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Novo decreto de armas de fogo é um tiro no pé — e o crime agradece

por Editoria Delegados

Por Marcelo Amaral Colpaert Marcohi e Felinto Alves Martins Filho

Por Marcelo Amaral Colpaert Marcohi e Felinto Alves Martins Filho

No último dia 8 foi publicado o Decreto 9.785/19, atendendo, nas palavras do presidente da República, aos anseios daqueles que o elegeram. Pretendia-se, aparentemente, flexibilizar a posse, o porte e a aquisição de armas de fogo. No entanto, um ponto parece escapar à observação da proposta, considerando-se que é pauta do governo também o enfrentamento da criminalidade: a nova lei poderá acabar beneficiando criminosos já condenados! Não faz muito tempo que tivemos situação parecida, naquela vez por parte do Legislativo. Na intenção de endurecer o combate aos crimes patrimoniais, a Lei 13.654/2018 acrescentou a expressão “de fogo” à elementar “arma” para fins de majoração da pena do roubo[1]. Com isso, acabou-se por beneficiar condenados por roubo com armas que não fossem de fogo.

Agora foi a vez do Executivo. Dentre várias alterações, o decreto modifica a relação de armas consideradas de “uso permitido”, aumentando sensivelmente esse rol. A título de exemplo, quem antes era surpreendido portando uma pistola .40 ou uma pistola 9mm deveria responder pelo crime de “posse de arma de uso restrito”, previsto no artigo 14 do Estatuto do Desarmamento, cuja pena prevista varia de 3 a 6 anos. Agora, o porte dessas armas — sem autorização legal — deve se amoldar àquilo que prevê o artigo 16, “posse de arma de uso permitido”, cuja pena prevista é de 2 a 4 anos.

Além da redução da pena, é preciso atentar-se para outras consequências:

Natureza hedionda: quem antes foi condenado por portar arma de uso restrito deveria se submeter às diretrizes previstas na Lei 8.072/90, vale dizer, não poderia se beneficiar da concessão da fiança e do indulto; ademais, deve iniciar o cumprimento da pena em regime fechado e reclamar o cumprimento de 2/5 da pena para obtenção de progressão de regimes

Agora, dado que a arma é de uso permitido, deve-se afastar a natureza hedionda do crime, permitir a concessão da fiança, de eventual indulto, além de exigir o cumprimento de apenas 1/6 da pena para galgar o regime mais benéfico. O regime de cumprimento por sua vez, em tese, será o aberto, ainda que condenado à pena máxima.

Prisão preventiva: de acordo com o artigo 313 do Código de Processo Penal, somente tem lugar a prisão preventiva nos crimes punidos com pena abstrata superiores a 4 anos, exceto no caso de reincidência por crime doloso (ressalvadas certas exceções).

Com a alteração havida pelo decreto, e em razão da diminuição da pena máxima em abstrato (antes de 6 anos, agora de 4 anos), regra geral resta inviabilizada a determinação de prisão preventiva dos acusados, bem como é preciso revogar a prisão de todos aqueles que estão presos por ocasião desse critério legal, por sua natureza penal.

Organização criminosa: de acordo com a Lei 12.850/12, considera-se organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas, desde que praticado crime cuja pena máxima seja superior a 4 anos. Nesse sentido, a título de exemplo, seria admitido como meio de prova a infiltração de agentes, a colaboração premiada e a infiltração policial. Quem compõe a organização, financia ou obstrui a investigação, dentre outras condutas,

Contudo, o decreto afasta a aplicação da Lei 12.850, notadamente porque a posse, porte ou a venda de arma de uso permitido tem pena máxima de 4 anos, impondo, outrossim, por via reflexa, o afastamento do crime autônomo previsto no artigo 2º.

Nesse contexto cabe ainda um questionamento: e se a única prova do crime decorre de um meio de prova que agora não é mais admitido?

A lei mais benéfica, como se sabe, deve ser aplicada aos fatos praticados anteriormente à nova lei, conforme disciplinam o parágrafo 2º do artigo 2º do Código Penal, o inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal, previsto como direito fundamental, e o artigo 9º do Pacto de São José da Costa Rica. Trata-se de novatio legis in mellius, que tem a mesma aplicabilidade em se tratando de decreto, e não apenas quando lei em sentido estrito.

Isso porque, tratando-se de norma penal em branco, o decreto preenche o conteúdo normativo do tipo penal e a ele se integra. O decisivo, no caso, deve ser a natureza do complemento: tratando-se de regulamentação temporária ou excepcional, como no clássico exemplo de tabelamento de preços, aplicar-se-á a regra do artigo 3º do Código Penal. Não nos parece que seja o caso na hipótese de conteúdos com fins de permanência ou estabilidade, tais como a definição de arma proibida ou do que seja substância entorpecente, casos nos quais incide o benefício da retroatividade[2].

Mais uma vez o que vemos é a alteração de leis penais ou processuais sem a devida atenção às consequências, o que, além de representar um grave erro, certamente não vai ao encontro da vontade daqueles que elegeram o presidente.

[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-jun-22/stj-aplica-lei-afasta-majorante-roubo-arma-branca. Acesso em 9/5/2019.

[2] Guilherme de Souza Nucci, Curso de Direito Penal – parte geral (Rio de Janeiro: Forense, 2017), 176; Eugenio Raúl Zaffaroni, Manual de direito penal brasileiro, V. 1 (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006), 199.

Sobre os autores

Marcelo Amaral Colpaert Marcohi é advogado criminalista, professor universitário, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e especialista em Direito e Processo Penal pela Escola Paulista de Magistratura.

Felinto Alves Martins Filho é advogado criminalista, professor universitário, mestrando em Direito Constitucional e Teoria Política pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e especialista em Direito e Processo Penal pela PUC-SP.

 

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