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Pacote Anticrime revela a importância do Delegado de Polícia no ordenamento jurídico, dentro do sistema de persecução penal

por Editoria Delegados

Por João Gabriel Cardoso e Joaquim Leitão Junior

Título original: O Pacote Anticrime acaba por revelar mais ainda a importância do Delegado de Polícia no ordenamento jurídico, dentro do sistema de persecução penal

 

A divergência jurisprudencial do STJ e do STF sobre o magistrado agir de ofício na conversão da prisão flagrancial em prisão preventiva

 

João Gabriel Cardoso[1] e Joaquim Leitão Junior[2]

 

O Delegado de Polícia tem função social relevante no ordenamento jurídico, não é à toa que na prática a Delegacia de Polícia é um dos primeiros lugares que o cidadão se socorre em casos mais extremos e que necessita de uma resposta estatal.

Essa função social foi, inclusive, enfatizada pelo Ministro aposentado Celso de Mello no julgamento do Habeas Corpus 84.548/SP[3], quando afirmou que “o Delegado de Polícia é o primeiro garantir da legalidade e da justiça”.

Alguns anos se passaram desde o julgamento do Habeas Corpus emblemático e surgiu a Lei nº 13.964/19, denominado de Pacote Anticrime. A legislação trouxe diversas alterações e dentre elas enfatiza-se a adoção ao sistema acusatório puro, que proíbe que o magistrado aja ex officio em determinadas situações para que não haja mácula em sua imparcialidade.

Para iniciar a discussão acerca do tema, importante se faz destacar a nova redação do art. 311 do Código de Processo Penal que foi acrescentada pelo Pacote, que diz o seguinte:

“Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.”

Observa-se que, diferentemente da redação anterior, o legislador não constou expressamente que o magistrado pudesse decretar a prisão preventiva ex officio. No entanto, mesmo com a redação expressa em não admitir a prisão preventiva pelo magistrado de ofício, o tema rende discussões no âmbito dos Tribunais Superiores e por isso a iniciativa em elaborar este trabalho.

Afinal, a redação inserida pelo legislador é constitucional? Ou se trata de mais uma letra morta prevista expressamente no ordenamento? A principal discussão que tem sido enfrentada pelos Tribunais Superiores consiste nas situações em que o magistrado recebe o Auto de Prisão em Flagrante Delito e tem que decidir pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Nesse caso estaria autorizado a converter a prisão em flagrante na prisão preventiva, ex officio, quando presentes os requisitos legais?

 

– Posição da doutrina

Nas lições de Renato Brasileiro de Lima, com o advento do Pacote Anticrime, não há que se admitir a conversão da prisão em flagrante em preventiva sem provocação da autoridade policial ou do Ministério Público. Neste sentido afirma o seguinte:

“toda a sistemática introduzida no CPP pela Lei n. 13.964/19 visam retirar do magistrado, seja ele o juiz das garantias, seja ele o juiz da instrução e julgamento, qualquer iniciativa capaz de colocar em dúvida sua imparcialidade. Logo, se ao magistrado não se defere a possibilidade de decretar uma prisão preventiva (ou temporária) de ofício na fase investigatória, não há lógica nenhuma em continuar a se admitir esta iniciativa para fins de conversão (CPP, art. 310, II). Afinal, ontologicamente, não há absolutamente nenhuma diferença entre a preventiva resultante da conversão de anterior prisão em flagrante e a preventiva decretada em relação àquele indivíduo que estava em liberdade” (LIMA, 2020, p.948).

No mesmo sentido também são os ensinamentos de Anderson de Paiva Gabriel ao asseverar o que diz o novel art. 311, do Código de Processo Penal. Afirma o autor que:

“Ora, resta translúcido que a alteração legal busca inviabilizar que a prisão preventiva seja decretada pelo juiz sem prévio requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial (mencione-se, ainda, como hipóteses autorizadoras o requerimento do querelante ou do assistente)” (GABRIEL, 2020, p. 173).

Desse modo, a doutrina tem sido firme em inadmitir a conversão da prisão em flagrante em preventiva ex officio pelo magistrado, haja vista a violação da literalidade do art. 311 do Código de Processo Penal.

 

– A divergência jurisprudencial do STJ e do STF sobre o magistrado agir de ofício na conversão da prisão flagrancial em prisão preventiva – que revela a importância de o Delegado de Polícia representar pela conversão da medida quando presentesseus requisitos e pressupostos

Logo após o advento do Pacote Anticrime, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça chegou a prolatar decisões de que seria admissível ao magistrado converter, de ofício, a prisão em flagrante em preventiva. No julgamento do Recurso em Habeas Corpus de nº 120.281/RO[4], em 05/05/2020, a Quinta Turma chegou a afirmar que:

“O Juiz, mesmo sem provocação da autoridade policial ou da acusação, ao receber o auto de prisão em flagrante, poderá, quando presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, converter a prisão em flagrante em preventiva, em cumprimento ao disposto no artigo 310, II, do mesmo Código, não havendo falar em nulidade” (Grifo nosso).

Posteriormente ao julgado da Quinta Turma, foi a vez da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça de enfrentar novamente a polêmica do assunto no Habeas Corpus de nº 583.995[5], julgado em 17/09/2020. Nele a Sexta Turma chegou a diferenciar a prisão preventiva que é oriunda de uma decisão judicial sem a existência de conversão de prisão em flagrante, da decisão judicial que é fruto desta conversão. Em um dos trechos da decisão da Sexta Turma, o Ministro Relator Rogério Schietti Cruz afirmou não ser possível que o magistrado decretasse, ex officio, a prisão em preventiva quando esta não fosse fruto da conversão do flagrante. Todavia, admitiu ser possível a decretação, independentemente de provocação ministerial ou da autoridade policial, em situações de conversão da prisão em flagrante em preventiva. Nas lições o Ministro Relator afirmou o seguinte:

“Não considero, assim, existir propriamente uma atividade oficiosa do juiz nesta hipótese, porque, a rigor, não apenas a lei obriga o ato judicial, mas também, de um certo modo, há o encaminhamento, pela autoridade policial, do auto de prisão em flagrante para sua acurada análise, na expectativa, derivada do dispositivo legal (art. 310 do CPP), que tocará ao juiz, após ouvir o autuado, de que adote uma das providências ali previstas, inclusive a de manter o flagranciado preso, já agora sob o título da prisão preventiva”. (Grifo nosso).

Logo após, o Supremo Tribunal Federal, em sentido contrário ao da Quinta Turma no Recurso em Habeas Corpus de nº 120.281/RO[6], posicionou-se pela impossibilidade de o magistrado converter a prisão em flagrante em prisão preventiva. No julgamento do Habeas Corpus de nº188.888[7], decidido em 06/10/2020, o Ministro Celso de Mello sustentou que:

“A Lei nº 13.964/19, ao suprimir a expressão “de ofício”’ que constava do art. 282, §§2º e 4º, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio “requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público (grifei), não mais sendo lícita, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação ex officio do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade”.

Alguns dias depois foi a vez da Quinta Turma no Habeas Corpus 590.039, julgado em 20/10/2020[8], decidir no mesmo sentido que a Suprema Corte. No julgado, a Quinta Turma mudou o seu posicionamento anterior e definiu que na prisão preventiva oriunda da conversão da prisão em flagrante o magistrado não pode decretar aquela ex officio, sob pena de violar o sistema penal acusatório. Em um dos trechos da decisão do Relator houve a afirmação de que “as alterações promovidas pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) excluíram a possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício pelo magistrado”.

Percebe-se que tanto a decisão do Supremo Tribunal Federal de relatoria do ministro Celso de Mello, quanto a da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça de relatoria do ministro Ribeiro Dantas têm demonstrado a importância do Delegado de Polícia em situações de prisões ocorridas em situações de flagrância.

A impossibilidade de o magistrado decretar de ofício a preventiva demonstra que se o Delegado de Polícia não observar o preenchimento dos requisitos legais para a prisão preventiva e que por ela represente, é possível que o responsável pela prática do crime tenha possibilidade de ser solto no momento de sua conversão, em razão denem sempre a audiência de custódia ocorrer no devido prazo legal ou de em determinadas situações o membro do Ministério Público poder se fazer presente, haja ou não motivo justificado.

 

– Das considerações finais

Do exposto, seguimos a opinião de que a melhor corrente a ser adotada pelos Tribunais Superiores é a que veda o magistrado agir de ofício por violar o sistema acusatório puro que foi instituído pelo Pacote Anticrime – embora não seja sob o axioma da justiça a melhor posição para nosso sistema, mas temos lei positivada a ser obedecida e um sistema que exige coerência. Além do mais, não se pode olvidar que essa corrente demonstra o brilhante papel social já destacado pelo Ministro aposentado Celso de Mello de o Delegado de Polícia ser o primeiro garantidor da legalidade e da justiça, e que ao observar o caso concreto tem a oportunidade de imediatamente lavrar a prisão em flagrante e de representar pela conversão da prisão flagrancial em medida cautelar de prisão preventiva do flagranteado quando observados os requisitos legais e pressupostos para tanto.

 

Referências bibliográficas:

GABRIEL, Anderson de Paiva. Lei Anticrime: comentários à lei 13.964/2019. Organizador Renne do Ó Souza. 1ª edição . 1ª reimpressão, Belo Horizonte, São Paulo, D’Plácido, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único/ Renato Brasileiro de Lima- 8. Ed. rev.ampl. e atual. -Salvador: Ed. Juspodvm, 2020.

Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm Acesso em 25 de out. de 2020.

Site da Associação dos Magistrados Mineiros. Disponível em: https://amagis.com.br/posts/artigo-a-possibilidade-da-decretacao-da-prisao-cautelar-de-oficio-apos-o-pacote-anticrime Acesso em 26 de out. 2020.

Site CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/flagrante-convertido-preventiva-pedido.pdf Acesso em 25 de out. de 2020.

Site CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/flagrante-convertido-preventiva-pedido.pdf Acesso em 26 de out. 2020.

Site CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-22/stj-declara-ilegal-conversao-preventiva-oficio-prisao-flagrante Acesso em 26 de out. 2020.

Site STJ. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=COL&sequencial=116984661&formato=PDF&formato=undefined Acesso em 26 de out. 2020.

 

[1]É Delegado de Polícia no Estado do Ceará. Ex-servidor público federal da Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito Administrativo pela Faculdade de Ciências Wenceslau Braz. Autor de obra jurídica, autor de artigos jurídicos e professor universitário da Faculdade Ieducare. Aprovado em diversos concursos na área de segurança pública.

[2]É Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente Diretor Adjunto da Academia de Polícia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colunista do site Justiça e Polícia, palestrante, coautor de obras jurídicas, autor de artigos jurídicos, professor de cursos preparatórios para concursos públicos e é também integrante da Mentoria KDJ.

[3] Ministro Celso de Melo, STF, HC 84548/SP. Rel. Ministro Marco Aurélio. Julgado em 21/6/2012.

[4] STJ, RHC 120.281/RO, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 05/05/2020, DJe 15/05/2020.

[5] STJ, Sexta Turma, HC 583.995/MG, Voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, Julgado em 17/09/2020.

[6] STJ, RHC 120.281/RO, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 05/05/2020, DJe 15//05/2020.

[7] STF, HC 188.888/MG, Rel. Ministro Celso de Mello. Julgado em 06/10/2020.

[8] STJ, Quinta Turma HC 590.039/GO, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 20/10/2020.

 

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