JURÍDICO
Foro por prerrogativa de função e investigação criminal
Por William Garcez/RS
JURÍDICO
Por William Garcez
As pessoas sujeitas à jurisdição criminal pela prática de crimes comuns ou de responsabilidade[1] devem, tradicionalmente, ser julgadas pelo Juízo do local onde o fato foi praticado. Via de regra, esse é o chamado “juiz natural”.
A Lei determinou dessa forma para proteger o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita da ordem jurídica. Assim, todos sempre serão julgados por um juízo previamente estabelecido, e não eleito por conveniência.
De outra banda, a lei determina também que determinadas pessoas, em razão do cargo ou função que exercem, sejam julgadas por órgãos superiores da jurisdição. Saliente-se que tal tratamento é dado não à “pessoa”, mas ao “cargo ou função” relevantes ao Estado.
A prova disto é que o “foro privilegiado”, como é chamado, somente se aplica caso a infração seja cometida durante o exercício do cargo ou função. Não existe foro por prerrogativa de função quando o delito é cometido após a aposentadoria ou término do mandato. Ademais, cessará o foro especial se antes da sua decisão final o agente deixar o cargo por qualquer razão.
Saliente-se, inclusive, que esse é o entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal, justamente porque o instituto se destina a proteger o cargo – e não a pessoa que o ocupa -, e muito menos a pessoa que deixou de ocupá-lo. Visa-se assim resguardar o bom exercício do cargo, e não o interesse pessoal de seu ocupante.
Dessa forma, o Presidente da República, Vice-Presidente da República, membros do Congresso Nacional, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Ministros de Estado e Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União, chefes de missão diplomática em caráter permanente, serão processados e julgados no Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, “b”, “c”, da Constituição Federal).
Os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, do Ministério Público da União que oficiem perante Tribunais, serão processados e julgados no Superior Tribunal de Justiça (artigo 105, I, “a”, da constituição Federal).
Os Juízes Federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e os da Justiça do Trabalho, membros do Ministério Público da União, serão julgados nos Tribunais Regionais Federais (artigo 108, I, “a”, da Constituição Federal).
Os Prefeitos Municipais serão processados e julgados nos Tribunais de Justiça (artigo 29, X, da Constituição Federal). Os Juízes Estaduais e do Distrito Federal, membros do Ministério Público, serão julgados nos Tribunais de Justiça (artigo 96, III, da Constituição Federal). Os Juízes Eleitorais serão processados e julgados nos Tribunais Regionais Eleitorais (art. 29, I, “d”, do Código Eleitoral).
Como se vê, a Lei estipula que tais autoridades devem ser julgadas diretamente pelos Tribunais que lhes foram determinados. Mas, e a atribuição investigativa? Fica a cargo de quem?
Os nossos Tribunais, com a devida vênia, vêm firmando posicionamentos completamente divorciados da legislação vigente e, quem sabe, até da razoabilidade.
Alguns pregam que as investigações devam ser conduzidas pelo próprio Tribunal competente para o julgamento, o que afronta todos os fundamentos do sistema acusatório, sem mencionar a falta de preparo do Poder Judiciário para realizar atividades investigativas que, diga-se de passagem, não é uma coisa simples.
Investigar é muito mais do que colher oitivas e ficar em um gabinete expedindo ofícios.
Outros lecionam que, nesses casos, a investigação deva ser levada a cabo pelo Órgão Ministerial atuante junto à Corte que realizará o julgamento, pretendendo afastar os órgãos oficiais do estado da investigação, o que ocorre ao arrepio dos mandamentos constitucionais. Julgamento em órgão especial e investigação são coisas totalmente diferentes. Uma não se imiscui na outra.
Há quem sustente, ainda, que as investigações devam ser realizadas pelos órgãos de Polícia Judiciária. Entretanto, somente após autorização do Tribunal competente para o julgamento – o que destoa, inclusive, do bom senso. A atividade investigatória não está – legalmente falando – subordinada à autorização de quem quer que seja, até porque é uma atividade sigilosa.
Na contramão de todas essas correntes jurisprudenciais e doutrinárias está uma única coisa: a Lei.
Sim, Senhores(as)! No sistema constitucional brasileiro, a investigação de crimes é, tradicionalmente, atribuída à Polícia Judiciária (Polícia Civil e Polícia Federal). É o que se infere do artigo 144 da Constituição Federal, veja-se:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(…)
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
(…)
IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
§ 4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
Há, de fato, situações excepcionais, nas quais os atos investigatórios não serão conduzidos pela Polícia Judiciária. É o caso, por exemplo, dos crimes militares, que serão investigados pela Autoridade Militar, ou dos crimes investigados em sede de Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, conduzidas pelo Poder Legislativo. Entretanto, estas ressalvas são feitas pela própria Constituição Federal.
Mas, veja-se, os órgãos investigatórios por excelência (reconhecidos na Constituição Federal) são as Polícias Civis e Federal[2].
A regra do foro privilegiado não afasta a atribuição investigativa dos órgãos legalmente entabulados na Carta Magna, mormente em se tratando de um Estado constituído sob o regime político-jurídico denominado “democrático de direito”, onde o poder da Lei está acima da lei do poder.
As regras do foro privilegiado foram inseridas na legislação nacional em virtude das consequências que processos desta natureza possam ter, a fim de que os detentores dessa prerrogativa sejam julgados por órgão colegiados compostos – em regra, por magistrados mais experientes.
Entretanto, acerca da atribuição para conduzir as investigações contra essas autoridades, a Constituição Federal nada dispôs. Saliente-se, nesse contexto, que a legislação também não possui normas legais atinentes à investigação de pessoas com prerrogativa de foro. E, mesmo que possuísse, deveria ser rechaçada, pois não pode uma Lei infraconstitucional limitar atribuições de órgãos estatais constitucionalmente estabelecidas.
Diante desse quadro, é forçoso reconhecer que as investigações de autoridades com prerrogativa de foro devem ser conduzidas pelas Autoridades Policiais (segundo a regra geral), observando-se, apenas, que o Inquérito deve ser remetido ao Tribunal com competência para realizar o julgamento[3].
De mais a mais, também não há que se falar, embora algumas vozes insistam, em “autorização” por parte do órgão julgador para a instauração de Inquérito Policial, uma vez que isso acarretaria limitação e constrangimento da atividade de Polícia Judiciária, implicando em ingerência não contemplada na Carta Constitucional.
Ademais, a valoração da notícia do crime compete, num primeiro momento, exclusivamente à Autoridade Policial e, na sequência, ao órgão acusador com atribuição para o caso.
Dessa forma, a inferência lógica (extraída hermeneuticamente do ordenamento jurídico pátrio), é de que não há qualquer impeditivo legal à atuação policial investigativa no que se refere aos crimes praticados por autoridades que possuem foro especial por prerrogativa de função.
Notas:
[1] São crimes comuns os previstos no Código Penal e em Leis Extravagantes, e crimes de responsabilidade são aqueles praticados por funcionários públicos e agentes políticos em razão de suas funções.
[2] Registre-se que o Ministério Público, de acordo com a teoria dos poderes implícitos, também está dotado de determinados poderes investigatórios complementares ou subsidiários.
[3] Da mesma forma, logicamente, eventuais pedidos cautelares devem ser reportados ao Tribunal competente para o julgamento do fato criminoso.
Sobre o autor
William Garcez é Delegado de Polícia do Rio Grande do Sul. Ex-Assistente de Promotoria de Justiça. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – CAMVA/RS
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