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O Fim do Crime de Desacato!

por Editoria Delegados

 

 

No dia 7 de maio, a comissão de juristas responsável por elaborar o anteprojeto do Código Penal decidiu, por maioria de votos, sugerir a retirada do crime de desacato da legislação brasileira. A ideia sugerida pelo anteprojeto é fazer com que o desacato seja absorvido em um parágrafo do crime de injúria. Quem praticar injúria contra servidor público em razão de suas funções pode ter a pena dobrada.

 

A proposta ainda deve ser votada no Congresso Nacional, mas tem grande chance de ser aprovada. Segundo o presidente da comissão, ministro Gilson Dipp, os organismos internacionais ligados à defesa de direitos humanos repudiam a tipificação do crime de desacato, que vem sendo usado historicamente como um ato de coação do estado em relação ao cidadão.

 

Segundo o professor Lélio Braga Calhau, estudioso do tema, em sua obra “Desacato”, há uma resistência do Ministério Público na aplicação desse tipo penal em um grande número de ocorrências. É que muitas vezes não há desacato propriamente dito nas circunstâncias que o envolve, mas abuso de autoridade. O agente público provoca uma situação ou lança no boletim de ocorrência uma agressão que nunca existiu.

 

Atualmente, a pena para o crime de desacato a servidor no exercício de sua função ou em razão dela é de seis meses a dois anos de detenção ou multa. Com a mudança, se o crime for classificado como injúria, a pena será de seis meses a um ano e multa. Se considerado injúria qualificada, a pena será de até três anos e multa.

 

Com a aplicação da Lei 10.259/01, esse crime passou para a competência dos juizados especiais criminais, podendo o réu, nas condições do artigo 76 da Lei 9.099/95, ser beneficiado com o instituto da transação penal (HC 22.881). Isso significa que o réu pode fazer um acordo para o processo criminal não seguir, desde que cumpra determinadas condições estabelecidas em juízo.

 

Menosprezo

 

Segundo entendimento do STJ, desacato significa menosprezo ao funcionário público no exercício de sua função e não se confunde com a falta de educação (HC 7.515). É um crime que não possibilita retratação, pois dirigido contra o estado.

 

Segundo Calhau, a ofensa pode ser qualquer palavra ou ato que acarrete vexame, desprestígio ou irreverência ao funcionário. A pessoa investida da função pública não precisa estar diretamente em frente do agressor, mas pode estar separado por uma divisória, um pequeno obstáculo ou por um pequeno grupo de pessoas, bastando que ela veja ou ouça a ofensa.

 

O ministro Luiz Vicente Cernicchiaro esclareceu, no julgamento do habeas corpus, que o crime de desacato exige um elemento subjetivo voltado para a desconsideração. “Não se confunde apenas com o vocabulário grosseiro”, ressaltou o ministro. Uma palavra mal-educada proferida no momento de exaltação é incompatível com o dolo exigido para a tipificação do crime.

 

Liberdade de expressão

 

Segundo o professor Calhau, avaliar o crime de desacato é problemático quando esse passa a ser um instrumento de arbítrio do estado para coibir a liberdade de expressão. Sua criminalização deve surgir de um ponto de equilíbrio em que se preservem os interesses da administração pública e o direito de crítica.

 

O ministro Nilson Naves apontou a dificuldade de encontrar esse equilíbrio ao julgar um habeas corpus na Quinta Turma (HC 104.921). Ele se utilizou da frase atribuída ao ensaísta francês Montaigne para justificar o emprego do mau uso das palavras em determinadas situações. “A palavra é metade de quem a pronuncia, metade de quem a escuta”, resumiu.

 

No mesmo julgamento, o ministro também citou Oscar Wilde, para quem “se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio nesse mundo”. E o ditado popular que assinala que “a palavra foi dada ao homem para ocultar seu pensamento”. No crime de desacato, muitas vezes, a agressão vai além das palavras.

 

Rasgar documentos

 

O desacato pode surgir, por exemplo, de um advogado descontente com uma decisão judicial. Segundo jurisprudência do STJ, a imunidade conferida pelo estatuto da OAB não acoberta advogado para desacatar servidor no fórum e sair atirando ao lixo documento assinado por juiz (RHC 4.007).

 

A imunidade não acoberta ainda os excessos de linguagem desnecessários e desonrosos dirigidos a magistrado ou promotor (RHC 923). Por isso, nesse caso, as expressões ofensivas contidas em petições configuraram crime contra a honra em ação penal pública condicionada.

 

O STJ entende que não se caracteriza o desacato quando há exaltação mútua de ânimos, com troca de ofensas. Em um de seus julgados, a Quinta Turma considerou que o tipo penal exige o dolo, intenção de ultrajar ou desprestigiar a função pública, não se configurando o tipo se houve discussão acalorada. No caso julgado, houve troca de ofensas entre o réu e o escrivão, sem se saber quem deu início às agressões (REsp 13.946).

 

Indignação

 

A reação indignada do cidadão em repartição pública, onde esbarra com intolerância de servidor ou em situações de protesto, não é desacato para a jurisprudência do STJ. A Quinta Turma decidiu em um processo que a indignação é arma do cidadão contra a má prestação de serviços em quaisquer de suas formas, quaisquer que sejam os agentes estatais (RHC 9.615).

 

Segundo o ministro Edson Vidigal, relator do habeas corpus julgado, sobre o caso em que um policial acusou um homem de desacato, o estado pode ser eficiente ou não dependendo do nível de cidadania dos que pagam impostos. “Pagar impostos e conformar-se, aceitando as coisas como sempre estão, em suas mesmices, implica aumentar o poder dos mandantes e seus mandados, ampliando-se a arrogância de todos em todas as esferas da administração.”, disse.

 

Exercício da função

 

O exercício da função pública é condição essencial para que haja o crime de desacato, mesmo que seja exercida de forma temporária.

 

No julgamento de um habeas corpus, o réu teve prisão em flagrante decretada por desobediência após ter sido intimado, em um dia de feriado, por oficial de Justiça que não tinha sido regularmente nomeado (RHC 10.015).

 

A Quinta Turma entendeu que, mesmo que o oficial não tenha prestado concurso para o cargo, ele estava no exercício da função pública e deveria, por isso, ser respeitado. Segundo o ministro Felix Fischer, para o direito penal, o conceito de funcionário público é amplo. O artigo 327 considera funcionários públicos quem, mesmo transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

 

Em caso semelhante, o réu sustentava ausência de justa causa para a ação penal por ser a ofendida empregada prestadora de serviço (RHC 9.602). Segundo o ministro Nilson Naves, o exercício da função pública caracteriza a condição de funcionário público perante o direito penal.

 

Desobediência

 

O crime de desobediência está previsto pelo artigo 330 do Código Penal e não se confunde com o desacato. Segundo o professor Calhau, quando o agente, além de desobedecer à ordem proferida pelo funcionário, também se utiliza de violência ou ameaça, a conduta se ajusta ao tipo resistência, previsto no artigo 329 do Código Penal.

 

De acordo com Calhau, o desacato difere da resistência, já que nesta a violência ou ameaça visa à não realização de um ato de ofício, ao passo que naquele tem por finalidade desprestigiar a função exercida pelo funcionário.

 

No crime de desacato, conforme a jurisprudência, é imprescindível a existência do nexo causal. Um desentendimento na fila de um aeroporto envolvendo um juiz, por exemplo, não pode ser enquadrado nesse tipo penal por não ter nenhuma relação com a função jurisdicional.

 

Segundo a relatora de um habeas corpus julgado, ministra Laurita Vaz, “para a perfeita subsunção da conduta ao tipo, o que se perquire é se foi dirigida em razão da função pública exercida” (HC 21.228).

Bate-boca em CPI

 

O crime de desacato, historicamente, surgiu para proteger servidores públicos no exercício da função contra a atuação de particulares. Mas há casos em que as agressões envolvem servidores, às vezes, de mesma função hierárquica.

Exemplo disso foi o julgamento do habeas corpus relativo ao processo em que o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, foi acusado de desacatar parlamentares, em decorrência de um depoimento em CPI na Assembleia Legislativa, em 2006.

 

O secretário havia sido convocado para prestar esclarecimentos sobre as medidas adotadas para investigar e punir os responsáveis por crimes praticados por policiais militares no combate aos atentados promovidos pela organização criminosa PCC. O depoimento, entretanto, resultou numa série de constrangimentos.

 

Segundo a denúncia, Saulo teria se portado de forma inadequada ao ensaiar passos de dança e batucar na mesa na sessão da CPI. O secretário foi acusado de desviar o olhar propositadamente do interlocutor enquanto era inquirido e fazer gestos obscenos em uma das situações.

 

Mau comportamento

 

Os ministros da Sexta Turma não analisaram a existência de dolo na conduta do réu, mas a maioria julgou haver indícios suficientes para o prosseguimento da ação penal (HC 104.921).

 

De acordo com a denúncia, o secretário teria dito a um dos deputados que “não daria para explicar para criminoso como a polícia atua”. Quando o presidente da sessão retirou o microfone de sua mão, teria se levantado da cadeira e dado uma volta em torno de si mesmo, “simulando estar disponível para ser revistado ou detido”.

 

O secretário foi denunciado por desacato e ingressou no STJ pedindo o trancamento da ação penal. A defesa alegou que, para o funcionário público ser sujeito ativo de desacato, é necessário que ele esteja despido da qualidade funcional ou o fato tenha sido cometido fora do exercício de suas funções.

 

Por três votos a dois, a Sexta Turma entendeu que o réu poderia responder pelo crime de desacato independentemente da hierarquia, pois o que se busca na lei é o prestígio da função pública. “Se o bem jurídico é o prestígio da função pública, não se compreende como possa haver lesão apenas quando a conduta é praticada por particular”, ressaltou o ministro Og Fernandes.

 

STJ

 

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