Por Adriano Sousa Costa, Henrique Hoffmann e Gabriel Habib
Por Adriano Sousa Costa, Henrique Hoffmann e Gabriel Habib
Discussão atual no Brasil e no mundo reside na ampliação do espaço de consenso na persecução penal, permitindo a realização de acordos entre o investigado ou réu e o Estado. Ganha cada vez mais espaço o modelo de Justiça Criminal Consensuado, que não objetiva exclusivamente a punição do delinquente, mas principalmente a reparação de danos (modelo restaurativo) ou a celebração de compromisso entre imputado e Poder Público (modelo negocial).
Esse modelo de Justiça Consensual surgiu a partir da crise que atingiu a administração da justiça, que acabou por gerar a busca incessante pela maior efetividade. O progresso da ciência jurídica processual penal não foi acompanhado por uma justiça eficaz e célere, que desse a resposta adequada ao jurisdicionado em um tempo razoável. A eficiência prática da ciência processual passou a andar descompassada da sua base teórica e não serviu para dar uma adequada solução para os graves problemas que a justiça brasileira estava a passar há algum tempo, como a sobrecarga de processos no judiciário, a morosidade judicial na solução dos litígios, o elevado custo do acesso à justiça e a excessiva burocracia dos juízos e tribunais[1].
Percebeu-se, então, a necessidade de encontrarem-se regras processuais que resultassem na eficaz aplicação prática do Direito, com uma resposta estatal célere e eficaz e, a partir dessa constatação, passou-se a trabalhar com a ideia de deformalização das controvérsias, com a qual se buscam equivalentes jurisdicionais, por meio de vias alternativas ao processo, como forma de evitá-lo, através de instrumentos de mediação. Com isso, passaram a ser defendidas as seguintes ideias: para as causas de menor complexidade, estímulo das vias alternativas como meios de solução de litígios fora do poder judiciário; estímulo à conciliação, mesmo dentro do processo criminal, apesar de vigorar o princípio da obrigatoriedade da ação penal; celeridade e menos burocratização dos procedimentos; e participação da vítima no processo. Esse conjunto de ideias acabou por traçar os moldes da justiça consensual na ordem jurídica brasileira.
A legislação brasileira já contempla métodos que privilegiam o acordo na seara criminal, desde o advento da Lei 7.244/84 (Juizados de Pequenas Causas), passando pela Lei 9.099/95 (composição civil e transação penal) e pela Lei 12.850/13 (colaboração premiada), e chegando ao art. 28-A do CPP (acordo de não persecução penal).[2]
Com efeito, muito se discute sobre a implementação no país de outro instituto: o acordo de não persecução penal. Cuida-se de acordo (negócio jurídico processual) assumido entre o investigado e o Estado, por meio do qual aquele confessa o delito em troca do cumprimento de condições mais benéficas do que a sanção penal cominada no tipo penal, solucionando mais rapidamente o caso. O desiderato é racionalizar a persecução criminal quando se tratar da apuração de crimes de médio potencial ofensivo praticados sem violência ou grave ameaça.
Anteriormente, o acordo era disciplinado exclusivamente pela Resolução 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público, o que extrapolava o poder normativo conferido pelo art. 130-A, §2º da CF e feria a competência legislativa da União trazida no art. 22, I da CF.
Agora o instituto passa a ser disciplinado por meio de lei, porém consagra a legitimidade para celebração restrita ao membro do Ministério Público, sem englobar o delegado de polícia. Tal postura não segue a linha das Regras de Tóquio, diploma internacional de direitos humanos com status hierárquico supralegal[3] que dispõe expressamente acerca da legitimidade da Polícia:
5.1. Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. Para a decisão sobre a adequação da retirada ou determinação dos procedimentos deve-se desenvolver um conjunto de critérios estabelecidos dentro de cada sistema legal.
A legitimidade concorrente entre membro do MP e delegado de polícia, aliás, já existe em outro importante acordo, qual seja, a colaboração premiada. Como já afirmado pelo Supremo Tribunal Federal[4], a legitimidade para a realização do pacto não se vincula à titularidade da ação penal pública. Ou seja, o fato de o MP ser o dominus litis em nada prejudica a possibilidade de a autoridade policial realizar o negócio jurídico. O direito de punir continua sendo matéria a ser decidida pelo Judiciário. Vale lembrar que, quando o acordo é firmado pelo delegado, sequer a anuência do Parquet é necessária. E que o controle judicial persiste íntegro, seja o acordo feito pelo MP ou pela Polícia Judiciária.
Noutro giro, fundamental grifar que uma das principais justificativas do uso do acordo de não persecução penal é a racionalização do sistema criminal, combatendo a morosidade e diminuindo o volume represado de serviço. Nesse passo, é preciso resolver não apenas o problema na fase de ação penal, mas também na etapa antecedente de investigação criminal. Afinal, não basta solucionar o problema do grande fluxo de ações penais; é imprescindível atuar sobre o gargalo inicial (da investigação criminal), sob pena de manter congestionado o sistema criminal.
O sistema de persecução criminal é uma engrenagem, sendo que a porta de entrada é a delegacia de polícia. As investigações capitaneadas pelo Ministério Público são restritas a poucos e seletivos casos; na prática, aqueles geram repercussão midiática. O instituto poderá ser melhor utilizado se não ficar restrito aos casos excepcionais e subsidiários do MP, devendo também atuar a Polícia Judiciária, que absorve todas as mazelas sociais nos mais variados rincões do Brasil.
De mais a mais, a viabilidade de se fazer um acordo é melhor detectada na primeira etapa da persecução criminal. Essa posição privilegiada vem trazendo bons resultados com a colaboração premiada, e também propiciará resultado positivo com o acordo de não persecução penal.
Alguns bons exemplos de uso prático de tal instituto em sede de delegacia seriam os furtos qualificados, os estelionatos, as apropriações indébitas, receptações, e violações de direito autoral. O acordo não se limitaria aos crimes de colarinho branco, portanto.
Se apenas o membro do MP puder celebrar o acordo, a Polícia Judiciária será obrigada a produzir elementos desnecessários e a se debruçar inutilmente sobre investigações natimortas, que não resultarão em processos judiciais quando futuramente o Ministério Público optar por fazer o ajuste.
Num cenário de falta de investimento estatal, é irracional exigir que a Polícia Investigativa se utilize inutilmente de sua força produtiva para investigações que serão objeto futuro de tais acordos. Imagine a quantidade de interceptações telefônicas, buscas e apreensões, afastamentos de sigilo, sequestros de bens e perícias que poderiam ser evitados.
Não faz sentido a movimentação desnecessária da onerosa máquina estatal em prol de supérflua produção probatória, em verdadeiro desperdício de elementos informativos, probatórios e de dinheiro público. É preciso permitir que a primeira autoridade pública investida do poder de investigar (delegado de polícia) possa firmar um negócio jurídico processual desse naipe, porquanto já saberá se deve ou não movimentar a máquina pública – e em qual magnitude – para produzir elementos mais robustos para eventual processo.
Repita-se: com a legitimidade do delegado de polícia, diversos casos criminais podem ser resolvidos em sede policial sem a necessidade de se movimentar em vão a estrutural estatal, poupando o exagero probatório.
O problema do uso despropositado da investigação criminal e a imposição de dispensáveis medidas cautelares se tornará ainda mais grave quando a medida imposta for a prisão. Fere a proporcionalidade e a homogeneidade que alguém fique preso na fase policial e o Ministério Público decida posteriormente fazer um acordo dessa estirpe, o que acontecerá se o delegado de polícia não puder realizar o negócio jurídico. Se não puder antever sobre o interesse do Estado em dar continuidade ao processo em desfavor de uma pessoa, pleiteará todas as medidas que acredite necessárias, inclusive a custódia cautelar. E nisso residiria uma situação de total e absoluta inversão de valores. Note-se que, nesse caso, o indiciado teria a sua liberdade privada, por meio de uma medida cautelar, e, posteriormente, o processo criminal poderia sequer existir, se realizado o acordo de não persecução. Ou seja, essa prisão cautelar transformar-se-ia na antecipação de uma pena criminal que sequer teria a possibilidade de existir no futuro, ferindo de morte a segurança jurídica.
Diga-se ainda que, no atual cenário, o Ministério Público pode investigar, propor acordo de colaboração premiada, propor acordo de não persecução penal, propor acordo de transação penal e, por fim, oferecer a ação penal. Essa grande concentração de poderes nas mãos de integrantes de um único órgão estatal é indesejável aos olhos republicanos e democráticos. Ao cidadão não interessa a hipertrofia de poder em qualquer órgão do Estado. Por isso, essencial que esses mecanismos passem a ser entregues nas mãos de outras autoridades públicas visando a não monopolizar a possibilidade de concessão de benefícios tão importantes para a eficiência da máquina pública.
Como se nota, o acordo de não persecução penal tem potencial para propiciar economia de tempo e de recursos, possibilitando que o sistema de justiça criminal exerça, com a atenção devida, uma tutela penal mais efetiva nos crimes mais graves.
Contudo, para atingir esse objetivo, não pode ignorar a fase investigativa, levada e efeito na esmagadora maioria dos casos pela Polícia Judiciária. A legitimidade concorrente do membro do Ministério Público e delegado de polícia é uma necessidade decorrente da leitura racional de um sistema de persecução criminal de recursos escassos, e o legislador precisa adequar o ordenamento jurídico a essa visão.
[1] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 192.
[2] Aprovado pelo Projeto de Lei 10.372/18 (conhecido como Pacote Anticrime).
[3] STF, RE 466.343, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 03/12/2018.
[4] STF, ADI 5.508, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 20/06/2018.
Sobre os autores
Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, doutorando em Ciência Política pela UnB, mestre em Ciências Políticas pela UFG e professor da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, do Senasp e do Cers. Membro da Academia Goiana de Direito.
Henrique Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com
Gabriel Habib é defensor público Federal. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Professor da pós-graduação da FGV, da PUC-RJ, do Ibmec e da Universidade Cândido Mendes. Professor da EMERJ, ESMAFE/PR, FESUDEPERJ, FESMP/MG, CERS, Forum e Supremo.
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