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Violência doméstica: STF vota hoje mudança sobre medida protetiva; entenda

por Editoria Delegados

Supremo vai votar Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Brasileira de Magistrados

Supremo vai votar Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Brasileira de Magistrados 

O STF (Supremo Tribunal Federal) deve decidir hoje se mantém ou derruba uma lei sancionada em 2019 que permite que delegados ou outras autoridades policiais emitam medidas protetivas de urgência para mulheres vítimas de violência doméstica em cidades que não são sede de comarca — ou seja, que não abrigam um fórum ou outra sede do poder judiciário.

A lei, que à primeira vista pode parecer um avanço para as mulheres, é motivo de debate desde que foi aprovada no Congresso, há três anos: por um lado, há quem defenda que a rapidez na decisão de afastar o agressor pode salvar a vida de quem sofre violência; por outro, que autoridades policiais não estão preparadas para decidir pela proteção dessas mulheres, e que a medida protetiva imediata, na verdade, gera uma falsa ideia de proteção e pode enfraquecer a Lei Maria da Penha.

O assunto chega ao STF depois que a Associação Brasileira de Magistrados propôs uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) alegando que permitir que delegados e policiais emitam uma medida protetiva levaria a uma “ofensa ao princípio da reserva de jurisdição” — em outras palavras, permite que delegados, que são membros do poder Executivo, exerçam uma função que, segundo a Constituição Federal, caberia apenas ao poder Judiciário, ou seja, aos juízes.

Para entender os impactos que uma possível mudança pode ter na vida das mulheres, Universa ouviu quatro profissionais que atuam na linha de frente do atendimento às vítimas de violência: a delegada Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Civil de São Paulo; a juíza Teresa Cabral, integrante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica do Poder Judiciário do Estado de São Paulo; e as advogadas Alice Bianchini, autora do livro “Crimes Contra Mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio” (ed. Juspodivm) e Marina Ruzzi, da Rede Feminista de Juristas.

O que pode mudar?

Primeiro, é preciso reforçar que a regra não vale para todas os casos: um delegado só pode emitir uma medida protetiva de urgência em uma das 2.873 cidades que não são sede de comarca (pouco mais de metade dos municípios brasileiros); na ausência dele, um policial também pode decidir pela medida.

Até 2019, quando a lei passou a valer, o delegado que recebia a denúncia tinha até 24 horas para encaminhar o pedido de medida protetiva ao juiz mais próximo, que poderia levar até 48 horas para julgar o caso —ou seja, a medida protetiva só se tornava válida, de fato, três dias após a denúncia.

Agora, com a lei em vigor, uma mulher que vai à delegacia denunciar violência doméstica em uma cidade que não tem um juiz de plantão pode sair de lá já com a medida protetiva em mãos, assinada por um delegado ou, na falta dele, outra autoridade policial. Nesses casos, a medida começa a valer na mesma hora, mas deve ser enviada em até 24 horas ao juiz mais próximo, que tem outras 24 horas para confirmar que a decisão continue valendo.

Na prática, a lei reduziu de três dias para poucos minutos o tempo de espera por uma medida de restrição que afaste o agressor da vítima —se for derrubada pelo Supremo, volta a funcionar como antes: prazo de até três dias para que a medida protetiva seja válida.

Prós: rapidez na proteção das mulheres

A regra “bagunça” a divisão de atribuições de poderes estabelecidas pela Constituição, dizem especialistas, mas, como afirma a advogada Alice Bianchini, trata-se de uma ação emergencial muito específica. “Pode servir como um reforço temporário à proteção dessas mulheres”, diz.

Ela vê a lei com bons olhos e afirma que uma atuação mais lenta da Justiça diante de um caso de violência doméstica pode levar à morte de mulheres.

Raquel Gallinati, do Sindicato dos Delegados, também defende que a lei seja mantid e discorda que ela leve à “ofensa ao princípio da reserva de jurisdição”, como alegou a Associação Brasileira de Magistrados, autora da ação. Ela lembra que, ao final, é o juiz quem toma a decisão final de manter de pé a medida.

“O delegado é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça. É na porta de delegacia, no calor dos fatos, que a integridade física daquela mulher pode ser resguardada com mais eficácia”, fala. “Derrubar essa permissão é um retrocesso ao aparato de proteção da mulher vítima de violência”.

A delegada destaca, ainda, que nem todos os estados brasileiros vivem a mesma realidade de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. “Quando falamos de municípios das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a vulnerabilidade é muito maior. Ao não permitir a ação imediata do Estado, a gente faz com que a vulnerabilidade dessas mulheres fique latente.”

“Se, mesmo com a lei em vigor, o juiz deve ser comunicado em 24 horas e responder em igual prazo, não existe usurpação dos poderes. É uma briga corporativista que não está visando o principal, que é a proteção da mulher” Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Civil de São Paulo.

Contras: despreparo de policiais e desvio de foco

Marina Ruzzi, advogada, afirma que há um despreparo de delegados e policiais —inclusive em delegacias especializadas— para atender mulheres vítimas de violência. Por isso, acredita que a lei deve ser derrubada para que apenas juízes possam decidir por conceder ou não uma medida protetiva, como acontecia antes de 2019.

“Muito me preocupa o perfil desses delegados. A Lei Maria da Penha prevê a capacitação da força policial em termos de raça e gênero, mas isso não é feito com a frequência que deveria”, afirma. “São inúmeros os relatos de mulheres que procuram a polícia e são desacreditadas, desencorajadas, escutam barbaridades machistas de delegados e policiais. Muitas vezes, são orientadas a ir para casa e voltar no dia seguinte”, explica.

Segundo Ruzzi, com essa lei, se assume que delegados de cidades pequenas, que não têm delegacias e nem varas especializadas, estariam preparados para decidir pela proteção ou não desta mulher, quando muitas vezes não é esse o caso.

Além disso, ela considera a norma vigente uma espécie de “tampão” que, na prática, desvia o foco das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. O mesmo percebe a juíza Teresa Cabral, que não vê grande eficácia na lei e acredita que ela “desmonta” toda uma estrutura interdisciplinar criada pela Lei Maria da Penha, o que, no final, prejudica a proteção da vítima.

“Não vejo mudanças substanciais e significativas nessa alteração judicial [de 2019]”, afirma Cabral. “A violência doméstica é um problema muito complexo e, justamente por isso, a Maria da Penha estabelece uma rede de proteção integral à mulher, que envolve diferentes esferas —polícia, Justiça, assistência social, saúde, etc. Quando a gente mexe nessa estrutura e não aciona todos os agentes da rede, há uma falsa ideia de proteção. A mulher entende que a violência vai parar com a medida protetiva, mas, na verdade, o que interrompe a violência é toda essa articulação.”

Se a rede de proteção não está ciente da violência, afirma a juíza, não há como encaminhar a mulher a uma casa de acolhimento ou fiscalizar se o agressor está cumprindo a medida protetiva, por exemplo. “O risco, portanto, é aumentado.”

“Se a gente tem que fazer uma opção como sociedade, deveria ser pelo fortalecimento das políticas públicas, das Casas da Mulher Brasileira, do treinamento de profissionais da saúde, psicologia, assistência social que atendem as vítimas. Nossos esforços têm que ser voltados para isso porque só com políticas públicas fortes é possível romper o ciclo da violência”.

Universa procurou a Associação Brasileira de Magistrados, que propôs a ADI que levou o tema ao Supremo, mas não teve resposta até a publicação deste texto.

UOL

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