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Indiciamento à luz da Teoria da Imputação Objetiva

por Editoria Delegados
13fev12-2

Por Fabrício de Santis

 

Introdução
          
        Imputação Objetiva, em sinopse, apresenta-se como um “corretivo” do nexo de causalidade, inserindo-se neste uma valoração do “risco permitido”, a fim de que se exclua, por meio de sua afirmação, um dos elementos do fato típico, ou seja, o próprio nexo causal (ou nexo normativo, neste caso), com objetivo se atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um risco relevante, mas permitido ou tolerado pela sociedade, que sofre diuturnamente com a gritante violência que assola nosso País.

         Conforme ensina BITENCOURT, “falar de Direito Penal é falar, de alguma forma, de violência”.1 E, falando-se em violência, de regra todas elas acabam por desaguar em uma Delegacia de Polícia, mais dia, menos dia. E, nesse momento, exsurge a figura da Autoridade Policial que, por meio de seus conhecimentos jurídicos aplicados ao caso concreto, inicia seus procedimentos apuratórios, classificando o delito, adequando-o aos ditames processuais e redigindo, ao final da investigação, por meio da peça formal denominada inquérito policial, sua manifestação acerca dos fatos em forma de relatório fundamentado, culminando com a decisão de indiciamento proferida pela Autoridade Policial por excelência, que é o Delegado de Polícia.

         Veremos a seguir que é no relatório, via de regra, que o Delegado de Polícia profere a decisão de indiciamento e que esta, na grande maioria prática dos casos, verdadeiramente irá delimitar o campo de atuação acusatória do Ministério Público, quando de sua promoção de denúncia-crime.

         Por isso, relevante se mostra a decisão de indiciamento promovida pelo representante do Estado-investigação, pois caso se demonstre inconsistente, poderá causar ao sujeito passivo uma violência simbólica irreversível, um verdadeiro streptus fori desnecessário e desproporcional, que se perpetuará no meio social em que vive.

        O presente trabalho revela, por conseguinte, que cabe ao Delegado de Polícia verificar, quando da tomada dessa relevante decisão, se há realmente indícios de que o autor praticou fato definido como crime, bem como se tal fato, hodiernamente e consoante o atual entendimento dos tribunais pátrios, é considerado possuidor de relevância a ensejar persecução criminal promovida pelo Estado.

 

1. Teoria da Imputação Objetiva

        Imputar significa atribuir a alguém algo. Quando falamos em Imputação Objetiva, não queremos levar a interpretação de se imputar a esse alguém algo de modo objetivo, ou seja, abandonando os conceitos de dolo e culpa. Isso porque a expressão “imputação objetiva” não significa “responsabilidade penal objetiva”, em que o autor responde pelo resultado desde que presente a relação de causalidade entre conduta e resultado, ainda que não tenha agido com dolo ou culpa.2

        Essa teoria se ampara na idéia de que o resultado normativo só pode ser imputado a quem realizou uma conduta geradora de um perigo juridicamente reprovado socialmente. Imputação Objetiva significa, segundo o professor DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, “atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de relevante risco juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico”.3

        Os tipos penais passariam, então, a conter um elemento valorativo ínsito, a própria imputação objetiva, de modo que sem ela – a verificação do risco proibido -, a conduta ou o resultado seriam considerados atípicos penalmente.

        Com a adoção dessa teoria da Imputação Objetiva, dar-se-ia maior relevância ao princípio Constitucional da Ofensividade, descrito em seu artigo 98, I,da CF, desprezando-se as condutas inofensivas que antes eram tratadas como relevantes pelo dogma causal, pois com a aplicação desta teoria eliminar-se-iam as condutas irrelevantes em nível de tipicidade, reduzindo as áreas de responsabilidade penal.    

        A imputação objetiva não depende das circunstâncias psíquicas do agente, mas do sentido social do seu comportamento, ou seja, se esse representa ou não a criação de um risco proibido pela sociedade. Ainda conforme DAMÁSIO, “admite também a exclusão de condutas criadoras de risco relevante, porém toleradas pela ordem social (risco permitido). Antecipa, com isso, quando necessário à justiça, a exclusão do campo penal de certas condutas e resultados, solução que as doutrinas clássicas só admitem nas esferas da ilicitude e da culpabilidade, em momento posterior, após a instrução criminal, na sentença de mérito”.4

        A imputação objetiva, atribuindo atipicidade ao comportamento do agente, impediria uma persecução criminal justificada, conferindo mais garantias e fortalecendo a democracia no campo do Direito, avançando em direção de um Direito Penal mínimo.

        Esses critérios de sustentação da Teoria da Imputação Objetiva estão presentes em nossa vida cotidiana. São eles, o risco permitido, o princípio da confiança, a proibição do regresso, a participação e consentimento da vítima, ação de próprio risco, conhecimentos especiais do agente, dispostos como vetores da imputação objetiva, da seguinte forma:

 

1.1 Risco permitido e risco proibido – o risco pertence ao mundo natural. A permissão e a proibição determinam-se de acordo com as regras do ordenamento social. Leva-se em consideração a tolerância da sociedade em relação a uma conduta e não a gravidade do risco. Não há conduta típica quando o resultado jurídico advém de riscos naturais da vida social. Conforme Jakobs, “O taxista não responde pelo delito que cometa seu cliente uma vez chegado ao ponto de destino, ainda que este tenha anunciado durante o trajeto. Ninguém responde pela consequência que derive do cumprimento pontual de suas obrigações contratuais”.5

 

1.2 Princípio da confiança – presume-se a regra de que todos são responsáveis e agem de acordo com as normas da sociedade. Em tese, ninguém quer causar dano a outrem, como por exemplo, o médico que confia que os instrumentos a serem usados na cirurgia estarão esterilizados.

 

1.3 Proibição de regresso – quem estabelece com outro um relacionamento inofensivo, não fica responsável por comportamento futuro realizado por ele, ainda que ilícito, desde que não seja garante. Ensina o doutrinador alemão Jakobs que, “O comerciante de alimentos que vende produtos em bom estado não responde como partícipe de um homicídio no caso em que saiba que o adquirente pensa manipular o gênero para cometer um homicídio por meio de veneno”.6

 

1.4 Consentimento e participação da vítima – o consentimento, mesmo quando não aparece como elementar do tipo, deve ser considerado excludente da tipicidade e não causa supralegal de exclusão da ilicitude. Damásio aponta, explicando que, “verifica-se hoje, na doutrina da imputação objetiva, tendência de conceder ao consenso da vítima maior relevância no terreno da tipicidade e não da antijuridicidade, i.e., os penalistas estão começando a considerar que a contribuição do ofendido na prática do fato, mediante consentimento, nas hipóteses em que o tipo não menciona o dissentimento, deve produzir efeito no plano da tipicidade, excluindo-a, e não no da ilicitude”.7

 

1.5 Ação a próprio risco – o agente não responde por seus atos, se a conduta da vítima é irresponsável e se afasta do risco permitido. É hipótese em que a vítima participa do evento danoso. Continua o douto professor, exemplificando que “um viciado entrega a seu amigo, também viciado, droga e seringa. Ele aplica em si mesmo a substância tóxica, sofre uma overdose e morre. (…) o provedor não responde pelo resultado morte quer a título de dolo quer a título de culpa, desde que a ingestão da droga seja ato próprio e responsável do viciado. (…). Subsiste, porém, eventual crime referente a tóxicos (tráfico, posse, fornecimento etc.) ou omissão de socorro”.8

 

1.6 Conhecimentos especiais – ocorre quando alguém possa prever a ocorrência de um evento danoso em virtude de tais conhecimentos especiais. Ninguém espera, por exemplo, que um garçom tenha profundos conhecimentos de biologia. O exemplo a seguir trazido por Jakobs, clareia melhor essa situação: “Um estudante de biologia ganha algum dinheiro trabalhando à tarde como garçom. Quando se pede a ele para servir uma salada exótica, descobre nela uma fruta que acredita, embora leigo, ser venenosa. De todo modo, serve a salada”.9

 

2. Indiciamento à luz da Teoria da Imputação Objetiva

         Antes de adentrarmos no campo do indiciamento, cumpre destacar o conceito de Inquérito Policial. Assim, de forma objetiva, trata-se o Inquérito Policial de um conjunto de diligências investigatórias presididas pelo Delegado de Polícia a fim de se descobrir a autoria e coletar toda a materialidade deste advinda.

         Nesta senda, o indiciamento é ato privativo de convencimento da Autoridade Policial, com base nos elementos carreados para os autos, no qual, concluindo-se pela existência de fundadas suspeitas de que o investigado é autor do crime em apuração, promove seu indiciamento, e determina que sejam juntados aos autos o boletim individual do suspeito, com encaminhamento dos autos à justiça, para apreciação do poder judiciário.

 

         Assim, o Delegado de Polícia, quando da condução das investigações, descoberta a autoria e materialidades delitivas, deve lançar sua decisão no Inquérito Policial que preside, seja pelo indiciamento ou não do suspeito, ao final do relatório, ou durante a tramitação do procedimento inquisitivo. Afinal, compete ao Delegado de Polícia “decidir” se indicia ou não o suspeito, assim como ao juiz compete “decidir” se condena ou não o réu. E tudo isso deverá ser fundamentado, conforme se observa das diretrizes Constitucionais e tendência garantista que converge ao Inquérito Policial atualmente.

 

         Desta forma, firmamos a opinião de que indiciado é o sujeito de direitos (e não simples objeto de investigação), eleito pela Autoridade Policial, conforme seu entendimento jurídico, como autor da infração penal. Isto porque a investigação policial apontará, em momento oportuno, os indícios, quando então o Delegado, seguindo sua convicção jurídica, providenciará o devido indiciamento ou não de quem de direito se encontrar na posição de suspeição ativa, seja determinando sua oitiva na forma de interrogatório, seja ratificando o interrogatório do conduzido em procedimento flagrancial, seja decidindo não indiciá-lo, tendo em vista a ausência de tipicidade material da conduta, procedendo-se, por fim, nos demais atos que dele advém.

         Frisa-se, ainda, que ao Delegado de Polícia cumpre, conforme disposição do art. 4º do CPP, “apurar infrações penais e sua autoria”. Assim, reprise-se, deve o Delegado de Polícia apurar a autoria de infração penal, ou seja, autoria de “crime”. Portanto, caso o Delegado entenda, juridicamente, analisando o fato sob o prisma de quaisquer teorias da tipicidade que adote, especialmente sobre a teoria da imputação objetiva em comento, de que o ‘autor’ não praticou “crime”, então a única solução será decidir pelo seu não–indiciamento, posto que não lhe compete indiciar “autor de fato atípico”, nem “autor de conduta típica e lícita”, mas sim “autor de infração penal”, em outras palavras, autor de crime.

         E crime é, dentre os diversos conceitos analíticos que o explicam, existentes e aplicáveis aos delitos ocorridos no Brasil, no mínimo, um fato típico e ilícito (cf. Teoria Finalista Bipartida). Por isso que, em seu relatório, sustentamos que é extremamente necessário que o Delegado de Polícia expresse seu entendimento jurídico, tipificando penalmente (tipicidade material + tipicidade formal) a conduta do suspeito, inclusive analisando se existem causas excludentes de injuridicidade ou de culpabilidade a militar em favor do investigado, posto que, caso se constate a presença de alguma justificante ou dirimente, não haverá crime, mas sim somente um fato típico (provido de conduta, revelador de resultado, possuidor de nexo entre ambos, e tipicidade). E, não é demais insistir, ao Delegado cabe apurar a “autoria de infração penal”, e não somente autoria de fato típico.

 

         Assim, poderá agir socialmente no sentido de reduzir os riscos de acusações formais infundadas, temerárias, evitando-se, portanto, um streptus fori desnecessário ao suspeito, apto a lhe causar dano social às vezes irreparável.

 

        Pelo exposto, vislumbramos que deverá o Delegado de Polícia cumprir seu mister Constitucional de forma completa, ou seja, apurar a “autoria de crime”, e não apenas apurar autoria de “metade do conceito analítico de crime” (autoria de fato típico).

 

         Por fim, sustentamos também que é por meio do minucioso relatório constante do art. 10, §1º, do CPP, que deverá a Autoridade Policial se manifestar pela tipicidade penal, decidindo, assim, sobre o indiciamento ou não do investigado, mediante a análise da tipicidade formal e material da conduta delitiva perpetrada, inclusive no tocante às excludentes de ilicitude e culpabilidade, além, é lógico, de toda apuração circunstancial da infração penal, consubstanciada na materialidade delitiva, v.g., colheita dos elementos de prova e demais perícias requisitadas.

 

        Iremos agora tratar da decisão de Indiciamento sob a ótica da Teoria da Imputação Objetiva.

 

         Com o surgimento da Teoria da Imputação Objetiva, o tipo penal passou a ter conteúdo valorativo, com já visto. Exige-se, assim, que a conduta seja tomada por risco proibido para ser imputada ao agente. As conseqüências são que nem a causalidade nem a finalidade do sujeito nos dizem se uma pessoa realizou o tipo penal, sendo necessária uma valoração; a outra é que, ainda que uma conduta possa estar formalmente adequada ao tipo penal, não significa que seja relevante ao Direito Penal.

 

        A distinção se mostra evidente no seguinte exemplo: “Um proprietário coloca na sua casa de praia localizada no Estado do Rio de Janeiro, um dispositivo antiroubo: acopla uma espingarda calibre. 22 apontada para a região abdominal de uma pessoa de 1,70 metros de altura, atrás da porta principal do imóvel. Predispõe a “surpresa” de modo que, ao arrombar a porta, o bandido leve somente um tiro na barriga”.

 

        É notório que no Estado do Rio de Janeiro a criminalidade é acentuada, e a sociedade daquele Estado clama por paz, tranqüilidade e segurança. Portanto, a sociedade daquela região “permitiria”, em tese, que seus bens sejam protegidos desta forma, ante a situação caótica de insegurança pela qual é submetida e, ocorrendo a morte de intruso, adotando-se a Teoria da Imputação Objetiva, o fato seria considerado atípico, posto que o risco criado pelo morador não seria considerado proibido por aquela mesma coletividade.

 

        O agente ofendicular (proprietário do imóvel), nesse caso, mediante sua hipotética conduta, criou um risco relevante, mas juridicamente permitido por aquela sociedade. E, relembrando as lições de DAMÁSIO, só há imputação objetiva quando ocorre a “ realização de uma conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico”.10 Ou seja, o proprietário da casa não praticaria sequer fato tipificado como crime.  A apuração de sua conduta se daria no campo da tipicidade, e não no da antijuridicidade.

 

         Por outro lado, neste exemplo, caso o uso dos ofendículos – e o resultado obtido – fossem tratados de outra forma, como legítima defesa da propriedade, certamente haveria, ao final do processo criminal, uma decisão absolutória sustentando a exclusão da antijuridicidade, e não a exclusão da tipicidade. Mas isso somente após regular processamento de inquérito policial, processo judicial e decisão final, o que levaria tempo, dinheiro, e injustiças sociais, além do já citado streptus fori desnecessário.

 

        O grande problema das justificantes do direito penal e, consequentemente, da Teoria Finalista da Ação quando abordamos o tema, é justamente a demora processual e o constrangimento de se ver inaugurada uma ação penal em casos que, desde o início, se sabia da “inocência” do agente, ou da falta de justa causa para início da persecução criminal.

 

        E, como já dito, é por meio do inquérito policial e da respectiva decisão de  indiciamento promovida pelo Delegado de Polícia que se inaugura a persecução criminal em face do suspeito.

 

        Dessa forma, ab initio, o proprietário da casa de praia seria investigado e ao final acusado informalmente (mediante indiciamento feito) em inquérito policial instaurado pelo Delegado de Polícia, por homicídio doloso; seria acusado formalmente (mediante denúncia) pelo Promotor de Justiça, de regra, quase sempre, pelo mesmo tipo penal; seria processado judicialmente conforme a lei; correria o risco de ser condenado pelo Tribunal “leigo” do Júri, caso não fosse absolvido sumariamente pelo Juiz nas fases processuais pertinentes. Ao final, e somente no final, após uma longa maratona de constrangimentos processuais, que certamente refletir-se-iam em sua vida pessoal e profissional, imagem e intimidade, seria considerado inocente, com reconhecimento de que atuou mediante legítima defesa, pois sua conduta “sempre fora lícita e jurídica” diante do caso concreto analisado.

 

        Inaceitável o constrangimento que se conferiria a esse cidadão defensor da propriedade. Segundo, ainda, posição de DAMÁSIO, “tendo o sujeito agido licitamente, não é legal nem justo que venha a ser processado pra provar ao final ter agido em legítima defesa”.11

 

        Como já sustentou o Juiz DANTE BUSANA, quando membro do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, “o preconceito de que as causas excludentes da antijuridicidade só devem ser reconhecidas ao término do processo – durante décadas assim se entendeu – não tem amparo na lei e ignora a necessidade de que a acusação venha revestida do indispensável ‘fumus boni juris’, isto é, decorra de suspeita razoável de que um crime foi cometido. Nem há que se cercear a liberdade do indivíduo, cuja inocência não comporte dúvida, em nome de uma falsa prudência”.12

 

        É aqui que ganha relevância a Teoria da Imputação Objetiva aplicada no indiciamento da fase investigatória promovida pela Autoridade Policial. Isso porque é a decisão de indiciamento, como ato privativo do Delegado de Polícia em forma de decisão fundamentada, que irá certamente restringir o âmbito da acusação e formar a opinião positiva ou negativa do “parquet”, bem como a opinião do magistrado quando do recebimento da denúncia.

 

         Desse modo, aplicando-se a Teoria da Imputação Objetiva ao indiciamento, diversos fatos irrelevantes ou permitidos pela sociedade seriam tratados como causas de exclusão de tipicidade já no momento do indiciamento. Ou seja, o Delegado de Policia deixaria de indiciar o suspeito, pois o mesmo não teria, em tese, cometido crime, pois se a sociedade permite esse tipo de defesa (não gerador de risco proibido e relevante), não há que se falar em tipicidade penal da conduta. Nem em autoria de crime.

 

         E, se, como já dito logo acima, ao Delegado de Polícia cabe apurar a materialidade e autoria de crime, nada restaria a fazer senão sustentar o não-indiciamento do suspeito. Submeter o agente, nessas circunstâncias, a um processo criminal, mediante a baliza do indiciamento feito pela Autoridade Policial, nesses casos, é uma injustiça.

 

         É por isso que a Teoria da Imputação Objetiva preconiza o afastamento da tipicidade, impedindo qualquer procedimento criminal. Antecipa, com isso, quando necessário à justiça, a exclusão do campo penal de certas condutas e resultados, solução que as doutrinas clássicas só admitem nas esferas da ilicitude e da culpabilidade, em momento posterior, após a instrução criminal, na sentença de mérito,  e com a agravante, em prejuízo do acusado, de que ainda há doutrinas e jurisprudência entendendo que o dolo e a culpa situam-se na culpabilidade e esta só pode ser apreciada na decisão final.

 

         Contrariamente e ao nosso ver com razão, ensina Damásio de Jesus que  “A imputação objetiva, atribuindo atipicidade ao comportamento ou ao evento, em face de sua ausência, impede a persecução criminal, atendendo a reclamos de um Direito Penal democrático e garantista”.13

 

        Nesta vertente, ante a ausência de critério legal a embasar a análise do que poderia ou não ser considerado ‘risco proibido ou permitido pela sociedade’, que logicamente dependeria do estudo do caso concreto, por analogia, utilizamo-nos do artigo 355, do Código de Processo Civil, o qual reza que “em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum”.  

 

         Assim, o juízo quanto a tais requisitos deverá ser feito, na fase judicial, pelos Magistrados e, na pré-processual ou inquisitiva, pelos Delegados de Polícia. Desta análise decorre o chamado de caráter valorativo do tipo penal. Ainda, segundo JAKOBS, “devemos chegar à conclusão de que o socialmente adequado, especialmente também quando aparece em forma da permissão de um risco, não fica legitimado pela referência ao Direito, mas que se legitima de maneira histórica, é dizer, por sua própria evolução. O Direito termina por definir o esboço do socialmente adequado e o perfila”.14

 

3. Conclusão

 

        Temos que reconhecer, forçosamente, que a falência do sistema que compõe o aparato governamental da Segurança Pública dos Estados-membros já não atende satisfatoriamente aos anseios sociais, visto tratar-se de uma estrutura arcaica, fundada num modelo concebido no Século XVIII, para realidades diametralmente diversas das que temos nos dias presentes.

 

        A aplicação da Teoria da Imputação Objetiva à decisão de indiciamento promovida pelo Delegado de Polícia poderia auxiliar o Poder Judiciário ao menos a torná-lo mais prático, pois só seriam levados à sua apreciação, mediante a instauração de Inquérito Policial e conseqüente decisão de indiciamento promovida pelo Delegado de Polícia, fatos penalmente relevantes e proibidos por uma sociedade que se encontra em evolução constante.

 

        Além disso, proporcionaria uma grande diminuição de processos, pois causas baseadas em fatos atípicos – como os que hoje necessitam de ampla discussão para, ao final, serem considerados antijurídicos – seriam desde logo obstados pelo juiz, que rejeitaria denúncia atípica – conforme a aplicação da teoria ora analisada -, promovida pelo representante do parquet, caso não se manifestasse no sentido de requerer ele mesmo o arquivamento do Inquérito Policial por atipicidade do fato.

 

        Acatada tal teoria, tornaria o judiciário menos moroso e mais acreditado pela sociedade. Afinal, no Poder Judiciário deve residir toda a esperança de um povo, posto tido notoriamente como “o último bastão das liberdades”, sendo que sem um Judiciário forte não teremos efetivamente um Estado Democrático de Direito .

 

        Corroborando com tal pensamento, mostra-se fundamental a aceitação do fato de que o Direito está, tal qual a sociedade, em profunda mudança, requerendo, assim, novos institutos e caminhos para sua proteção. Este é, talvez, o principal mérito da Imputação Objetiva aplicada ao ato de indiciamento feito pela Autoridade Policial.

 

     Trata-se de uma teoria ainda em discussão no Brasil, mas que não depende de reforma do Código Penal ou Processo Penal para ser adotada, pois a Teoria da Imputação Objetiva envolve a análise de um elemento normativo implícito em todo o tipo penal, cuja ausência implica na exclusão de uma elementar (nexo de causalidade normativo) e consequente atipicidade do fato.

 

        Por fim, com a aplicação da Teoria da Imputação Objetiva a sustentar a decisão de indiciamento proferida pelo Delegado de Polícia, certos fatos seriam considerados atípicos e, consequentemente, não se questionaria sobre a antijuridicidade da conduta, mas sim se anteciparia uma liberdade física – e muitas vezes psicológica ligada a um processo traumático, de pessoas suspeitas de práticas de condutas consideradas atípicas e irrelevantes socialmente.

 

         Portanto, mostra-se razoável, necessário e plenamente legal a Autoridade Policial se imiscuir nas excludentes de ilicitude, bem como nas teorias modernas da tipicidade, a fim de que sua decisão de indiciamento seja a mais justa possível, e garanta ao suspeito alguns de seus direitos previstos na Constituição Federal, dentre eles, o da ampla defesa e o da presunção de inocência.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BITENCOURT, Cézar Roberto. Manual de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

_____. Manual de DIREITO PENAL – Parte Geral. 4. ed. rev. atual. e amp.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

FRANCO, Alberto Silva; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, v.1.

JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal – parte geral. 24. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2001, v.1.

_____. Imputação objetiva. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

_____. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1998.

 

Sobre o autor

 

Fabrício de Santis é delegado de Polícia Civil no RS. Colunista do Portal Nacional dos Delegados, Professor e Especialista em Direito Penal.

DELEGADOS.com.br
Revista da Defesa Social & Portal Nacional dos Delegados

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