das polícias civis dos estados que compõem a federação. Ou seja: excetuados os crimes de atribuição da Polícia Federal e os crimes militares, todas as demais infrações penais compõem a atribuição das polícias civis, que deverá ser exercida com exclusividade .

Sobre a atribuição das Polícias Militares cumpre transcrever as disposições do Artigo 144, § 5º da Carta Constitucional: “Às polícias militares cabem à polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. (…) ”, donde se percebe claramente que o legislador constituinte vedou às polícias militares a prática de atos investigativos, excepcionado apenas para a apuração de crimes militares que serão apurados em inquérito policial militar, disciplinado nos artigos 7º a 28 do Código de Processo Penal Militar.

Neste sentido, tem-se que somente as Polícias Judiciárias, Federal ou Civis, possuem competência administrativa delegada pela Constituição Federal para promover a investigação de crimes comuns praticados por civis, dentro, é claro, de suas respectivas atribuições em razão da natureza da infração. Não há, portanto, frente ao ordenamento jurídico vigente, qualquer possibilidade de sustentar a legalidade de atos investigativos, ou seja, que visem apurar autoria e materialidade delitivas em crimes comuns, praticados por integrantes das policiais militares.

4. Conseqüências jurídicas destes atos:

A atuação dos Serviços de Inteligência das polícias militares na investigação criminal, ora atacada neste estudo, traz por conseqüência, vários óbices que não só comprometem a validade dos atos praticados, como afetam, inclusive, a própria ordem democrática. Dentre estas podem ser destacadas quatro principais conseqüências:

a) Ausência de regulação jurídica destas investigações: toda a investigação possui natureza eminentemente administrativa, estando, como dito anteriormente, vinculada e subordinada a legalidade estrita (artigos 5º, II e 37 caput, ambos da Constituição Federal). Assim, somente se admite atuação investigativa dos poderes públicos se, anteriormente, as regras que disciplinem o procedimento investigativo estiverem pré-fixadas e tornadas públicas, em face do princípio da publicidade (artigo 37 caput da Constituição Federal). Cite-se como exemplo, todo o regramento estabelecido para o inquérito policial (artigos 4º a 23 do Código de Processo Penal) e para o inquérito policial-militar (artigos 9º a 28 do Código de processo Penal Militar). Contudo, as investigações realizadas pelos Serviços de Inteligência das polícias militares não possuem qualquer regramento, sendo, claramente, atividade à margem da legalidade;

b) Atividade sem controle externo do Ministério Público: a partir da promulgação da Carta Constitucional de 1988, toda a atividade policial, civil ou militar, passou a estar submetida a um controle por parte do Ministério Público (artigo 129, VII da Constituição Federal). Com isso, o Órgão Ministerial tem o dever de controlar tão-somente a legalidade dos atos praticados nas investigações policiais, exigindo a instauração e autuação do respectivo inquérito, a numeração das folhas, a manutenção dos livros obrigatórios nas delegacias de polícia. Tudo isso, com o objetivo de verificar a existência de eventual irregularidade passível de correição. Todavia, o Ministério Público somente exerce o controle externo no tocante a chamada “P1” responsável pela confecção do inquérito policial-militar, não fiscalizando as atividades do Serviço de Inteligência, eis que o mesmo, ao menos em tese, “não pratica atos de polícia judiciária”, dispensando, assim, o controle. Portanto, no atual cenário, considerando que os agentes da “P2” praticam atos de polícia judiciária, tal atividade vêm sendo desenvolvida sem nenhum controle por parte do Ministério Público;

c) Violação da Lei 8.906/94 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil: o artigo 7º, inciso XIV da Lei 8.906/94 garante o direito de todo e qualquer advogado ter acesso a qualquer inquérito policial em todas as Delegacias de Polícia do país, independentemente de possuir procuração nos autos. Visando evitar as investigações sigilosas típicas do período autoritário, bem como efetivar o princípio da publicidade da atividade administrativa, a legislação conferiu aos advogados o direito de acesso aos autos de todo e qualquer inquérito ou procedimento investigativo. No caso ora criticado, não havendo regramento para a conduta dos Serviços de Inteligência, jamais o advogado poderá ter acesso as informações colhidas sobre seus constituídos nas diligências investigativas dos Serviços de Inteligência;

d) Invalidade dos atos praticados por violação aos artigos 5º incisos LIII e LVI, e 144, §1º, 4º e 5º, todos da Constituição Federal: os atos praticados pelos Serviços de Inteligência das polícias militares não possuem nenhuma prestabilidade na persecução penal, eis que eivados do mais grave vício que pode possuir um ato administrativo: a atipicidade constitucional. Neste sentido é o ensinamento de ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES e ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO: “ Os preceitos constituicionais com relevância processual têm natureza de normas de garantia, ou seja, de normas colocadas pela Constituição como garantia das partes e do próprio processo. (…) Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse público, o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício (…)” . Ou ainda, na esteira da teoria do Direito Administrativo, os atos administrativos praticados são invalidos, eis que não atendido o primeiro dos requisitos de todo e qualquer ato administrativo: a competência para a prática do ato, que decorre, obrigatoriamente, da Carta Constitucional. Leciona ODETE MEDAUAR que “Nenhum ato administrativo pode ser editado validamente sem que o agente disponha de poder legal para tanto. A competência resulta explicitamente ou implicitamente da norma e é por ela delimitada.” Assim, os atos investigativos praticados pelos Serviços de Inteligência das polícias militares são nulos e ilegais.

5. Considerações finais:

Diante deste cenário, brevemente relatado neste estudo, resta cristalina a ilegalidade das diligências de natureza investigatória praticadas pelos Serviços de Inteligência das polícias militares. Seja pela ausência de competência administrativa para a prática do ato, seja pela invalidade dos mesmos por expressa contrariedade aos direitos fundamentais consagrados pela Carta Constitucional, não se pode admitir num “Estado” que se diz “Democrático de Direito”, o prosseguimento de investigações secretas por servidores públicos que não possuem esta atribuição. Permitir o prosseguimento disto é, não só uma afronta ao direito positivo, mas antes de tudo uma afronta aos princípios republicanos herdados desde os movimentos liberais do século XVIII, e sobre os quais se assentam todos os estados modernos.

ASDEP

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