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Organizações criminosas, crime de estelionato digital e a quebra de sigilo bancário sequencial

por Editoria Delegados

O incremento do crime de estelionato digital é fenômeno que acompanha o desenvolvimento tecnológico que a sociedade hodierna vive, mormente no campo das interações sociais digitais.

 

Introdução

 

O incremento do crime de estelionato digital é fenômeno que acompanha o desenvolvimento tecnológico que a sociedade hodierna vive, mormente no campo das interações sociais digitais.

 

Tais interações sociais digitais não só facilitam a vida e convívio social, mas igualmente servem de meios para a prática de crimes. Esse alcance alargado que o digital propicia em todos os campos, nos coloca como possíveis vítimas de crimes de estelionato, vez que podemos ser abordados pelos mais diversos modos.

 

O referido cenário é francamente perceptível no cerne da sociedade, pois se até hoje alguém não foi abordado em algum intento criminoso fraudulento, conhece alguém que já foi. Essa percepção chegou até o Congresso Nacional que editou a Lei 14.155/2021, introduzindo o §2º-A ao artigo 171, com a rubrica Fraude Eletrônica e a Lei 14.478/2022, introduzindo o art. 171-A.

 

Do avanço das Organizações Criminosas sobre o crime de Estelionato Digital.

 

Se valendo deste leque amplo de atuação, as Organizações Criminosas (“ORCRIMs”) vêm se modernizando e se arvorando de nichos criminosos pouco explorados anteriormente, pois aquelas geralmente se dedicavam ao tráfico e outros crimes que envolviam violência. No entanto, a abrangência e lucratividade que crimes, vulgarmente chamados de golpes, propiciam, chamou atenção dos Grupos Criminosos mais organizados, fazendo com que facilmente encontremos muitos faccionados na prática direta de crimes desta espécie ou cobrando taxas (“caixinhas”) para a sua prática por grupos menores.

 

A lucratividade que seduz outros criminosos a esta prática é tamanha, que muitas das vezes, aquele indivíduo que precisaria se valer de uma arma de fogo, investindo para adquiri-la, para com ela, empregar grave ameaça na subtração de um veículo, correndo risco de ser baleado ou preso por forças policiais e tendo de buscar um receptador, opta pelo crime de estelionato digital, que pode ser praticado sem risco iminente, bem como lhe trazendo alta rentabilidade. Esta ponderação em muitos Estados do Brasil fez o crime de Estelionato crescer absurdamente ao passo que outros crimes diminuíram.

 

Diante destes favoráveis aspectos, para concretizar seu sucesso na nova empreitada, se valendo da impunidade e se afastando dos rastros do crime, as “ORCRIMs” apenas precisam de diversas pessoas dispostas a exercer um papel fundamental na execução e sucesso criminoso, sendo na venda ou aluguel de suas contas bancárias, a fim de que os valores oriundos do crime transitem por elas para dificultar sua rastreabilidade até o destinatário final, ou seja, até a cúpula dos Grupos Organizados.

 

Das ações de Segurança Pública no enfrentamento do Estelionato Digital.

 

No que tange à Política de Segurança Pública para evitar e reprimir esta prática, temos os holofotes voltados em especial às Polícias Judiciárias, Civis principalmente por uma questão de atribuição e competência dos crimes investigados. Esse protagonismo das Polícias Civis neste papel vem trazendo frutos positivos, já que há aperfeiçoamento técnico e material, embora devesse ser mais aprofundado e difundido em todas as corporações, o que decerto traria muito mais resultados.

Este aprimoramento se faz essencial na medida em que o digital não para de evoluir e carrega consigo a prática criminosa que dele se vale. Entretanto, o aperfeiçoamento dos atores do Sistema de Justiça Criminal não deve se restringir à ponta policial, pois é de suma importância que o Ministério Público e o Poder Judiciário se familiarizem com as terminologias e suas aplicações para que melhor compreendam o que se busca em cada medida cautelar representada ou se conclui ao fim de um Relatório de Inquérito Policial e, de forma não menos importante, estejam sensíveis a enfrentar evoluções jurisprudenciais, sempre com o fito de garantir a maior eficiência à persecução penal.

 

Dos aspectos práticos da Investigação do Estelionato Digital.

 

A investigação policial, além de sigilosa, cuja prática per si não nos seria cabível divulgar nesta obra, é discricionária, pois permite ao Delegado de Polícia, quando diante dos elementos de informação ou provas colhidas, a opção pela melhor estratégia investigativa na busca da verdade dos fatos apurados.

 

Todavia, é público e notório que, conforme salientado alhures, há a necessidade do envolvimento de uma série de contas bancárias visando garantir o sucesso criminoso, o que torna necessária a representação pela medida cautelar de quebra de sigilo bancário, ao menos, destes envolvidos, já que os valores aportam numa conta inicial, onde são imediatamente enviados a outra conta e a outra, em incontáveis transações financeiras até seu saque, consoante a prática investigativa demonstra.

 

O arcabouço legislativo que ampara tal medida cautelar reside na Lei Complementar 105/2001, a qual trata do sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências. Em paralelo, temos o direito à intimidade, consagrado no art. 5º, inciso x, da CRFB. Por outro lado, temos na mesma prateleira fundamental, o direito à propriedade e segurança. Logo, sabendo que não há direito fundamental absoluto, não poderia a intimidade servir de escudo absoluto para a prática de crimes, fazendo-se necessário o sopesamento entre eles.

 

Ainda sobre o tema, apesar da jurisprudência do Pretório Excelso se valer deste raciocínio em inúmeras decisões, vale instar a possibilidade de mitigação da liberdade de expressão relacionada aos ocupantes de cargos legislativos (imunidades materiais), permitindo a imputação de crimes (STF AP 1044).  

 

Antevendo este dilema, o próprio legislador ao trazer a LC 105/01, aborda exceções legais, sobretudo aquela que preconiza que não constitui violação de dever de sigilo a divulgação de operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa, in verbis:

 

“Art. 1o As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

(…)

  • 3o Não constitui violação do dever de sigilo:

 

I – a troca de informações entre instituições financeiras, para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil;

 

II – o fornecimento de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil;

 

III – o fornecimento das informações de que trata o § 2o do art. 11 da Lei no 9.311, de 24 de outubro de 1996;

 

IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;

 

V – a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados;

 

VI – a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2o, 3o, 4o, 5o, 6o, 7o e 9 desta Lei Complementar.

 

VII – o fornecimento de dados financeiros e de pagamentos, relativos a operações de crédito e obrigações de pagamento adimplidas ou em andamento de pessoas naturais ou jurídicas, a gestores de bancos de dados, para formação de histórico de crédito, nos termos de lei específica.”    

 

 

Da quebra de sigilo bancário sequencial.

 

Em uma visão mais conservadora, cada quebra de sigilo bancário costuma ser objeto de uma representação apartada, demandando uma nova provocação a quebra de sigilo de contas descobertas após a primeira quebra, ou seja, identificadas naquele extrato inicial como sendo contas para onde escoaram os valores do crime.

Entretanto, pelos fundamentos retrocitados, com o fim de imprimir maior eficiência à persecução penal, podemos visualizar uma ordem de  afastamento de sigilo bancário sequencial.

 

Assim, nesta quebra sequencial, aponta-se e discrimina-se na representação inaugural a operação financeira criminosa inicial (ex.: depósito de V. para A1), geralmente demonstrada com comprovante bancário fornecido pela própria vítima, pugnando-se pelo afastamento do sigilo do primeiro beneficiário dos valores (A1), bem como pugnando-se que conste na própria decisão a autorização para que os bancos forneçam, mediante ofício da Autoridade Policial,  extratos bancários dos correntistas beneficiários das demais operações financeiras com os valores oriundos do crime após o primeiro aporte por A1 e exclusivamente naquele período.

 

Desta maneira, com uma única decisão, poderemos seguir o dinheiro (follow the money), sempre limitados ao período de transferências dos valores criminosos (ex.: A1 recebe valores de V. e os transfere no dia seguinte para A2 e A3, que consequentemente, os transferem para A4, o qual os saca, ao fim). Vale ainda instar que, essa agilidade nos permitiria alcançar mais facilmente os responsáveis pela prática criminosa no seu mais alto nível hierárquico, possibilitando inclusive a reparação dos danos causados às vítimas.

 

Tal exegese não é inédita no ordenamento brasileiro, pois já ocorre há anos nos casos de interceptação e quebra de sigilo telefônico, nas quais geralmente é autorizado que, por meio da plataforma telefônica de interceptação, a Autoridade Policial requisite extrato telefônico (quebra de sigilo) de números que eventualmente vieram a se comunicar com o interlocutor interceptado e não estavam abrangidos no pedido inicial. Caso fosse decidido de outra forma, as incontáveis interações telefônicas novas travariam todo o Sistema de Justiça Criminal se, diante de qualquer número novo surgido em interceptação, houvesse a necessidade de uma nova decisão judicial para se buscar a simples quebra de seu sigilo, o que não se confunde com a medida mais invasiva da interceptação telefônica, a qual certamente exige nova representação e análise judicial.  

 

Ante tal construção, se face o rigor exigido pela Lei 9.296/1996, a qual trata das interceptações telefônicas, admite-se a quebra de sigilo telefônico de personagens que venham a surgir no bojo da própria interceptação ou da investigação, independentemente de nova decisão judicial, diferentemente não podemos concluir para o caso de quebra de sigilo bancário sequencial, cujo bem protegido possui menor valor quando comparado à inviolabilidade das comunicações telefônicas. Exatamente assim, entendeu o STJ, conforme abaixo:

“STJ – Não consubstancia ele direito absoluto, cedendo passo quando presentes circunstâncias que denotem a existência de um interesse público superior. Sua relatividade, no entanto, deve guardar contornos na própria lei, sob pena de se abrir caminho para o descumprimento da garantia à intimidade constitucional assegurada.” (RDA 206/261).

 

RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO, LAVAGEM DE DINHEIRO E ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. QUEBRA DE SIGILO FINANCEIRO (BANCÁRIO E FISCAL). FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO. EXISTÊNCIA. RECURSO EM HABEAS CORPUS NÃO PROVIDO.

  1. O sigilo financeiro, que pode ser compreendido como sigilo fiscal e bancário, fundamenta-se, precipuamente, na garantia constitucional da preservação da intimidade (art. 5, X e XII, da CF), faceta essa que manifesta, de forma expressiva, verdadeiro direito da personalidade, notadamente porque se traduz em um direito fundamental de inviolabilidade de dados e informações inerentes à pessoa, advindas de suas relações com o Sistema Financeiro Nacional.
  2. O reconhecimento de que o sigilo é expressão de uma relevante garantia fundamental ligada à personalidade, não desconstitui a ideia, reconhecida pela jurisprudência, de que não se trata de um direito absoluto. Este Superior Tribunal entende que é possível afastar a sua proteção quando presentes circunstâncias que denotem a existência de interesse público relevante, invariavelmente por meio de decisão proferida por autoridade judicial competente, na qual se justifique a necessidade da medida para fins de investigação criminal ou de instrução processual criminal, sempre lastreada em indícios que devem ser, em tese, bastantes à configuração de suposta ocorrência de crime sujeito a ação penal pública.
  3. Ao contrário do que estabelece a Lei n. 9.296/1996, que regulamenta o art. 5º, XII, da CF – o qual trata de um bem da vida, um direito de extrema e inegável importância, que é o sigilo das comunicações telefônicas, a intimidade de conversas que são supostamente, de maneira livre, travadas entre duas pessoas e que, portanto, merece muito mais cuidado que outros direitos -, a Lei Complementar n. 105/2001 não exige o mesmo rigor, porque versa sobre o sigilo de operações de instituições financeiras.
  4. A interceptação telefônica atinge uma das liberdades mais importantes do indivíduo, que é a livre expressão do pensamento externado durante a comunicação, que pode portar os segredos mais íntimos da pessoa humana. Diversamente, porém, ocorre com o sigilo financeiro, cujas informações pessoais são estáticas, em regra unipessoais, referentes a movimentações financeiras e de conhecimento das instituições financeiras e de inúmeras pessoas (funcionários, gerentes, escriturários etc.), cujo acesso somente não é franqueado ao público de maneira geral.
  5. A LC n. 105/2001 não trata, ao menos expressamente, da exigência de comprovação de que outros meios não seriam suficientes para obtenção daquela prova, diferentemente do que ocorre com as interceptações. A referida lei prevê, tão somente, em seu art. 1º, § 4º, que “[a] quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial […]”, notadamente quando se tratar de crimes de lavagem de dinheiro ou de ocultação de bens, direitos e valores (inciso VIII); e praticado por organização criminosa (inciso IX).
  6. Na hipótese, houve ampla investigação, com a decretação de prisões preventivas de vários acusados e com o oferecimento da denúncia. Foi justamente por ocasião do recebimento da peça acusatória, amparada em justa causa, que o Magistrado, lastreando-se em uma série de diligências policiais e na representação do Ministério Público, proferiu decisão que determinou a quebra do sigilo financeiro. Decerto que se mostra induvidosa a existência de indícios da prática dos crimes, pois, caso contrário, nem sequer haveria o oferecimento da peça inaugural, situação que foi exposta pela decisão de primeiro grau, de modo que houve uma fundamentação mínima.
  7. Recurso em habeas corpus não provido. (RHC n. 118.283/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 14/5/2021.).

 

 

Considerações finais.

 

Ex positis, repensar o Direito e a Investigação Criminal aos olhos de 2024 nunca será tarefa fácil, pois exige certa coragem para que a modernização técnica, material ou jurisprudencial sejam encaradas como de verdadeira e suma necessidade para mais eficiente resposta social esperada.

 

Decerto que investimentos em pessoal, material e aperfeiçoamentos são objeto de políticas públicas mais profundas, as quais nossos administradores não devem se olvidar, todavia podemos dizer que, dentro dos limites das Leis e da Constituição, devemos estar atentos a novos contornos que o próprio ordenamento nos permite, ainda que inusual e inovador, tal qual a quebra bancária sequencial, mormente no enfrentamento do Crime Organizado.          

 

 

 

Sobre o autor

William Bretz é Delegado de Polícia Civil de Goiás 

 

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