O “jogo do tigrinho” ganhou todos os noticiários do país, em especial, pelas operações policiais, prisões e indiciamentos de influencers digitais por diversos crimes como lavagem de dinheiro, apologia ao crime, associação criminosa e contravenção de jogo de azar. Mas até onde vai a toca do coelho? E porque não se consegue estancar na fonte esse fenômeno criminal?
Para compreender a fundo essa dinâmica, primeiramente deve-se ter em mente que o “Jogo do Tigrinho” não é uma marca exclusiva, um software patenteado ou marca de empresa nacional patenteada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI. Ele é apenas um aplicativo whitelabel explorado por diversos cassinos on-line.
Como se sabe, no Brasil, os jogos de azar sempre foram uma contravenção penal estabelecida no art. 50 do Decreto Lei nº 3.688 de 1941. É nesta contravenção que o conhecido jogo do bicho carioca se enquadra. Contudo, com os avanços tecnológicos e a possibilidade de acesso à internet, em especial durante à pandemia COVID-17, os cassinos on-line e as chamadas “bets” (apostas desportivas) se proliferaram. À mingua de base normativa regulatória e mecanismos tecnológicos adequados, exploradores da indústria dos jogos, sobretudo asiáticos, rapidamente perceberam no Brasil mais um nicho mercadológico a ser explorado.
Nesse contexto, esse fenômeno socioeconômico se espalhou significativamente ao ponto de não mais poder ser detido. Numa tentativa de contenção de danos, a primeira brecha aberta para a legalização dos jogos foi obtida em 2018 com a publicação da Medida Provisória n° 846 que estabeleceu regras para a exploração de apostas desportivas de empresas que funcionassem no Brasil. Essa MP pouco alterou o cenário da ilegalidade, na medida em que as grandes empresas de “bets” já atuantes no Brasil mantiveram suas atividades sob a alegação de que suas sedes não eram aqui e, portanto, não seriam submetidas ao regramento nacional.
Referida MP depois foi convertida na lei n. 13.756, de 2018, prevendo um prazo de dois anos (prorrogável por mais dois) para que houvesse a regulamentação do setor. Avançando na cronologia legislativa, em 2023, foi publicada a MP 1.182 que alterava alguns dispositivos da lei n. 13.756, buscando robustecer a regulamentação e dar mais transparência aos apostadores. Essa MP surgiu durante as suspeitas de manipulação de jogos ocorridos naquele ano. Toda essa base normativa, entretanto, nunca foi clara em relação aos cassinos on-line, tratando apenas das chamadas apostas desportivas. Nessa perspectiva, os cassinos on-line (e aqui reside o Jogo do Tigrinho) são tecnicamente exploração de jogos de azar, mas como suas sedes são em lugares onde a legislação permite, o Estado brasileiro se mantém inerte, pois quem comete crime é explorador do jogo, quem aposta não comete ilegalidade. Essa situação cria uma contradição: máquinas caça-níqueis em estabelecimentos locais são reprimidas severamente, enquanto os bilionários cassinos on-line asiáticos retiram divisas do país sem qualquer consequência.
Nessa perspectiva, o que se retira numa análise maior do “Jogo do Tigrinho” é algo bem mais sério. A soberania do Estado, entendida como Poder de fazer cumprir suas leis dentro de seu território, está sendo desafiada pela internet, por novos arranjos de pagamento e por empresas com sedes em paraísos regulatórios.
Nesse contexto maior, importante destacar um ponto crucial e frequentemente ignorado: como o dinheiro dos apostadores brasileiros é transferido para esses cassinos internacionais? Afinal, a sede desses cassinos on-line pode estar na Ilhas Cayman ou no Laos, mas os apostadores e o dinheiro estão no Brasil. Como então que o Real daqui vira Yuan lá? Afinal, o sistema financeiro constituído pelos bancos tradicionais não pode efetivar esses recebimentos de jogos e remetendo para fora do país.
Investigações tem demonstrado que os cassinos on-line têm constituído empresas de fachada no Brasil passando-se por “instituições de pagamento”. As instituições de pagamento não são bancos, mas podem receber e transferir dinheiro. Uma pessoa pode ter um conta numa instituição de pagamento e, na prática, nem perceber a diferença entre sua conta corrente no banco tradicional. Isso tem ocorrido porque as instituições de pagamento são pouco reguladas e, a depender de seu fluxo financeiro e outras regras estabelecidas nas resoluções 80 e 81 do BCB, sequer precisam de autorização para funcionamento. Somado a essa brecha, o framework brasileiro, embora bem questionável, permite a chamada “shelf company”.
As empresas de prateleira são pessoas jurídicas pré-constituídas por brasileiros que depois são colocadas à venda para terceiros interessados. Isso permite que um estrangeiro compre uma empresa brasileira, sem nunca ter colocado os pés no Brasil. Pesquisa no Google e tratativas pelo WhatsApp são suficientes para comprar uma empresa de prateleira mesmo residindo do outro lado do mundo. Depois disso, também pelo WhatsApp, é possível que uma shelf company controlada por um estrangeiro subcontrate como uma instituição de pagamento brasileira que possuem acesso indireto ao sistema PIX e fornecem a ponta tecnológica a ser disponibilizada no website do cassino on-line. Estabelecidos esses passos, o canal pra fluxo de dinheiro está aberto. Será que ninguém ainda havia percebido que apostador no Brasil não tem cartão de crédito internacional e precisa colocar crédito via PIX?
Aproveitando essa facilidade, o estelionatário brasileiro também já criou o novo golpe do PIX. Depois de criar uma história, manda pra vítima a código PIX que recebeu na hora que cadastrou seu perfil no cassino on-line, a vítima faz o depósito achando que quem pediu foi um parente e o criminoso recebe o crédito para jogar. Parece piada, mas é verdade e já investigamos casos dessa espécie.
Se antes o imperialismo chegava as praias nacionais com caravelas que partiam cheias de riquezas, hoje o dreno é digital e gigantescamente maior. A evasão descontrolada da riqueza nacional pelos cassinos on-line e empobrecimento da população pela exploração da impulsividade patogênica é um fator econômico-social a ser pensado. A ideia de “consumir com moderação” quando se trata de jogos é um no mínimo uma hipocrisia que só serve aos bilionários proprietários das casas de apostas.
Enquanto a Polícia Judiciária tenta apagar o incêndio criado pelas próprias brechas abertas pelas falhas da fiscalização administrativa dessas instituições de pagamento, estrangeiros pilham o vício nacional, criando dramas familiares que culminam até em suicídios.
A cegueira deliberada motivada pelos vultuosos percentuais cobrados pelas transações deve em algum momento encontrar as consequências jurídicas. Nesse sentido, esse fenômeno criminal precisa ser atacado na fonte e, para isso, é imprescindível a responsabilização das empresas de pagamento que instrumentalizam o fluxo financeiro desses cassinos on-line.
Sobre o autor
Erick da Rocha Spiegel Sallum. Delegado de Polícia Civil do DF. Ex-Agente da Polícia Federal. Bacharel em Administração de Empresas e Direito. Pós graduado em Direito Penal, Processual Penal e Constitucional. Especialista em Investigação Financeira e Cibernética.
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