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Contraditório Eventual Antecipado no Inquérito e a Lei 13.245

por Editoria Delegados

Por Fabricio De Santis Conceição

 

Título original: Princípio do Contraditório Eventual Antecipado no Inquérito Policial com o advento da Lei nº 13.245/2016

 

            Com a publicação da Lei 13.245/2016, a qual assegura a participação do advogado no interrogatório e nos depoimentos realizados na investigação criminal, alterando-se o art. 7º do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94), ampliou-se o rol de direitos que são conferidos aos advogados. A Lei nº 13.245/2016 altera o inciso XIV e acrescenta o inciso XXI a este artigo, nos seguintes termos:

 

            Art, 7º. São direitos do advogado:

 

XIV – examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;

 

XXI – assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, (…);

 

            Pois bem. A doutrina majoritária e a jurisprudência sempre entenderam que não seria obrigatória a presença de advogado ou Defensor Público durante o interrogatório ocorrido em sede de inquérito policial. Nesse sentido,

 

(…) É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o inquérito policial é procedimento inquisitivo e não sujeito ao contraditório, razão pela qual a realização de interrogatório sem a presença de advogado não é causa de nulidade. (…)

 

STJ. 6ª Turma. HC 139.412/SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 09/02/2010.

 

            Ocorre que, mediante a promulgação da nova Lei 13.245/2016, em especial da adição do inciso XXI ao art. 7º do Estatuto da OAB, embora este autor tenha se filiado à tese de que a presença do advogado não tenha se tornado obrigatória durante a investigação criminal, já que o novo inciso em comento não fez surgir no mundo jurídico uma obrigatoriedade processual em aspecto criminal, mas uma prerrogativa ao advogado de, desejando, se fazer presente no interrogatório do seu cliente e na coleta dos demais depoimentos resultantes da investigação, já que acrescentou novo inciso no ‘caput’ que dispões sobre os “direitos do advogado”, entendo que a louvável alteração não deve ser analisada somente por esta minúscula exegese legal.

 

            Mais que isso, citando-se Immanuel Kant, “a todo dever corresponde um direito”. Com efeito, “direito” significa aqui, na terminologia utilizada por Kant, a autorização ou faculdade moral (Befugnis, facultas moralis) de fazer não só o que é exigido como dever, mas também o que é lícito, assim como a de não fazer o que é proibido.

 

           Na obra ‘The Michigan Alumnus’, o referido autor questiona ‘o porquê’ da doutrina dos costumes ser intitulada somente a ‘doutrina dos deveres’, e não também a ‘doutrina dos direitos’, uma vez que uns remetem (sich beziehen auf) aos outros” (MS I, AB 48; Ak. VI, 240). Diante de tal colocação, evidencia-se que Kant assumiu a posição de que dever e direito se implicam mutuamente, ou seja, a cada direito corresponde a um dever, e vice-versa.

 

            Dito isso, pergunta-se: não seria razoável que o novo sistema de ‘contraditório eventual’ executado na delegacia de polícia, por meio da alteração produzida pela Lei 13.245/2016 ora em comento, em caso de exercício pelo causídico de sua nova prerrogativa conferida em lei no que tange à assistência a seus clientes investigados durante a apuração de infrações servisse também como produção de prova antecipada apta a afastar a necessidade de sua reprodução pela via judicial?

 

            Ora, utilizando-se do pensamento de Kant, se para cada direito corresponde um dever e se tratando agora de direito do advogado presenciar o interrogatório ou oitivas de testemunhas em sede de inquérito policial, nada mais razoável que, tendo havido o contraditório eventual para coleta da prova nessa fase, de tal ‘direito‘ derivasse o ‘dever’ do causídico de aceitar que a repetição (ou judicialização) da respectiva prova se tornasse desnecessária em sede judicial, (exceto quando, do interrogatório do indiciado ou declarações do suspeito, fosse o cliente orientado pelo advogado a permanecer em silêncio), podendo o magistrado, utilizando-se da exégese do art. 400, §1º, do CPP, indeferir as provas consideradas “irrelevantes, impertinentes ou protelatórias”.

 

            Assim, conferir-se-ia maior valor e eficácia à coleta dessa espécie de prova, de tal sorte que sustento existir hoje em sede de inquérito policial um ‘contraditório eventual antecipado‘ criado pela edição da lei 13.245/2016; eventual porque dependerá sempre da iniciativa de exercício pelo advogado de sua prerrogativa de se fazer presente nos atos do inquérito; antecipado, pois a coleta da prova se dará antes do oferecimento da denúncia, por meio de contraditório perfectibilizado ainda na delegacia de polícia.

 

           Também, por tais motivos, justificar-se-ia a desnecessidade de repetição do(s) mesmo(s) ato(s) em sede judicial, bastando a defesa e ao órgão acusador mencioná-las como meio de prova já realizado (antecipadamente e sob a égide de contraditório eventual) em sede de defesa prévia/alegações finais, se o caso, dando-se plena eficácia normativa e aplicaçao imediata aos princípios constitucionais da eficiência, previsto no ‘caput’ do art. 37 da CF, e o da celeridade, conforme reza o art. 5º, inc. LXXVIII, da CF.

 

            Bom de se observar que nenhum prejuízo restará ao ato, já que haverá contraditório antecipado com a presença da defesa técnica, bem como a garantia de que tal medida estará sempre submetida ao crivo da legalidade, cabendo ao Judiciário examinar sua adequação, sobretudo se observou as garantias constitucionais conferidas aos administrados, até porque, conforme o art. 196 do CPP, poderá o juiz a todo tempo proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes.

 

            Aliás, ao prever o novo inciso XXI do art. 7º do EOAB, uma espécie de nulidade absoluta da prova (do interrogatório ou depoimento) e de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados desde que se impeça ou de qualquer forma se dificulte a assistência do advogado ao cliente durante sua coleta, conferiu o legislador a tal ato pré-processual importância semelhante à produção da prova judicializada, criando-se precedente de nulidade do próprio processo, em qualquer fase recursal, haja vista que o julgador poderá lastrear o julgamento com base em tais provas, a teor do que dispõe o art. 155 do CPP, desde que a prova seja colhida pela polícia judiciária sem o repeito ao direito de assistência do advogado.

 

            Isso demonstra, s.m.j., uma verdadeira mutação de característica do próprio inquérito policial, de procedimento puramente inquisitivo para relativamente contraditório. De mais a mais, com a nova mudança, também não poderá ser mais considerado o inquérito policial como ‘simples peça informativa’, como outrora já entendeu o STJ, v.g., no HC nº 106216 MG, posto que, após a publicação da lei lei 13.245/2016, seu anterior entendimento de que “quaisquer irregularidades no inquérito policial não contaminam a ação penal” já não mais se sustentará, por existir letra expressa de lei acusando ser nulo quaisquer elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, desde que não se tenha garantido o direito ao advogado de presenciar a coleta da prova (interrogatório ou depoimento), já que poderão ser utilizados como fundamento de sentença, o que inevitavelmente atingiria diretamente o processo, conferindo-se, portanto, ao inquérito policial, uma nova roupagem, para ser considerado agora peça ‘informativa-probante’.

 

            E, assim sendo, em análise do art. 155 do CPP, temos que, embora este diga expressamente que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, “ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”, cremos que houve mitigação de tal dispositivo, ao permtir que possa, agora, a peça informativa-probante ser utilizada eventualmente como meio de prova apta a fundamentar decisão judicial e/ou formar a convicção do juiz pela livre apreciação da prova, independentemente das exceções previstas quanto às provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, desde que presente ao ato da coleta das provas advogado regularmente no exercício das funções.

 

            Dessa forma, concluimos que a prova colhida em sede de inquérito policial mediante o contraditório eventual antecipado, na presença de defensor constituído, apresenta-se, em última análise, como exceção ao principio da judicialização das provas, o qual reza que todas as provas produzidas na fase inquisitorial deverão ser produzidas, novamente, em juízo, para que, assim, possa se garantir à outra parte o direito a ampla defesa.

 

            Sustenta-se, pois, que anteriormente não poderia o juiz decidir com base exclusivamente nas provas produzidas no inquérito policial, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Porém, por meio da nova redação do art. 7º, do EOAB, alterado pela Lei 13.245/2016, sustenta-se que, caso o defensor opte por exercer sua prerrogativa de acompanhamento em todos os atos da investigação, deverá também arcar com o dever de aceitar possível e futuro indeferimento judicial pela repetição da mesma prova em juízo (exceto, como ora dito, no tocante ao interrogatório do indiciado e declarações do suspeito, eis que poderá o causídico orientar o cliente para exercer o ‘direito ao silêncio’) podendo, inclusive, o magistrado a partir de agora, em nosso entender, decidir com base nas provas produzidas exclusivamente em sede de inquérito policial, desde que tais tenham sido produzidas sob a égide do contraditório eventual antecipado, tendo havido, portanto, de outro modo, sob o prisma legal, uma espécie de ‘derrogação tácita condicional’ do art. 155, ‘caput’, do CPP nesse sentido.

 

            Ademais, prevalece no moderno sistema processual penal que eventual alegação de nulidade deve vir acompanhada da demonstração do efetivo prejuízo. É que a teor do que dispõe o art. 563 do CPP, a desobediência às formalidades estabelecidas na legislação processual somente implica em invalidade do ato quando, em virtude do vício verificado, sua finalidade estiver comprometida. Ou seja, a finalidade do ato que se persegue durante a persecução penal é sempre a busca da verdade. Assim sendo, presente o defensor a todos os atos do inquérito policial, orientando seu cliente e efetuando requerimentos em prol da defesa, seja ele suspeito, vítima ou testemunha, estará nesta fase dando azo ao contraditório eventual antecipado, bem como exercendo seu direito à ampla defesa no caso concreto, não se verificando nenhum vício que comprometa posterior desnecessidade da judicialização da prova, já que a finalidade lá e cá será sempre a mesma: a busca pela verdade e, seja ela real ou formal (cf. Ferrajoli e Carnelutti) – e aí preferimos o termo ‘verdade processual’, fato é que objetiva sempre a aproximação da verdade dos fatos o máximo possível, a fim de alcançar com o mínimo de desacerto o conceito de justiça.

 

Sobre o autor: Fabricio De Santis Conceição,

Delegado de Polícia no Estado do Rio Grande do Sul; Colunista e correspondente da região Sul do Portal Nacional dos Delegados (www.delegados.com.br); Pós graduado em Direito Penal pela UniFmu/SP e especialista em Tribunal do Júri pela Escola Superior de Advocacia/SP; Professor Universitário e de cursos preparatórios.

 

 

 

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