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Inquérito Policial – Mudança Urgente!

por Editoria Delegados

Por Líbero Penello de Carvalho Filho

Líbero Penello de Carvalho Filho

Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires – Argentina. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Direito e Processo Penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Graduado em Direito. Graduando em Segurança Pública. Graduando em Filosofia. Escritor. Pesquisador. Professor universitário de graduação em Direito, Ciências Políticas e de pós-graduação em Direito e em Gestão Pública.  

INTRODUÇÃO

 

Em data recente, fizemos publicar artigo no qual defendemos a necessidade de alterações radicais no inquérito policial, dada a nova natureza jurídica de tal procedimento. Os pontos principais por nós defendidos naquele artigo foram:

“- Conduzido de forma monocrática e discricionária pelo delegado de polícia, o inquérito policial não deveria aceitar a ampla defesa e o contraditório, dada sua natureza administrativa e inquisitorial. Com a promulgação da atual constituição federal, em 05 de outubro de 1988, no entanto, tal visão restou superada e, na verdade, não recepcionada por esta nova ordem constitucional.

“- A resistência às necessárias alterações encontra eco no complexo e arrastado jogo político, na lentidão do processo legislativo, no temor das demais instituições atuantes na apuração criminal em perder fatia de poder, em detrimento do real problema, ou seja, a maior celeridade, segurança e eficiência na apuração criminal.

“- Os moldes nos quais está posto hoje em dia o inquérito policial o transformam em procedimento dotado de menor garantia a direitos fundamentais, não submetido verdadeiramente a um estado democrático de direito, com os princípios básicos a este inerentes.

“- Ora, se o inquérito policial é considerado mesmo um procedimento pré-processual, e integra o corpo da ação penal futura, tanto que a Polícia Civil é conhecida como polícia judiciária, é de crer que uma apuração criminal dotada de segurança jurídica pressupõe a adoção do princípio dispositivo nesta fase pré-processual.

“- Além do mais, é de se observar que a ampla defesa e o contraditório, assim como as prerrogativas da vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de salários e a plena autonomia do judiciário e do Ministério Público são utilizados como forma de preconizar a dignidade humana e estado democrático de direito. Pela lógica, um procedimento como o inquérito policial também deveria seguir estas diretrizes, assim como a própria polícia judiciária, pois garantem tais defesas constitucionais, mas não é o que ocorre.

“- A Lei nº 13.245/16 trouxe a defesa técnica, através de advogado, para dentro do inquérito policial.

“- Se o advogado, com o objetivo de assistir seu cliente, tem o direito de se fazer presente no interrogatório e nos depoimentos que forem colhidos no inquérito policial, bem como apresentar razões, quesitos, requerer diligências etc, tem-se, por óbvio, que o inquérito policial já não seria mais inquisitorial. Ocorre que parte da doutrina e a jurisprudência argumentam no sentido de que, mesmo inquisitorial, o inquérito policial já garante ao investigado determinados direitos fundamentais, como direito ao silêncio, à integridade física, a um advogado, dentre outros. Este posicionamento é, no mínimo, muito questionável, pois não se concebe como correta e justa a distribuição de parte dos direitos fundamentais, mas tão somente a garantia destes direitos em sua integralidade. Procedimento que não confere plenamente direitos fundamentais não é democrático.

“- A visão arcaica de que o inquérito policial é um mero procedimento administrativo inquisitorial é inteiramente contrária ao que dispõe a constituição federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

“- A natureza jurídica do inquérito policial, tida como administrativa, informativa, inquisitorial e dispensável, está também contrária ao estado democrático de direito. Com efeito, tal inquérito, nascido de um regime totalitário, não encontra eco no texto constitucional vigente.

“- Pode-se mesmo dizer que esta visão jurisprudencial e doutrinária reflete entendimento que, mais do que inconstitucional, sequer foi admitida no ordenamento constitucional atual. Não é, então, caso de sua inconstitucionalidade, mas sim de sua não recepção pela constituição.

“- Então por que a resistência, a demora, em adotar o posicionamento mais correto, que é o de considerar o inquérito policial como uma fase pré-processual penal de fato e de direito, com ampla defesa e contraditório? A resposta é que tal posicionamento implicaria em mudanças na estrutura de cargos e funções jurídicas ligadas à área, o que, por sua vez, vai contra a vaidade e o loteamento de feudos de poder, por parte de outras instituições também atuantes neste mister.

“- Deste modo, adotar como correta a tese da natureza híbrida do inquérito policial significaria conseqüente modificação no status do delegado – que será combatida por forte recusa em aceitá-lo, por corporativismo e feudo de poder. Com essa recusa, imaginou-se uma “hibridização somente ficta” do inquérito policial, que, como toda ficção legal, destina-se a manter uma ideologia na qual a população e a segurança pública são o que menos importa – qual a segurança em uma investigação 100% eficaz quando a polícia está sujeita ao poder político, sem prerrogativas, independência e autonomia?

“- À onipresente pergunta sobre por que não se extingue de vez o inquérito policial, sob fundamento de sua inutilidade e ranço de passado regime autoritário, lamentavelmente é preciso demonstrar o óbvio: além de ter sido recepcionado pela norma constitucional, o inquérito policial é um procedimento que, extinto, levaria às seguintes situações:

“* extinção da polícia judiciária: caso isso ocorra, num sistema de justiça criminal que não tem juízes e promotores em número hábil para fornecer nem minimamente um serviço eficiente de segurança pública, seria a ascensão da criminalidade e violência absolutas, sem meios para seu efetivo combate;

“* manutenção da polícia judiciária como mero corpo auxiliar do parquet, sem a figura do delegado de polícia: neste cenário, a administração e gestão da polícia judiciária seriam, na prática, entregues a profissionais da própria instituição policial, cabendo ao parquet uma supervisão nem sempre eficiente, comprometendo resultados, pois o Ministério Público, já hoje em dia, não tem estrutura nem condições de efetuar e supervisionar atividade policial a contento, utilizando-se da Polícia Militar e outras instituições para suas ações. Além disso, passaria o Ministério Público a não deter mais o controle externo da atividade policial, no caso, pois seria ele próprio, MP, o executor da atividade policial, plenamente sujeito a um controle externo daí advindo.”(1)

Obviamente, muito mais foi dito naquele nosso artigo, mas o tema não foi esgotado e o posicionamento de Marta Saad (2), advogada e professora de direito processual penal na Universidade de São Paulo, em seu artigo intitulado “Defesa no inquérito policial”, fez com que voltássemos a tratar do assunto, aduzindo argumentos pró e contra o referido posicionamento da ilustre jurista.

 

A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL E AS MUDANÇAS NECESSÁRIAS

Marta Saad funda sua visão no binômio ciência-reação na fase do inquérito policial, como ela afirma (3). É de se crer que a renomada autora tenha se referido à ciência das acusações e dos atos procedimentais e a consequente reação por parte do alvo da apuração criminal. Em outras palavras, ampla defesa (ciência) e contraditório (reação).

Nesta acepção, tem-se que este binômio ciência-reação é comum à esfera administrativa tanto quanto à esfera judicial, traçando, assim, mais um paralelo de similitude entre ambas.

O inquérito policial como procedimento cautelar  

Tratando das funções e finalidades do inquérito policial, Saad define o inquérito policial como um procedimento preliminar de natureza administrativa e finalidade judiciária, aludindo à inicial atividade do delegado de polícia, ainda nos idos de 1871, quanto à coleta de elementos para apuração criminal, como medida de urgência, como forma de preservar os vestígios da infração até a chegada do juiz de direito.

A definição de Saad, além de correta, nos leva à constatação de que, historicamente, o inquérito policial seria, na realidade, um procedimento cautelar, inicialmente judicial e, posteriormente, administrativo, após a cisão entre polícia e judiciário, em 1873. Vê-se, portanto, que em seu nascedouro, em sua essência, o inquérito policial era uma medida judicial cautelar de urgência.

O que não se imaginava em 1873 é que, com o passar dos anos, uma qualificação técnica, científica e acadêmica cada vez mais onipresente e necessária, tornaria a natureza administrativa do inquérito policial menos correta do que sua original natureza judicial.

Não se deve confundir cautela com provisoriedade. Isto significa que um procedimento cautelar, seja ele administrativo ou judicial, pode conter atos e diligências provisórias. Portanto, o inquérito policial poderá produzir provas irrepetíveis em juízo, tais como perícias, exames, oitivas emergenciais (similares à produção antecipada de prova na seara judicial), dentre outros.

Deduz-se, do até aqui exposto, que o inquérito policial é tudo, menos a “peça meramente informativa” que o ensino arcaico das piores faculdades do ramo impõe aos incautos aprendizes do direito. Nesta urgência cautelar, segundo Saad, o inquérito policial também deve buscar por provas em favor do suspeito ou indiciado. Trata-se, é claro, do princípio da verdade real, ao qual, por sinal, a autora também faz menção.

Tudo isto são mais razões para que o investigado ou indiciado tenham a garantia de uma ampla defesa e contraditório no inquérito policial, em sede do qual se atinge a restrição das liberdades individuais e dos direitos e garantias fundamentais do ser humano. O delegado de polícia, ao conferir ao juiz elementos para decretação de arresto, seqüestro, busca e apreensão, quebra de sigilo bancário ou telefônico, está agindo direta e estreitamente vinculado à atividade-fim do judiciário.

Discordamos da ilustre autora, porém, no que concerne à sua afirmativa no sentido de que a autoridade policial possui discricionariedade para “escolher as medidas de investigação necessárias e pertinentes” (4). É que a autoridade policial possui esta discricionariedade de forma limitada, tal como o juiz, ambos sujeitos ao controle constitucional, legal e ético-disciplinar. Isto não foi explicitado pela autora em seu texto, não sendo, portanto, fator diferenciador do inquérito policial em relação a outros procedimentos em geral.

Outra afirmação de Saad à qual nos opomos é a de que “a falta de rito preestabelecido faz com que a sequência das investigações varie ao empuxo do resultado das diligências, que se sucedem” (5). É que, na verdade, existe rito procedimental para o inquérito policial, rito este incompleto, insuficiente, mas existente. O Código de Processo Penal, por exemplo, traz diversas normas procedimentais para o inquérito policial, para o flagrante etc etc.

A “soma de esforços” a que se refere Saad, em busca da verdade real, nos remete ao princípio da colaboração e da boa-fé, também mencionado na legislação processual penal (art. 3º CPP) e  civil (art. 6º CPC). Esta definição repele, por natureza, o aspecto inquisitório no inquérito policial.

Além disso, e aqui Saad nos aguçou a curiosidade, haveria, segundo a ilustre autora, fundamental diferença entre os termos “inquisitivo” e “inquisitório”, muito embora seu excelente texto não tenha desenvolvido claramente este tópico específico. O fato é que aqui há, de fato, uma diversidade conceitual que vai além da simples semântica.

São muito comuns na doutrina, e mesmo na jurisprudência, alongadas discussões teóricas improdutivas sobre este ou aquele instituto ou conceito. A distinção que ora trazemos, entre o significado de “inquisitivo” e “inquisitório”, porém, não é mero bizantinismo.

Com efeito, no mundo jurídico costuma-se estudar os sistemas processuais penais inquisitivo e dispositivo, antagônicos, atribuindo-se a ambos características diversas, e chamando o sistema inquisitivo também de inquisitório, como sinônimos. Não é bem assim.

O dicionário Oxford Languages (6) traz a definição do termo “inquisitivo” como sendo: a) relativo a inquisição; b) que perscruta, inquire, interroga; interrogativo. O termo “inquisição” é definido pelo mesmo dicionário como: a) averiguação metódica e rigorosa; inquirição; b) tribunal eclesiástico instituído pela Igreja católica no começo do século XIII com o fito de investigar e julgar sumariamente pretensos hereges e feiticeiros, acusados de crimes contra a fé católica; Santo Ofício [Os condenados eram enviados ao Estado, para serem sentenciados].

Ora, parece bem claro que as definições primeiras do termo “inquisitivo” a serem levadas em conta são as de abrangência geral, ilimitada, que se protraem no tempo, quais sejam: o que interroga, inquire, averigua, de forma metódica e rigorosa. Isto porque a menção secundária à santa inquisição refere-se a um fato histórico determinado, e cuja característica era de concentração dos poderes de denunciar, acusar, investigar, julgar e executar num só órgão, o que, convenhamos, nem de longe lembra o inquérito policial.

O mesmo dicionário Oxford Languages traz, por sua vez, a definição do termo “inquisitorial”. Embora também seja ligado à atividade de inquirir, perscrutar e à santa inquisição, esta raiz comum filológica é abandonada quando se constata que este termo traz em si uma carga semântica e valorativa negativa diversa: o vexatório, insuportável, terrível, duro, desumano.

Daí se infere que:

– há uma diferença semântica e valorativa essencial entre os termos “inquisitivo” e “inquisitorial”;

– nesta diferença, “inquisitivo” é tudo aquilo que indaga, investiga, interroga. Já “inquisitorial” é todo o inquisitivo praticado de forma vexatória, desumana, contrário, portanto, à normatividade moral e jurídica;

– isto leva à constatação de que o inquérito policial e o processo judicial são, por natureza, inquisitivos (no sentido do perscrutar), podendo ser contaminados pelo vício inquisitório;

– em termos práticos, após a constituição de 1988, tanto o inquérito policial como o processo judicial equipararam-se na feição dispositiva, pois, em ambos, o presidente do feito, delegado ou juiz, não possuem discricionariedade absoluta, devem fundamentar suas decisões (artigo 93, …. CF/88) e, a partir da Lei nº ……, o delegado deixou de ser gestor absoluto das provas, pois sujeito à observância da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV, CF/88).

A própria expressão “aos acusados em geral” (artigo 5º, LV, CF/88) demonstra o alcance da norma. Ao contrário do que doutrinariamente se afirma, esta expressão não leva a uma dedução de que haveria uma tipologia na qual “acusado” seria somente aquele denunciado em ação penal, sendo os demais “suspeitos, investigados”, “indiciados”.

Não nos parece que a expressão “acusados em geral” tenha pretendido classificar, etiquetar ninguém. Antes, o que se denota da referida expressão é que o legislador constitucional quis estabelecer o alcance amplo, irrestrito, democrático e igualitário da norma, garantindo a observância dos direitos fundamentais do ser humano a todo cidadão.

Tais assertivas são importantes, na medida em que se observa que o inquérito policial concentra atos de investigação e atos de instrução (estes últimos com semelhanças formais e estruturais em relação a atos judiciais, como despachos, intimações, oitivas, possibilidade de conceder liberdade caso ausente flagrante ou justa causa etc).

O que divirjo de Saad é que a ilustre autora afirma que “se é certo que no processo penal não há litigantes, mas sim acusador e acusado, no inquérito policial … não há possibilidade de estabelecer contraditório, mas sim exercício do direito de defesa”(7). Isto não procede, pois o termo “litigante” refere-se a todo aquele em litígio. É gênero, do qual acusado, acusador, autor, réu, denunciante, denunciado etc são espécies.

Não há como excluir a noção do contraditório da noção de direito de defesa. Se, como quer a ilustre autora, fizéssemos exercer o direito de defesa sem contraditório, isto significaria direito de defesa parcial, pela metade, sem ser ampla, o que se revela atentatório aos mais caros princípios constitucionais. E, como diz a própria autora, a defesa deve ser integral, contínua e unitária.

Nem mesmo o argumento de que no inquérito policial não há acusação formal pode ser levado em conta nesta discussão. O que é esta acusação formal? Aquela subscrita pelo Ministério Público? E as acusações formalizadas em denúncias, queixas-crime, representações criminais? Trata-se de um preciosismo que não contribui para a plena garantia de defesa do acusado.

O Pacto de São José da Costa Rica aplica-se ao investigado no inquérito policial. Seu artigo 8º, 2, b, prevê a comunicação prévia e pormenorizada da acusação ao acusado, como lembra Saad. Ora, aqui adentramos o chamado bloco de convencionalidade, e tratamos da questão em nível supralegal, com norma alçada ao patamar constitucional pela entrada, nesta condição, de tratados desta natureza em nosso ordenamento jurídico.

Seguindo esta linha de raciocínio, temos que a súmula vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal, que garante acesso amplo do defensor aos elementos de prova já documentados no inquérito policial só pode preconizar a ampla defesa e o contraditório. Caso contrário, qual teria sido o sentido desta súmula, qual a finalidade de dar pleno acesso do advogado a estes elementos se não poderá ele defender seu cliente?

Outro aspecto de especial importância diz respeito à pretensa desnecessidade de advogado no acompanhamento do cliente em sede de inquérito policial. O desconhecimento técnico e o envolvimento emocional do investigado torna claramente desbalanceada a relação investigação-investigado, francamente desequilibrada em desvantagem para o investigado.

Aqui, trago um exemplo de área estranha à penal, mas que serve para ilustrar a essência constitucional da paridade de armas na defesa do investigado. Na justiça trabalhista, existe a possibilidade, prevista em lei, de o reclamante ajuizar por sua conta a reclamação trabalhista, de forma oral, que será reduzida a termo por ocasião deste ajuizamento. Na prática, o que se usa é orientar o reclamante nestas condições, no momento do ajuizamento, a procurar um advogado, pois haverá franco prejuízo para sua ação se assim não o fizer. Mesmo quando a ação trabalhista ajuizada desta forma tem seguimento e o reclamante comparece à audiência, é orientado pelo juiz a procurar advogado, sendo comum a suspensão do feito para aguardar a entrada do advogado na causa e possíveis aditamentos.

Se assim é em matéria trabalhista, imagine em matéria penal, em que os bens jurídicos protegidos são consideravelmente mais melindrosos.

As questões da necessária ampliação do exercício da ampla defesa no inquérito policial, a definição de sua natureza jurídica como procedimento inquisitivo não inquisitório, a plêiade de medidas cautelares constritivas de direitos e de liberdade individual, do destinatário final do inquérito policial (a justiça e o processo penal), podem ser resolvidas pela transmutação do inquérito policial em processo cautelar judicial.

Era esta a feição do inquérito policial no seu nascedouro, quando o delegado de polícia era auxiliar direto do juiz de direito, realizando audiências, coletando provas, atividade necessária, dado parco efetivo de juízes no Brasil imperial. Quando, em 1873, separou-se a polícia do judiciário, deu-se origem a um problema que ainda hoje não foi sanado, uma ferida ainda aberta no sistema de justiça criminal brasileiro.

Ao contrário de outros países, em que a polícia nasceu já à parte do poder judiciário, constituindo atividade investigativa técnica sem ser necessariamente jurídica, no Brasil a Polícia Civil, ao surgir, era instituição integrante do poder judiciário, exercendo, inclusive, atividades judiciais.

Excluir a Polícia Civil, Polícia Judiciária por definição primeira, do poder judiciário através de decreto, sem que se observasse qualquer outra cautela quanto à estruturação, custeio e regulamentação legal posteriores, se já em 1873 era um ato brusco, autoritário, muito mais podemos afirmar quanto à permanência desta situação após 05 de outubro de 1988.

Por isso, já disséramos, em artigo anterior mencionado, que a Polícia Civil, instituição de função preparatória processual penal, cujo destinatário é a justiça criminal, conduzida por delegado de polícia com formação em direito, através de concurso público com provas e títulos, é a garantidora primeira dos direitos e garantias fundamentais, é a porta de entrada no sistema de justiça criminal.

Há um interessante paradoxo. Por força de disposição constitucional, função judicante admite o ingresso, via quinto constitucional, de pessoa com notório saber jurídico e reputação ilibada. Observe-se que nem mesmo a exigência de diploma no curso de direito é exigida pela letra da lei, deixando claro que notório saber jurídico não é sinônimo de formação em curso superior de direito. Mesmo a mais alta corte brasileira é formada, integralmente, de nomeações, sem concurso público. Já o ingresso na função de delegado de polícia não admite mais nomeações nem quinto constitucional. Isto se deve, é claro, não só por força da redação do texto constitucional, mas também pela dedução no sentido de que a atividade policial deve guardar mais cuidados do que as demais.

Este cuidado com a atividade policial, cujo ingresso se dá nas mesmas condições concursais dos demais processos seletivos jurídicos, leva à conclusão de que prerrogativas e independência fariam justiça à natureza da instituição policial, bem como garantiriam uma maior eficácia na apuração criminal, pois que livre de influências políticas.

Não foi isso que ocorreu, porém. Mantendo o ato autoritário de 1873, a constituição de 1988 reduziu o papel e os poderes da Polícia Judiciária, transferindo a outras instituições atividades que antes eram exercidas na seara policial, como, por exemplo, a resolução de delitos de menor potencial ofensivo já em sede policial. Como resultado, hoje temos juizados especiais cujas audiências ocorrem em dilatado espaço de tempo, gerando lentidão e pouca efetividade na prestação jurisdicional, pois é notório o pouco número de juízes e a inadequação estrutural da justiça para lidar com tantos problemas a demandar soluções rápidas.

Há alguns anos, o então deputado federal Maurício Rands propôs a criação dos chamados juizados de instrução criminal, os quais cumpririam com sucesso o preenchimento desta lacuna entre demanda e serviço na esfera judicial. O inquérito policial passaria a integrar o processo judicial criminal, como etapa preparatória, e o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz passariam a funcionar, inclusive, numa mesma estrutura física.

A iniciativa de Maurício Rands foi arquivada quando o lobby classista de outras instituições constatou que isto poderia significar diminuição do controle sobre a atividade policial e que, ainda, isto sim uma real ameaça, pelo princípio da simetria, o delegado teria que possuir as mesmas prerrogativas, salários e benefícios de juiz e promotor, o que, é claro, feriu os brios e os interesses corporativos de muitas pessoas.

Um argumento de peso, o único juridicamente relevante (pois que os outros argumentos são figadais, políticos, pessoais, passionais), para que não se criasse os juizados de instrução criminal foi o de que, caso criados estes juizados, o delegado passaria à condição de juiz, integrante do judiciário, sem concurso público, o que seria vedado pelo artigo 37 da Constituição.

Este tipo de argumentação leva a um raciocínio no sentido reverso: se a ordem constitucional vigente considera proibida a transferência do servidor de carreira de um poder para outro diverso, como, por exemplo, do executivo para o judiciário, sem concurso público, o contrário também não é mais aceito pela referida ordem constitucional, ou seja, a ida do judiciário para o executivo.

Neste sentido, o decreto de 1873, que excluiu a polícia judiciária do poder judiciário, realocando-a no poder executivo, bem como todos os textos legais subsequentes, inclusive constitucionais, sequer foi recepcionado pela constituição de 1988. O poder constituinte originário de 1988 não recepcionou o decreto e demais normas derivadas, deixando claro o ingresso efetivo em determinado poder da república se dá através de concurso público de provas e títulos.

O retorno da polícia judiciária ao poder judiciário, portanto, seria a correção de um estado de coisas iniciado autoritária e injustificadamente em 1873, continuado equivocadamente pelas legislações posteriores e não mais recepcionado pela ordem constitucional vigente. Seria a regularização histórica do que é historicamente irregular. Seria restituir o status quo ante, restabelecer a essência primeira da polícia judiciária, e não transferir indevidamente servidor.

Uma emenda constitucional devolvendo a polícia judiciária para seu lugar de origem, de onde nunca deveria ter saído, regulando a atividade cautelar do inquérito policial e as atribuições da polícia judiciária e do delegado de polícia, não ofende nenhuma disposição ou cláusula pétrea da constituição federal. Pelo contrário, pétrea é somente a disposição dos interesses feudais do poder de assim se manterem, pouco importando a vida, a segurança, a população, a despeito da evidente atual falta de estrutura da nossa justiça criminal para cuidar dos milhares de causas que lhe são submetidas a cada dia.

Uma emenda constitucional neste sentido não resultaria em contrariedade ao artigo 37 da constituição, mesmo porque este artigo faz menção apenas genérica ao ingresso no serviço público mediante concurso público de provas e títulos, coisa que o delegado de polícia já fez para poder atuar.

Além disso, esta emenda constitucional modificaria, isto sim, os artigos atinentes à estrutura e funcionamento da polícia judiciária, sendo a forma de ingresso uma questão secundária frente à magnitude da correção histórica a ser feita. Observe-se que seria uma correção considerando, também, a similitude de peculiaridades dos cargos paradigmas, inclusive quanto à especial natureza, grau de responsabilidade, complexidade e peculiaridade do cargo, os requisitos de investidura, comparando-se juiz, delegado e promotor, dentro dos exatos moldes do artigo 39 da constituição federal.

Com efeito, face todos os requisitos elencados acima, a polícia judiciária, com poderes e atribuições técnicos, jurídicos e atividade de instrução aproxima-se muito mais do judiciário do que do executivo, poder no qual, por sinal, é estranha a presença de instituição com poderes para prender, soltar, determinar perícias e exames, coisa, por sinal, que somente o delegado de polícia pode fazer no poder executivo.

Como se vê, a polícia judiciária é um órgão cuja natureza, responsabilidade e gravidade de ações e atribuições, emerge como um “estranho no ninho executivo”, sendo óbvio que encaixa-se com muito mais propriedade, legalidade, historicidade e acerto no poder onde nasceu, o poder judiciário, constituindo o inquérito policial verdadeiramente um procedimento cautelar preparatório do processo judicial criminal.

Por fim, ao já repisado argumento de que tais assertivas têm fundo de vaidade pessoal e desejo de ascender à função judicante sem concurso público, além das óbvias e já demonstradas similaridade e importância das funções da polícia judiciária em relação às demais instituições judiciais, deixamos claro que a noção de “ascender” a alguma outra categoria teria razão de ser caso fosse verdade ser a polícia judiciária ocupante de posto subalterno em relação a outras instituições, o que não procede, dada não só a natureza de suas atribuições, já explicitada, mas também pelo explícito temor que a instituição policial infunde na estrutura estatal.

A este temor falta apenas o equânime respeito, traduzido na busca de igualdades que, ao contrário de vaidade, são busca pela justiça e reconhecimento. Há países no mundo em que os promotores de justiça e juízes são substituídos por sacerdotes, líderes religiosos, onde governantes são depostos e incensados com a mesma velocidade, alguns onde nem mesmo se pode dizer haver uma ordem pública, social e jurídica hígida, mas todos os países, ordeiros ou em convulsão, têm algo em comum: nenhum abre mão de sua polícia.

Referências:

(1) CARVALHO FILHO, Líbero Penello de; OLIVEIRA, Dayane Lima de. Inquérito policial – nova natureza jurídica híbrida. Em https://delegados.com.br/juridico/inquerito-policial-nova-natureza-juridica-hibrida, 2021.

(2) SAAD, Marta. Defesa no inquérito policial, in Direito Processual de Polícia Judiciária I, volume 4, Ed. Forum, Belo Horizonte, MG, 2019.

(3) SAAD, Marta, op.cit.

(4) SAAD, Marta, op.cit.

(5) SAAD, Marta, op.cit.

(6) https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/.

(7) SAAD, Marta, op.cit.

 

Sobre o autor

Líbero Penello de Carvalho Filho

Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires – Argentina. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Direito e Processo Penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Graduado em Direito. Graduando em Segurança Pública. Graduando em Filosofia. Escritor. Pesquisador. Professor universitário de graduação em Direito, Ciências Políticas e de pós-graduação em Direito e em Gestão Pública.  

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