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“Da prescindibilidade do Delegado de Polícia frente ao Inquérito Policial”

por Editoria Delegados

Confira o artigo do Delegado Federal José Ricardo das Chagas

 

Inicialmente quero deixar consignado que as observações que seguem abaixo não têm a pretensão de compor um trabalho acadêmico, ao reverso do autor criticado. São fruto de críticas feitas por mim na área de “comentários” do artigo supra mencionado de maneira informal. Como se verá, o texto é de uma pobreza tal que realmente não mereceria uma abordagem mais formal. Não obstante, a obrigação é que move esta iniciativa em respeito aos leitores eventualmente atingidos por informações equivocadas e parciais, os quais merecem todo o respeito e esclarecimento sobre a verdade.

 

Os problemas encontráveis neste “artigo” são vários, razão pela qual vou fazer aos poucos alguns comentários a fim de esclarecer equívocos e falácias, além do problema metodológico. Antes, porém, quero deixar claro que “estou” Delegado de Polícia por pouco tempo, eis que conto com já mais de 25 anos de carreira e em breve já não o serei, razão pela qual faço minha abordagem estritamente na qualidade de estudioso. O texto criticado pode ser acessado em http://josericardochagas.jusbrasil.com.br/artigos/135335461/da-prescindibilidade-do-delegado-de-policia-frente-ao-inquerito-policial por qualquer um que queira confirmar o que ali consta. Inclusive aconselho a leitura em acompanhamento e confirmação de tudo quanto exporei abaixo.

 

1) Metodologia: o autor trata de um tema polêmico que mereceria uma fundamentação e metodologia de qualidade, o que não ocorre, inobstante a titulação de quem o redige. Em primeiro lugar o escrito é denominado como “artigo”, mas não segue as normas metodológicas para essa espécie de “paper”. Não tem uma concatenação lógica de introdução, desenvolvimento e conclusão, sendo redigido aos pedaços em uma espécie de “colcha de retalhos”, o que, no máximo pode ser considerado um arrazoado pontual e disperso, jamais um artigo. Mesmo que o autor não explicite num artigo a Introdução, os itens e a conclusão explicitamente, esse sistema deve ser visível para quem aprecia o trabalho. Mas, o mais grave é que um pretenso “artigo jurídico”, supostamente científico, não apresenta sequer referências de qualquer espécie, o que é inadmissível. Só isso já serve para desqualificar o trabalho como uma emissão opinativa sem relevância científica digna de consideração.

 

2) O autor usa de uma falácia, um recurso de retórica, inclusive baseado em uma abordagem preconceituosa. Explico: afirma que o Processo Penal brasileiro, no que tange à fase de investigação criminal é equiparável ao sistema processual penal de Moçambique e Cabo – Verde, “países do continente africano”. Claramente sua colocação tem uma insinuação de que o continente africano e, especificamente, os países de Moçambique e Cabo – Verde seriam ineptos e nada que de lá venha possa servir para modelo. Ora, se pode ou não um sistema de Angola, Cabo – Verde, Moçambique, Afeganistão, Japão, EUA, China, Cuba ou seja lá de onde for servir de modelo somente se pode avaliar mediante um estudo profundo e exposição efetiva desses sistemas e não pela simples indicação de sua origem de forma preconceituosa. Essa é uma falácia lamentável e miserável, reveladora de superficialidade e até desrespeito para com outros povos.

 

3) Não obstante, ao menos se o autor demonstrasse real conhecimento e pesquisa sobre o Processo Penal de Moçambique e Cabo – Verde, talvez fosse perdoável sua retórica falaciosa e preconceituosa. Acontece que ele afirma que “estes são os únicos países do mundo que continuam a eleger o formalismo do inquérito policial e a figura do delegado de polícia como imprescindíveis” (sic). Bem, neste caso trata-se realmente de pleno e absoluto desconhecimento do que se está falando e falta de pesquisa na fonte primária, ou seja, nos Códigos de Processo Penal que se ousa comentar como se expert fosse. Uma leitura atenta dos Códigos de Processo Penal de Moçambique e Cabo – Verde é suficiente para verificar algumas coisas interessantes a demonstrarem a desinformação veiculada: a) Numa busca em ambos os diplomas não há menção uma vez sequer à expressão “Inquérito Policial” ou sequer “Inquérito”, assim como não há menção à expressão “Delegado de Polícia”. A fase de investigação é atribuída em ambos ao Ministério Público que atua com a colaboração dos “órgãos de polícia criminal” (essa a terminologia original). O que ambos os Códigos dizem é que em determinados casos poderá o Ministério Público “delegar” a função de investigação aos “órgãos de polícia criminal”. Ora, então, pela lógica retórica e preconceituosa do autor, em se tratando de um sistema “africano” que por sua origem não merece respeito e que quando tem alguma virtude é algo de assustar (quando o autor fala em algo positivo no processo de Moçambique ele diz “pasme” (sic) porque na África nada pode haver de bom, não é?), o sistema que atribui a investigação preliminar ao Ministério Público é “arcaico” (sic) ou “bizantino” (sic). Mas, espere, esse não é o sistema mais comum nos países anglo – saxões e na Europa? Então, a África está em consonância com países Europeus como a Inglaterra, Portugal, Espanha, EUA etc. Que confusão hein? O que é moderno e desenvolvido? O que é “arcaico” e “bizantino”? A Europa e os países anglo – saxões imitam a África ou é o contrário? O Brasil deve imitar a África? Ué, mas a África não é desprezível, não é atrasada? Então imitemos a Europa e os EUA, como já costumamos fazer correntemente…, mas, neste caso o sistema é semelhante ao da África, o que fazer? Que confusão! Essa confusão toda é o resultado de falar sem rigor metodológico, sem pesquisa científica mínima, sem sequer consulta de fontes primárias sobre um dado assunto.

 

4) Para que não haja qualquer dúvida, indico aos leitores o acesso (por sinal bem fácil) às fontes primárias, ou seja, aos Códigos de Processo Penal de Moçambique e Cabo – Verde disponíveis a qualquer pessoa com o mínimo de interesse na busca da verdade e não em formulações retóricas e repetições acríticas de outras fontes igualmente equivocadas (porque este não é o primeiro autor a incidir nessa falácia, talvez nem tanto culpa sua seja, pode ser que tenha visto escrito ou ouvido em algum lugar e repetido). Seguem links para as legislações:
Código de Processo Penal de Moçambique: http://www.portaldogoverno.gov.mz/Legisla/legisSectores/judiciária/código%20de%20processo%20penal.PD…
Código de Processo Penal de Cabo – Verde: file:///C:/Documents%20and%20Settings/USER/Meus%20documentos/Downloads/CodProcessoPenal. Pdf

 

5) No item 1, com o título “Breve historicidade” o autor comete pelo menos duas impropriedades: a) Vai descrevendo o exercício de funções judiciais atribuídas ao Delegado de Polícia e para em 1871. Pois é, deixa de lado simplesmente um lapso temporal entre o Código de Processo Penal de 1941 e a Constituição Federal de 1988, período durante o qual vigia o chamado “Processo Sumário” das Contravenções e dos Crimes Culposos, instruído na Delegacia de Polícia pelo Delegado de Polícia, procedimento este que só teve seu fim em 1988 com a promulgação da Constituição atual e a atribuição de exclusividade da ação penal ao Ministério Público. Ademais, ainda que não recepcionado pela CF de 1988 esse então “Processo Sumário” permaneceu no Código de Processo Penal Brasileiro até o advento da Lei 11.719, de 20 de junho de 2008 que alterou os procedimentos no CPP. Então o autor erra ou omite a verdade histórica para poder surgir com sua afirmação que pretende causar impacto de que “a figura do delegado de polícia” seria algo de atávico, ligado a “uma realidade jurídico – processual penal do passado, de quase 200 anos” (sic). Além do erro ou da omissão histórica (não sei dizer o que é pior, erro ou omissão dolosa), o autor procede a uma medonha inversão de valores, uma vez que indica a tradição de uma instituição com aproximadamente 200 anos e pretende fazer isso parecer algo negativo. A considerar esse raciocínio como correto, então o Judiciário e o Poder Jurisdicional que surge com o Estado de Direito também seria algo vetusto. O Ministério Público e sua tradição secular seria desprezível, anacrônico. Outras instituições tais como as Universidades, a família, a arte médica, a advocacia e tantas mais não teriam em sua tradicionalidade e secularidade a comprovação de seu valor, mas um descrédito tremendo! Esse raciocínio é não somente insustentável como constitui uma perversão ou até uma inversão de valores.

 

6) No seguimento o autor pretende falar em linhas gerais sobre o Inquérito Policial e suas características. Uma primeira observação é que consegue erigir um conceito de Inquérito Policial “sui generis”, jamais visto em qualquer compêndio sério sobre o assunto, fazendo uma confusão, um amálgama contraditório, típico de quem não tem intimidade alguma com o assunto. Para não ser acusado de mistificação, transcrevo o conceito teratológico: “Trata-se de um apanhado processual de procedimentos formais, inquisitorial, administrativo informativo, discricionário e dispensável” (sic). Com essa conceituação não se sabe bem o que é o Inquérito Policial. Realmente, se fosse o que o autor descreve seria uma espécie de monstro ou ornitorrinco jurídico. Ele não se decide sobre uma questão básica e já bem posta pela doutrina, qual seja: é o Inquérito Policial um procedimento administrativo ou processual? Ora, o autor diz que é “um apanhado processual” (saiba-se lá o que quer dizer com “apanhado”, expressão inusual nos meios jurídicos mais abalizados). Então seria de natureza processual não é? Não, parece que não. Porque logo em seguida afirma que é um procedimento “administrativo – informativo”. É processual ou administrativo, segundo o autor? Difícil interpretar! Afirma também que o Inquérito Policial é composto por “procedimentos formais” (sic) quando é de trivial conhecimento e disseminado em toda a doutrina que o Inquérito Policial tem por característica exatamente sua “informalidade”. Parece que o autor confunde procedimento “escrito” e “cartorial” com “formal”. Parece porque a coisa é tão confusa que não se pode afirmar praticamente nada. Só para satisfazer a curiosidade, informo que o Inquérito Policial é considerado, ao menos pela grande maioria da doutrina como um procedimento de natureza administrativa. Aliás, façamos justiça ao autor porque mais adiante ele esclarece este fato, embora continue confundindo formalidade com o fato de se tratar de um procedimento escrito. Também confunde discricionariedade com informalidade. Isso é bem grave porque o Inquérito Policial não é discricionário. Ele é procedimentalmente informal. No entanto, segue as mesmas regras de obrigatoriedade e oficialidade da ação penal pública incondicionada nos casos de crimes e contravenções regidos por esta (o mesmo aplicável ao TC no caso das contravenções e crimes de menor potencial ofensivo). Também segue a legalidade mesmo nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada, eis que o Delegado não pode indeferir a instauração de Inquérito Policial sem fundamento quando há representação ou requerimento do interessado. Para isso há recurso administrativo previsto no CPP (artigo 5o., § 2o., CPP), sem olvidar a possibilidade de exercício de controle externo pelo Ministério Público e pelo próprio Judiciário, órgãos estes aos quais o interessado também pode se dirigir.

 

7) O autor ainda afirma que no Inquérito Policial não há contraditório nem ampla defesa. Considerando que, em suas palavras faz apenas uma “breve nuance” sobre o Inquérito, não é de se criticar que apenas faça essa afirmação sem maiores aprofundamentos. No entanto, para quem tem a ingente missão autoimposta de demonstrar a imprestabilidade do procedimento enfocado e de seu presidente, seria de se esperar mais. Explico: em primeiro lugar, seria de se esperar que o autor tratasse da questão de manifestações da defesa na fase do Inquérito Policial. Assim é que há a previsão expressa de que os interessados, inclusive o investigado, podem requerer diligências à Autoridade Policial, a qual delibera pelo deferimento ou indeferimento, nos estritos termos do artigo 14, CPP; nomeação de curador ao interrogado entre 18 e 21 anos (artigo 15, CPP, hoje discutível devido à nova ordem civil de 2002); direito ao silêncio e à não autoincriminação etc. Ocorre que para considerar o Delegado de Polícia prescindível não é de bom alvitre apontar essas garantias do investigado a serem devidamente asseguradas no curso do Inquérito Policial, bem como atividade com carga decisória a exigirem maior preparo e conhecimento jurídico. No mesmo diapasão o autor se olvida de adentrar na questão de que se até a reforma das Cautelares Processuais Penais era pacífico inexistir mesmo no Inquérito Policial qualquer resquício de contraditório, atualmente, com a previsão do contraditório como regra para as cautelares e não mais o sistema “inaudita altera pars”, isso se torna um tanto quanto questionável. Acontece que quando a cautelar (v. G. Alguma daquelas do artigo 319, CPP) for representada fundamentadamente pelo Delegado, deverá, em regra, haver contraditório, ainda que seja na fase do Inquérito (vide artigo 282, § 3o., CPP, com a nova redação dada pela Lei 12.403/11). Novamente pode ter o autor se esquecido ou não atentado, mas estranhamente se esquece sempre daqueles detalhes que tornam a atividade do Inquérito Policial prenhe de atos que requerem conhecimento jurídico para a devida fundamentação (v. G. Pedidos de prisão, de cautelares em geral, de interceptação telefônica, de busca e apreensão etc.).

 

8) Tem toda a razão o autor ao destacar a “dispensabilidade” do Inquérito Policial. Qualquer um que discutisse isso teoricamente estaria sem qualquer base jurídica ou argumentativa. O Inquérito é mesmo, em tese, dispensável. Não obstante, na prática algo bem próximo de cem por cento dos processos penais têm por sustentação inicial o Inquérito Policial. Novamente o autor enxerga ou quer enxergar as coisas de ponta cabeça. A dispensabilidade legal do Inquérito Policial desde sempre existente no ordenamento jurídico e sua utilização em praticamente cem por cento dos casos não está a demonstrar sua inutilidade ou de quem o preside e sim, ao reverso, está a demonstrar como esse procedimento e aqueles que nele trabalham são relevantes para as apurações criminais, independentemente do que diga a legislação. O Inquérito é legalmente prescindível, mas dificilmente é prescindido na prática. Nem mesmo leis que tentaram eliminá-lo expressamente conseguiram, como ocorreu há tempos com a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4898/65), que previa a coleta de declarações da suposta vítima e denúncia direta pelo Ministério Público e a Lei 9099/95 com a criação de um simulacro de Inquérito Policial abreviado que é o Termo Circunstanciado, frequentemente transformado em Inquérito por absoluta necessidade prática. Estas são provas irrefutáveis da utilidade do Inquérito Policial e da Autoridade que o preside.

 

9) Outra superficialidade detectável no texto do autor: afirma que “o magistrado não pode fundamentar sua decisão em elementos informativos colhidos na investigação (inquérito policial)” (sic). Para tanto se sustenta no artigo 155, CPP. Sugiro ao autor e ao leitor interessado na verdade que abra seu CPP no artigo 155 e o leia atentamente. Verá claramente que não é verdade que o magistrado não pode fundamentar sua decisão em elementos do Inquérito Policial. O que a lei diz é que ele não pode fundamentar sua decisão “exclusivamente” (a palavra “exclusivamente’ é crucial) nos elementos do Inquérito. Se não pode”exclusivamente”, isso significa que pode sim fundamentar sua decisão em elementos do Inquérito, desde que estes não estejam isolados do conjunto probatório das provas irrepetíveis e antecipadas (estas inclusive do próprio Inquérito Policial) e daquelas que foram produzidas em Juízo sob o crivo do contraditório e ampla defesa plenos. Há aqui uma clara manobra, visando desmerecer o trabalho do Delegado de Polícia e o valor do Inquérito Policial no Processo Penal ou então uma incompreensão inacreditável da letra da lei. Com a mais ampla honestidade é de se consignar que no projeto de reforma do título das provas no CPP a ideia e a redação originais do dispositivo do artigo 155, CPP não continha a palavra”exclusivamente”. No entanto, é fato que está foi incluída no texto aprovado, o que não pode ser objeto de ocultação, desprezo ou desconhecimento. Ademais, ainda que a prova repetível colhida no Inquérito não pudesse realmente ser de qualquer forma utilizada na fundamentação judicial, mesmo em cotejo com outras, isso não desvalorizaria o procedimento nem seu Presidente, pois que continuaria servindo de elemento para formação de convicção do órgão de acusação, subsídio para a defesa que é ampla (e nos casos de Júri é plena), bem como haveria sempre as provas irrepetíveis ali produzidas tais como perícias, apreensões, reconhecimentos, interceptações etc.

 

10) A interpretação que o autor propõe para a Lei 12.830/13 é das mais esdrúxulas possíveis e imagináveis até mesmo para um Delegado de Polícia classista e totalmente parcial. Na verdade, o autor não pode ter realmente tal compreensão da lei, considerando sua titulação. Ao que parece pretende usar novamente de um recurso retórico que consiste em construir espantalhos para lutar contra eles e depois se dizer vitorioso, quando não há sequer oponente. Dessa forma então constrói críticas à legislação sobredita mediante uma interpretação de seus dispositivos que nada tem a ver com o verdadeiro alcance destes. Alcance este inclusive reconhecido pela categoria dos Delegados de Polícia (ao menos daqueles de bom senso). O autor passa a fazer um estardalhaço com o fato de que, inobstante a Lei 12.830/13, existem outros procedimentos de investigação criminal tais como CPIs, IPMs etc. Ora, isso é mais do que notório e ninguém, em sã consciência pode negar. A ementa da própria Lei 12.830/13 é clara ao afirmar que ela”Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”. Ora, se ela diz isso, só pode ser porque há outras investigações criminais não conduzidas por Delegado de Polícia. Fosse uma única e somente conduzida por Delegado, diria a ementa:” Dispõe sobre a investigação criminal “e já se saberia implicitamente que se trata daquela única e exclusiva conduzida pelo Delegado de Polícia. Mas, o autor, em seu afã de criticar a legislação a qualquer custo, distorce as palavras e pretende imputar à” mens legis “o intuito de reduzir a investigação criminal tão somente ao Inquérito Policial presidido pelo Delegado de Polícia. Quando é justo o contrário e a lei deixa isso bem claro desde a sua ementa.

 

11) Em seguida, de premissas corretas, num volteio retórico novamente pretende o autor chegar a conclusões inviáveis. Explico: do fato inconteste de que não é apenas o Delegado de Polícia quem preside investigações criminais, de que existem, por exemplo, Inquéritos Policiais Militares, quer o autor deduzir que por causa disso o Delegado de Polícia, no Inquérito Policial, é figura despicienda. Ora, então o mesmo se poderia concluir quanto à Autoridade Policial Militar no IPM, o Presidente da CPI na CPI ou o Membro do Ministério Público na investigações realizadas por eles. Tudo poderia então ser feito sem uma hierarquia, sem uma condução, uma orientação superior, uma presidência!

 

12) Assiste, contudo razão ao autor quando critica o fato de o legislador não haver conceituado o ato de indiciamento, nem lhe conferido uma função específica, embora louvável sua atitude em estabelecer a necessidade de sua fundamentação (essa última parte louvável sou eu quem estou dizendo). Efetivamente, desde muito tempo carece de uma definição legal o ato de indiciamento e não só isso, carece de uma determinação de função. Há países onde esse ato é o marco para a aplicação do contraditório e ampla defesa já na fase investigatória, há outros em que marca o prazo para o encerramento da fase de investigação, o qual, se desobedecido, leva à perda do poder de punir do Estado. Não é o caso brasileiro e isso seria interessante. A busca de uma função para o ato do indiciamento é relevante ou então realmente poderia tal proceder ser extirpado do ordenamento. Entretanto, ainda há uma função administrativa para o indiciamento que diz respeito à questão de formação de um banco de dados policial de inteligência com informes sobre indivíduos cuja investigação resultou, no entendimento do Estado – Polícia em indícios concretos de envolvimento em infração penal. Isso pode ser objeto de discussão, mas o que é lamentável é que o autor insista em pretender, por via dessa questão, deslegitimar a fundamentação do indiciamento, que, aliás, já era determinada, ao menos no Estado de São Paulo, por Resolução. Trata-se de uma garantia do cidadão e de uma missão para a qual o conhecimento jurídico é imprescindível, certamente este o motivo de tanta sanha do autor contra o dispositivo da Lei 12.830/13 que manda fundamentar o ato. Aliás, toda decisão, ainda que em sede administrativa, deve ser fundamentada. Quando essa decisão envolve questões jurídicas, deve ser juridicamente fundamentada por pessoas capazes e com formação para tanto. Assim é que as mais variadas Secretarias e órgãos públicos se valem de procuradorias dotadas de pessoas com formação jurídica para esse mister. Seria realmente algo inusitado que em um procedimento que versa sobre a liberdade de uma pessoa, as decisões fossem tomadas por alguém sem formação jurídica, sem fundamentação nenhuma. Não seria necessária a Lei 12.830/13 para isso, não fosse nosso país povoado por indivíduos para os quais é preciso explicar o óbvio. Diria certamente o autor: mas, em outros sistemas o policial que comanda as investigações não é bacharel em Direito. Pois é, no Brasil é e isso pelo menos nós temos de mais avançado. Em alguma coisa tínhamos de nos destacar! Ademais, nesses outros sistemas sempre há, a exemplo das procuradorias acima, alguém que se responsabiliza pelas devidas fundamentações dos atos (Ministério Público, Juiz de Instrução etc.), sempre com formação jurídica adequada e disponível para assessorar os policiais 24 horas por dia. Isso no Brasil não tem tradição e é impossível na atual conjuntura, inclusive orçamentária. Falando às claras, o Delegado de Polícia, além de útil é mão de obra bem mais em conta, sendo a única Autoridade Estatal à disposição do pobre ou do rico 24 horas por dia e em contato direto. O que o autor postula, sem talvez perceber, é um empobrecimento da Polícia Judiciária, retirando do povo o contato com um bacharel com experiência jurídica que o atende e orienta, que garante seus direitos e aplica a lei com técnica. Como os pobres são os clientes preferenciais das Delegacias, o autor, que quer expor um suposto anti – elitismo, acaba propondo uma” justiça pobre para os pobres “que não terão contato direto com qualquer Autoridade Estatal com formação jurídica adequada para seu atendimento na seara criminal pré – processual. Seria ele também adepto da diferença salarial entre Defensores Públicos e Promotores e Juízes? Porque esse é o modelo ideal da” justiça pobre para os pobres “.

 

13) O autor também faz uma miscelânea entre” polícia judiciária “,” polícia judiciária militar “no caso de IPMs e” polícia preventiva “. A CF de 1988 é muito clara sobre essas questões, estabelecendo exatamente o que seja a função de Polícia Judiciária, reservada à apuração das infrações penais e sua autoria nos termos do artigo 144, § 1o., IV e § 4o., desde logo excetuando essas mesmas funções”militares”, ou seja, são arcabouços jurídicos diversos, com regras diversas, universos que não se tocam, a não ser pela”mão mágica”do autor do texto ora criticado. As polícias de índole preventiva também estão mais que explicitadas no mesmo dispositivo nos §§ 2o., 3o. E 5o.

 

14) O autor faz uma pergunta realmente admirável (para não usar uma palavra mais forte):” (…) é necessário o bacharelado em direito para ocupar o cargo de delegado ou para ocupar a presidência do inquérito policial “? (sic). Vamos à resposta do óbvio: é claro que sim. Apenas dando algumas razões, porque essa Autoridade irá decidir sobre coisas complicadas até para as pessoas não leigas como, por exemplo, discernir sobre uma infração de menor potencial ofensivo ou não; sobre o concurso de crimes aplicável à espécie e a alteração ou não dessa condição de menor potencial (objeto inclusive de Súmula dos Tribunais Superiores, ou seja, questão complexa); discernir sobre estado de flagrância; arbitrar fiança criminal; tipificar condutas do Código Penal e da imensa legislação esparsa brasileira com minúcias que atormentam os doutos; representam fundamentadamente para prisão temporária, preventiva e outras cautelares; informar diretamente Mandados de Segurança e Habeas Corpus; fundamentar o ato de indiciamento ou não indiciamento de alguém; decidir sobre a coleta de provas na fase investigatória, discernindo sobre sua legalidade ou ilegalidade com consequências na fase processual etc. Mas, o autor em destaque nestas observações não foi o único a tropeçar nesse tipo de questionamento que demonstra tão somente a falta de uma visão ampla da persecução criminal e das próprias funções do Delegado de Polícia e da natureza do Inquérito Policial e seus diversos procedimentos. Certamente é infeliz a assertiva de Carlos Magno Nazareth Cerqueira que segue mais ou menos a senda do nosso autor, expondo uma visão tacanha a atividade policial:”A carreira policial assentada na carreira jurídica precisa ser questionada: policial de investigação criminal não precisa ser advogado e muito menos pertencer à carreira jurídica. (…). Isso tem feito com que o policial civil não se identifique com a profissão policial e sim com a carreira jurídica.”Vejam bem Srs. Leitores, dizer que a atividade policial prescinde dos conhecimentos jurídicos, especialmente em sua presidência, e que a profissão policial não se coaduna com a das carreiras jurídicas é certamente um posicionamento autoritário. Ora, se a atividade policial não condiz com os conhecimentos jurídicos, ela deve realizar-se à margem destes? A vocação policial não é jurídica: como isso é possível no Estado de Direito? Qual é então essa vocação policial que pode ser prejudicada com os conhecimentos jurídicos? Investigar sem base jurídica é investigar com base em quê? Será que essa vocação policial tão prejudicada pelo Direito não seria uma abjeta vocação para a violência, truculência, arbitrariedade e ignorância?

 

15) Neste ponto o autor volta à sua recorrente inversão de valores. Ao perceber que a lei determina que o Delegado de Polícia, na condução do Inquérito Policial seja um bacharel em Direito, aponta para o fato de que os Inquéritos Policiais Militares são conduzidos por Oficiais PMs ou das Forças Armadas sem formação jurídica específica. Em primeiro lugar vamos tratar da inversão de valores. Ao invés de propor uma melhora na qualidade daqueles que vão presidir os IPMs, o autor propõe uma queda de qualidade cultural para os que irão presidir Inquéritos Policiais do CPP! Ao invés de avanço, pugna-se pelo retrocesso! Ademais, como já frisado anteriormente, o mundo militar é diverso e diversas suas regras, além de limitadas. O Oficial encarregado de um IPM está obrigado a conhecer tão somente o mundo do direito penal e processual penal militar, enquanto que o Delegado de Polícia se depara em seu dia a dia com questões das mais variadas espécies e precisa discernir sobre problemas não penais, a fim de dar o devido encaminhamento e deliberar sobre as medidas a serem tomadas e orientações a serem passadas (v. G. Questões consumeristas, de Direito Civil, de Direito Trabalhista, Tributárias, Administrativas, da Infância e Juventude etc.). Não há se comparar o mundo militar, fechado em si mesmo e a atividade típica do dia a dia de uma Delegacia de Polícia com seus mais diversos problemas a serem solvidos pelo Delegado, ainda que seja para simplesmente indicar um outro caminho que não o criminal. Mas, como saber isso sem uma formação jurídica adequada? Além disso, desconhece ou faz de conta que desconhece o autor o fato de que muitos Oficiais, na verdade a maioria deles, encarregados de IPMs são bacharéis em Direito não por exigência legal, mas por funcionalidade, o que comprova, mais do que a letra da lei, mas pelos fatos concretos, a utilidade dos conhecimentos jurídicos na presidência de qualquer inquérito. Nas forças armadas há inclusive concursos específicos para bacharéis em Direito a fim de exercerem funções determinadas de Polícia Judiciária. Tenho alunos e conhecidos que atuam nessas funções. O autor parece que escreve sobre coisas que não sabe ou então finge não saber, o que é pior. Retomando a questão do retrocesso ao invés do avanço, a seguir pela senda indicada pelo nosso autor, então todo o aprimoramento obtido ao longo de muitos anos com, por exemplo, a exigência de ao menos 2o. Grau para ser PM, a exigência de nível superior para os cargos de Escrivão e Investigador, bem como Agente da Polícia Federal e Escrivão da Polícia Federal. Projetos para exigência de nível superior para os PMs, entre outras medidas de aprimoramento intelectual dos policiais em geral, deveriam retroceder, não é mesmo? Afinal, qualquer beócio pode exercer funções policiais preventivas e/ou repressivas! A julgar pela juventude de nosso autor, ele não teve contato com os Policiais Militares e Rodoviários que podiam ocupar o cargo apenas com o primeiro grau ou até mesmo com o então curso primário, em tempos mais longínquos. Não eram, obviamente, más pessoas. Não obstante, o nível dos atuais BOs. PMs. E BOs. Da Polícia Rodoviária Federal, por exemplo, não têm comparação com aqueles produzidos por pessoas de instrução tão limitada. O nível melhorou muito e isso é bom. Os Inquéritos Policiais conduzidos por chamados” calças curtas “, que eram Delegados nomeados politicamente eventualmente sem sequer bacharelado ou, se com este, sem passar por um concurso rigoroso, eram certamente muito inferiores e é a isso que pretende retornar nosso autor! Se levado a sério, a polícia em geral se tornará uma caterva anárquica de estultos. Sinceramente, não vejo a quem ou a que grupos de boa índole isso possa interessar.

 

16) O autor não se contenta e novamente retoma a questão de que se outras autoridades ou pessoas podem também apurar infrações penais, então o Delegado é desnecessário. O raciocínio é tortuoso. Trata-se de uma eleição arbitrária do autor. Por que é o Delegado de Polícia que é desnecessário e não as demais pessoas que também podem investigar? Por que não é o Promotor que inclusive já tem muitas funções a executar e não dá conta (não por desídia, mas por ser humanamente impossível)? É mais ou menos como afirmar que se há vários canais de TV a cabo não deve mais haver nenhum nunca mais! Ou que se há uma loja numa cidade, então não há necessidade de outras. O autor toma por excludentes coisas que não o são. Cria um jogo de soma zero, de tudo ou nada em sua mente, o qual difere grotescamente da realidade dos fatos. Nem a investigação pelo Delegado exclui, inclusive de acordo com as disposições legais, outras formas de investigação, muito menos o contrário, como pretende numa incrível manobra de malabarismo o autor! Não há soma zero, não há exclusão, não há tudo ou nada, o fato do Delegado investigar não prejudica os demais, nem o fato de os demais investigarem prejudica a Polícia Judiciária em geral e o Delegado de Polícia em particular. Isso somente ocorre no pensamento descolado da realidade imprimido pelo autor.

 

17) Mas, o nosso autor adora um jogo de soma zero. Em seguida vem apresentar o fato da existência de agentes da autoridade (investigadores, escrivães, carcereiros, agentes policiais) como excludente da necessidade do Delegado de Polícia. O fato deles investigarem impediria o Delegado de o fazer ou tornaria sua atividade inútil. Ora, o próprio autor expõe que ao Delegado cabe chefiar, dirigir, conduzir, orientar as investigações. Eis aí sua função primordial. E é assim não à toa, mas devido à sua formação jurídica, seus conhecimentos especiais. No dia a dia de uma Delegacia, os agentes da autoridade, sejam eles PMs, Policiais Rodoviários, Investigadores, Escrivães etc., fazem o tempo todo perguntas e pedem orientações para os Delegados de Polícia, exatamente pelo fato de que não têm o preparo necessário para, sozinhos, darem conta da presidência das investigações. Isso não é demérito. O cargo não exige. Somente quem nunca esteve em um contato prático, real, de dia a dia com uma Delegacia ou unidade policial pode fazer a afirmação pueril de que” quem produz os elementos de investigação são os investigadores “(sic). Além de redundante e tautológica essa frase esteticamente de mau gosto reflete uma inverdade. Em primeiro lugar quem “investiga são os investigadores” (sic) sob as ordens do Delegado e quem produz os elementos que vão aos autos é o Delegado e o Escrivão, sem os quais os atos dos investigadores não se tornariam em nada. Não é absolutamente verdade que o Delegado receba o Inquérito” pronto “do investigador, como afirma nosso ingênuo e desconhecedor autor. Os investigadores cumprem funções muito determinadas e limitadas numa Delegacia. Só o nosso autor e outros desdotados de conhecimento prático não sabem disso. Um investigador basicamente cumpre Ordens de Serviço expedidas pelos Escrivães e determinadas pelos Delegados, cumprem ofícios de localização de pessoas expedidos pelo Fórum e Mandados de Prisão e Busca e Apreensão, muitas vezes acompanhados e auxiliados pelo próprio Delegado e outros agentes como PMs, Escrivães, Carcereiros etc. Ademais, se há um Mandado, quem representou por ele foi o Delegado, nunca, jamais o investigador. Se nosso autor não sabia disso, se não tem vivência policial, então não deveria ter escrito a respeito. Se sabia, aí então a questão é bem pior, por isso nem vamos entrar nessa seara.

 

18) O autor chega ao cúmulo de dizer que o Delegado de Polícia e o Inquérito Policial não guardam” correlação com nenhum sistema pré – processual no resto do mundo “(sic). Ora, em todo o mundo há uma investigação preliminar a cargo da Polícia Judiciária. Ela vem antes do processo sempre e, por isso, realmente, aqui e na China, vão” atrasar “(sic) um pouco as coisas. Mas, esse” atraso “(sic) é um filtro necessário para depois inclusive ganhar tempo com o arquivamento de casos para os quais não haveria justa causa para um processo criminal em juízo. O nosso autor parece que não gosta do nome” Delegado de Polícia “e” Inquérito Policial “, parece que acredita que mudar o nome muda as coisas, será um nominalista? Sabe ele o que é isso? Será discípulo de filósofos como Hume, Price, Abelardo, Ockham, Carnap, Wittgenstein e companhia? Ou é apenas o que parece: alguém que fala por impulso e nem pode indicar com segurança de onde vêm suas ideias. Se é, por acaso, um nominalista, é bom que saiba que um presidente das investigações sempre haverá, com o nome que for, no lugar onde for, bem como sempre haverá uma investigação antecedente ao processo, sob pena de, aí sim, ocorrer um travamento total de todo e qualquer sistema. Também é bom que saiba que os nominalistas nunca puderam viver suas vidas de acordo com suas ideias, que o nominalismo na prática é uma boa teoria. Mas, acho que não é o caso do nosso autor. Por falar em prática, mais uma vez destaco que em outros sistemas onde a presidência da investigação não é de um indivíduo com formação jurídica, este tem sempre contato direto e contínuo ou com um Juiz de Instrução ou com o Ministério Público, evidentemente dotados de formação jurídica. Isso somente demonstra que para investigar criminalmente é imprescindível o conhecimento jurídico. No Brasil isso tem sido colmatado pela figura do Delegado de Polícia, que tem ao longo dos anos inclusive servido de anteparo para o contato direto do Judiciário e Ministério Público com o submundo criminal, preservando essas instituições de sujarem seus pés e mãos. Quem sabe o Ministério Público pudesse assumir esses encargos de Polícia Judiciária ou então ser implantado um Juizado de Instrução no Brasil… Pois é, só no Estado de São Paulo, seria necessário contratar mais de três mil juízes ou promotores ao peso de ouro de seus salários. Ou então, adotar a solução mais fácil, acabar com a figura do Delegado e deixar as investigações criminais nas mãos de pessoas sem preparo e sem contato direto com o Ministério Público e o Judiciário, a não ser em” casos especiais “. Justiça pobre para os pobres! Eis o ideal do nosso autor.

 

19) Outra absurdidade exposta pelo autor é a alegação de que o Delegado não exerce funções jurídicas porque não atua como Juiz, não exerce atividades judiciais. Para não dizerem que minto, embora seja fácil confirmar no” artigo “(sic):” A natureza jurídica lhe caberia se a ele fosse dado a função de juiz instrutor, o que não é o caso “(sic). Aqui ocorre uma medonha miscelânea entre o conceito de atividade jurídica com atividade judicial. Quem disse que atividade jurídica é apenas a judicial? Desde quando? Um Defensor Público não exerce atividade jurídica? Um parecerista jurídico não exerce atividade jurídica? Um procurador do estado ou de um município não exerce atividade jurídica? Um advogado dativo, nomeado ou constituído não exerce atividade jurídica? Um advogado que presta assessoria não exerce atividade jurídica? O Promotor de Justiça não exerce atividade Jurídica? É assustador ver um argumento desses num pretenso trabalho científico!

 

20) Mas, se são funções similares às judiciais que o nosso caro autor deseja, então elas também existem. Apenas alguns exemplos, sem necessidade de pesquisa, citados de lembrança imediata: fixação ou negativa de fiança (artigo 322, CPP); relaxamento ou declaração de insubsistência do auto de prisão em flagrante (inteligência do artigo 304, § 1o., CPP); expedição de alvará de soltura em caso de fiança (artigo 322, CPP) e em casos de Prisão Temporária (artigo 2o., § 7o., da Lei 7.960/89); reduzir ou aumentar o valor da fiança (artigo 325, II e III c/c 326, CPP); mandar preencher livro de fiança (artigo 329, CPP); deliberar sobre a situação de flagrância (artigo 302, I a IV, CPP – note-se que atualmente a grande deliberação é do Delegado, pois o Juiz já adentra o caso com a comunicação e pode relaxar, converter em preventiva ou conceder liberdade provisória com ou sem fiança, inclusive com cautelares alternativas, ou seja a flagrância e a ordem de prisão propriamente em flagrante são do Delegado); conceder liberdade sem fiança (artigo 28 da Lei 11.343/06); conceder liberdade sem fiança nos casos de infrações avaliadas como de menor potencial ofensivo nos termos da Lei 9099/95 – artigo 61 c/c 69, Parágrafo Único; tomar declarações, depoimentos, fazer acareações e interrogar o indiciado em situação semelhante ao Juiz, somente não havendo o contraditório (artigo 6o., CPP); presidir o reconhecimento de pessoas e coisas, prova esta muitas vezes irrepetível em juízo (artigos 226 a 228, CPP); requisitar perícias (artigo 6o., CPP); proceder à reprodução simulada dos fatos (artigo 7o., CPP – reconstituição); determinar a apreensão de objetos, documentos, papéis, instrumentos etc. (artigo 6o., CPP); deliberar pela liberação do adolescente apreendido em flagrante ou pela sua apreensão (artigo 172 a 177 do ECA – Lei 8069/90). Melhor parar para não cansar demais…

 

21) Anote-se, por oportuno que, como se vê, a suposta desimportância da figura do Delegado de Polícia é tamanha que aquele que irresponsavelmente propõe sua extinção teria de ter consciência (que parece não ter) de que isso levaria à necessidade da revisão de grande parte do Código de Processo Penal e da Legislação Penal e Processual Penal Especial brasileira. A extinção do Delegado de Polícia não é algo que se possa fazer com uma penada, de forma impensada, leviana, por mero capricho. Sua relevância e sua atividade em muitas atividades da persecução penal torna sua função realmente essencial e, em caso de eventual extinção, imporia uma revisão global da legislação em muitos e muitos pontos com grande risco de prejuízo ao interesse social devido a criação de lacunas e contradições no sistema. Eis o problema de se colocar a tratar de um assunto sobre o qual não se tem o menor domínio e muito menos uma visão sistemática. Daí é que surgem ideias e propostas tacanhas, no sentido de falta de largueza de visão.

 

22) Uma pérola de desconhecimento e confusão de conceitos, afora erro terminológico gravíssimo aflora quando nosso autor se põe a tratar da atuação do Delegado de Polícia na Prisão em Flagrante. Começa dizendo que o Delegado ali atua como” julgador “. É claro que isso é um erro gritante. Quando acima, no item 20 citamos a questão de o Delegado deliberar sobre a flagrância ou não e decretar essa modalidade de prisão num primeiro momento, deixamos claro que a situação é” similar “ou” semelhante “à judicial, jamais se identificando com ela até porque hoje é quase pacífico que a Prisão em Flagrante é uma pré – cautelar. Não há julgamento, há formação de convicção e deliberação. A semelhança, mera semelhança está no fato de que o Delegado, tal qual o Juiz, pode determinar a prisão de alguém. No caso do Delegado somente em flagrante. Mas, isso não pode jamais ser equiparado indevidamente com um ato de julgamento! Para piorar o autor escreve (coloco entre aspas e peço que o leitor confira):” autua o executor de um crime em FRAGRANTE delito “(sic) (item 7, segundo parágrafo 3a. Linha, parte final). Peço perdão pela piada, mas só rindo para não chorar:” crime FRAGRANTE “só se for furto de perfume! Ah, mas o autor não se contenta, ainda faz a seguinte afirmação tresloucada: de que o encarceramento de alguém só pode ser feito pelo” juiz instrutor, jamais pelo investigador “(sic). Em primeiro lugar para usar a designação” juiz instrutor “no Brasil, somente fazendo como fiz nestes comentários, deixando claro que essa função não existe no nosso ordenamento. Depois, é de se indagar se o autor desconhece o fato de que no Direito Comparado há várias situações de prisão, seja em flagrante ou algo similar à nossa temporária em que autoridades policiais prendem pessoas diretamente, independentemente de reserva judicial e somente depois comunicam o Juiz? EUA e Inglaterra são exemplos dessas hipóteses. Essas prisões variam entre períodos de 24 h. Até 72 h. Portanto, a afirmativa acima mencionada, afora o erro grosseiro de redação, é absolutamente desprovida de base científica. É totalmente equivocada. Falta absoluta de pesquisa e conhecimento mais profundo do tema. Emissão descontrolada de mero palpite.

 

23) E depois dessa patinada, em suas considerações finais o autor se põe a falar da Polícia no Direito Comparado (Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Alemanha), cita o FBI e a Scotland Yard, sem entrar, é claro, em detalhes. Claro que não, senão saberia que eles prendem e que não é necessariamente com ordem judicial de algum” juiz instrutor “, modelo este inclusive que vem perdendo força no Direito Comparado. Também saberia que, embora, como ele diz, certamente por ouvir dizer, que não há exigência do curso de direito para integrar tais polícias, estas são continuamente assistidas pelo Ministério Público, trabalhando em plena consonância. E os Promotores, aqui como lá, são formados em Direito. Ou seja, a investigação criminal não pode ser deixada, como pensa o autor em comento, nas mãos de leigos. Apenas um exemplo esclarecedor: um indivíduo que pretenda trabalhar na área de cartório notarial ou de registros tem obrigatoriamente de ser bacharel em Direito (artigo 14, IV, da Lei 8935/94). Ora, para registros e notas é preciso ser bacharel, para lidar com a garantia da liberdade e demais direitos individuais das pessoas na área penal e processual penal se propõe a presidência dos atos e tomadas de decisões por um leigo. Maior absurdo e irrazoabilidade não pode existir! Mas, talvez nosso autor também pretenda extinguir os notários e deixar os registros e notas ao Deus dará!

 

24) Ao final passa a falar em desburocratização da função policial e para isso indica como solução a extinção do Delegado de Polícia. Grande proposta realmente, porque outro indivíduo, com algum nome diferente de cargo (v. G. Comissário de Polícia, Investigador – Chefe, Comandante de Polícia, Inspetor de Polícia, sei lá), seria criado e se faria o que sempre se faz, mudar alguma coisa para que tudo fique como está. Essa é a belíssima proposta do nosso autor brilhante! Ninguém pode discordar que a desburocratização e agilização do andamento do Inquérito Policial é algo desejável, o que pode ser feito, não mediante extinção de um cargo que será ocupado por outro, senão pelos mesmos funcionários com outro nome! Mas, sim por meio de reformas que, por exemplo, intensifiquem a oralidade tal como já se processou nos Juizados Especiais Criminais e mesmo no Juízo comum. Aliás, nosso autor não comenta, mas isso é objeto de projeto de reforma do CPP, sem extinguir Inquérito algum ou a função de Delegado, simplesmente porque essas duas medidas não importam, são nomes e eles não mudam coisas, não há mágica como pensa nosso autor. O que pode haver são medidas efetivas, inclusive que reforcem as garantias dos Delegados de Polícia e Policiais Civis e Federais em geral. E a medida de deixar leigos perdidos num mundo dominado por juristas não é nada garantidora dessas instituições (Polícia Civil e Polícia Federal) que podem facilmente ser convertidas em órgãos facilmente manipuláveis com funcionários fracos, despreparados e sem quaisquer garantias, jogados ao léu numa selva de leis, normas, princípios e outros obstáculos misteriosos para os não iniciados na seara jurídica. Somente final nosso autor propõe a aproximação do Promotor da fase de investigação com a Polícia Judiciária. Sonho dourado porque, como já exposto, o Ministério Público sequer dá conta completa de tantas incumbências que possui, além das criminais. Tem dificuldades até mesmo com as criminais em juízo. Não exerce sequer o controle externo em termos de visitas regulares, não por desídia, mas por impossibilidade de pessoal mesmo. Pode-se dizer que ele investiga alguns casos. Isso mesmo, alguns casos escolhidos a dedo e realizados por forças – tarefa. O que ocorreria com a extinção do Delegado seria o abandono dos Policiais despreparados sem uma orientação jurídica e expostos aos reveses dessa condição extremamente frágil. Consequentemente, se a investigação criminal tem hoje suas mazelas, estas iriam se intensificar enormemente. Por isso somente alguém que desconhece os meandros da investigação criminal, da estrutura dos órgãos públicos envolvidos é que pode surgir, sem mais nem menos, com uma proposta estapafúrdia como a externada nesse” artigo “, absolutamente inepto.

 

Penso que aqui se podem encerrar as considerações necessárias para por a claro a falta de técnica, conhecimento, metodologia, pesquisa, experiência prática e conteúdo que marcam esse pretenso” artigo “.

 

Sobre o autor

José Ricardo das Chagas é Delegado de Polícia Federal

 

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