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O inquérito policial à luz do pensamento complexo e da teoria da alteridade

por Editoria Delegados

Por Erick da Rocha Spiegel Sallum

Por Erick da Rocha Spiegel Sallum                   

O Direito, enquanto ramo das ciências humanas, não se constrói a partir de constatações empíricas, mas sim sobre preceitos lógicos que buscam seu fundamento de validade na coerência interna e na reunião de um consenso geral sobre o tema. Nesse contexto, percebe-se que, há muito, a Polícia Judiciária e, consequentemente, a atuação jurídica do Delegado de Polícia tem recebido pouca atenção da academia. De fato, muitos dos conceitos hoje repetidos como “verdades” não representam a melhor compreensão sobre uma série de temas afetos à atuação da Polícia Judiciária. Isto porque se fundam numa leitura estanque dos institutos jurídicos em detrimento de uma compreensão holística do sistema.
                     

A teoria do pensamento complexo nos indica uma nova forma de compreensão da realidade. Trata-se de abandonar o modelo positivista que se erigiu a partir de um pensamento seletivo, descritivo e individualizante. O positivismo pensava ser possível a dissecação do objeto de estudo para, a partir da análise das partes, compreender o todo.Contudo, o pensamento complexo nos revela justamente o contrário, ou seja, as coisas só podem ser compreendidas dentro de sua organicidade. Vale dizer: a análise das partes isoladamente não representa a verdade do todo. No pensamento da Gestalt: o todo é maior do que a soma das partes.
                       

Conforme afirmam Dezan e Krohling (2017), com o paradigma da complexidade intenciona-se ao afastamento do método da hipersimplificação epistemológica, haurida, para utilizar a expressão de Morin, de uma “patologia do saber”, “inteligência cega”. Objetiva-se uma unidade complexa do objeto de estudo e de seus métodos de abordagem.
                       

Transpondo esse conceito epistemiológico às Ciências Jurídicas, é importante ter em mente que o Direito é um sistema orgânico que busca uma unidade harmônica. A sua repartição em “ramos” é apenas um recurso pedagógico para facilitar o ensino. Todavia, na sua aplicação, não pode haver o isolamento de seus conceitos. Sendo assim, há um claro imbricamento dinâmico numa constante mútua influência entre Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Administrativo. São todas faces da mesma moeda. É nessa dinâmica dialética que a própria identidade de cada uma dessas faces se cria e reformula. Essa concepção recebeu do jurista alemão Erik Jayme o nome de Teoria do Diálogo das Fontes. Claudia Lima Marques (2009) ensina os fundamentos da teoria:

É o chamado ‘diálogo das fontes’ (di + a = dois ou mais; logos = lógica ou modo de pensar), expressão criada por Erik Jayme, em seu curso de Haia (Jayme, Recueil des Cours, 251, p. 259), significando a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais (como o CDC, a lei de seguro-saúde) e gerais (como o CC/2002), com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais. Erik Jayme, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensinava que, em face do atual ‘pluralismo pós-moderno’ de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo (Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, II, p. 60 e 251 e ss.). O uso da expressão do mestre, ‘diálogo das fontes’, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada ‘coerência derivada ou restaurada’ (cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’ ou a ‘não coerência’
                       

É nessa visão moderna do Direito que surge a ideia de Juridicidade. Isto é, uma atuação não só conforme a Lei, mas conforme o Direito (aqui entendido como um sistema complexo interconectado formado pela Lei, jurisprudência, costumes e princípios).
                       

Em todo esse contexto, a Juridicidade abre as portas para uma maior amplitude de atuação da Autoridade Policial que deixa de ser um operador robotizado, circunscrito à clássica concepção de legalidade estrita. Nesse novo momento, passa-se a exigir da Autoridade Policial um olhar mais amplo das suas funções, alargando seu âmbito de atuação e poder decisório. A legitimação de suas manifestações passa a encontrar fundamento num discurso argumentativo mais extenso e não só na interpretação literal de dispositivos legais específicos (até mesmo porque para isso bastava substituir os aplicadores do Direito por computadores). A Juridicidade, portanto, é o início da recriação de um novo Delegado de Polícia e de uma nova atuação da Polícia Judiciária.
                       

Nesse novo panorama, é importante que se compreenda o caráter bifronte (hibridismo entre Direito Administrativo e Direito Processual Penal) da atuação da Autoridade Policial, primeiramente desconstruindo a ideia de que o inquérito policial seria um procedimento meramente informativo e dispensável. Como se sabe, processo é todo conjunto de atos desenvolvidos em um encadeamento lógico e destinado a determinado fim. Ora, é justamente essa a natureza do inquérito policial – IP, pois ele é constituído por uma série de diligências que tem por finalidade o esclarecimento de uma hipótese criminal. Ao final da apuração, a Autoridade Policial concretiza sua convicção-técnico jurídica pelo ato jurídico do indiciamento ou mesmo pelo não indiciamento. Sendo assim, a conclusão só pode ser uma: inquérito policial é processo. Em verdade, o conceito de “processo” na moderna persecução penal pode ser subdividido em duas amplitudes: o “processo lato senso”que vai desde o inquérito policial até a o trânsito em julgado e o “processo stricto senso”que abarcaria somente a fase judicial.
                       

Essa nova constatação teórica encontra fundamento nas estatísticas que apontam, há muito, a indispensabilidade do IP para oferecimento da denúncia. Em verdade, a doutrina processual penal mais antiga e a ideia de que o IP seria uma peça meramente informativa e, portanto, até mesmo dispensável, não possui qualquer lastro empírico[1]e sequer se mostram coerentes com os preceitos de um modelo constitucional garantista.
                       

O inquérito policial, enquanto primeiro filtro da justa-causa e obstáculo ao indevido strepitus processus, é uma peça indispensável. Num modelo constitucional garantista, o IP se mostra, assim, como o primeiro muro de contenção do abuso do poder de império. Afinal, sem a justa-causa estabelecida pelas provas colhidas na investigação policial, não há que se falar em ação penal. Por isso mesmo, a doutrina sustenta que o processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível e monstruosa que abala os postulados garantistas (Lopes, 2013). Indo mais além, quanto à imprescindibilidade do inquérito policial, Lopes (2013) preceitua:

Não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)… Sem falar que também serve para condenar pessoas… Ou não? Na medida em que o artigo 155 do CPP autoriza (gostemos ou não) que o juiz se baseie também no inquérito para condenar (não pode é ser “exclusivamente”… O que representa uma fraude conceitual evidente), é claro que ele acaba adquirindo valor probatório. Sem falar no tribunal do júri, em que (absurdamente) os jurados decidem por “íntima e imotivada” convicção. Leia-se: podem condenar exclusivamente com base no inquérito (e até fora dele e do processo…). Alguém vai seguir com o discurso de peça meramente informativa à luz dessa realidade?
                       

Percebe-se, nesse contexto, que a Polícia Judiciária é uma instituição sui generis, pois possui uma atuação bipartida. Simultaneamente trabalha em dois mundos (executivo e judiciário). De fato, maneja o Direito Administrativo, contudo os resultados de sua atuação se projetam no processo penal. Compreendendo-se o inquérito policial como fase do processo e percebendo que é justamente nesse momento onde significativa parcela de direitos e garantias fundamentais são objeto de flexibilização, conclui-se que os atos decisórios da Autoridade Policial tomam nova envergadura.
                       

Como forma de balizar a atuação de cada autoridade envolvida na persecução penal (Delegado, Promotor e Juiz), surge também a ideia de alteridade, no sentido de reconhecer a existência do outro, respeitando o seu âmbito de atuação. A existência do “eu” só se torna possível a partir do reconhecimento do “outro”. Como afirma Bubber (2001) de forma alguma o outro (Tu) deve se tornar um objeto (Isso). Nessa construção dialógica da identidade trabalha-se a concepção de funções e delimitação de atribuições no sistema de persecução penal. É essa ideia de alteridade (reconhecimento do outro como pré-requisito para existência do eu) que estabelece firmes divisões entre as funções de investigar, acusar e julgar, impedindo a ingerência de um órgão sobre o outro.
                       

Assim como é impensável um Delegado determinar a um Promotor que denuncie alguém; assim como é impensável que um Promotor determine ao Juiz que condene alguém; no mesmo sentido, também deveria ser impensável que o Promotor ou Juiz se imiscuam no poder de decisório do Delegado, durante a fase policial.
                       

Sobre essa necessidade da alteridade como meio de balizamemto das atribuições na persecução penal, o Ministro Luís Roberto Barroso, em recentíssima decisão (IP 4621 / PF) foi muito preciso nessa definição ao afirmar:

O indiciamento, a denúncia e a sentença representam, respectivamente, atos de competência privativa do Delegado de Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, sendo vedada a interferência recíproca nas atribuições alheias, sob pena de subversão do modelo acusatório, baseado na separação entre as funções de investigar, acusar e julgar.
                    

Esse entendimento exarado pelo STF vem reforçar aquilo que, há muito, a moderna doutrina do Direito de Polícia Judiciária constatou. Deve haver uma firme separação das funções investigativas, acusatória e julgadora. Nesse modelo, as autoridades com poder decisório (Delegado de Polícia, Promotor e Juiz) dentro de cada fase devem se respeitar mutuamente, evitando a criação de uma hierarquia informal e, portanto, uma distorção do sistema acusatório pela reconcentração indireta de poder.
          

Percebe-se, em conclusão, que o pensamento complexo (epistemologia do todo) e a ideia de alteridade (reconhecimento da individualidade das partes) não são excludentes, pois permitem a criação de correlações entre o todo e as partes, no sentido de construir-se um modelo de persecução penal funcionalmente orgânico no todo, mas com uma distribuição de funções bem delimitadas em suas partes.


REFERÊNCIAS

DEZAN, Sandro Lúcio. KROHLING, Aloísio. O Diálogo de Normas de Direito Administrativo Sancionador sob as Ópticas do Paradigma da Complexidade e da Ética Da Alteridade. Revista da AGU , 2000. v. 16, p. 341-360, 2000.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Gestalt

MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Gestalt

https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI171735,101048Da+teoria+do+dialogo+das+fontes

https://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial-indispensavel-persecucao-penal.

LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. XXI.    

LOPES JÚNIOR, Aury. Nulidades e ilicitudes do inquérito não contaminam o processo penal. Dez. 2014.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.  

BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles

Von Zuben. 10. ed. São Paulo: Centauro, 2001. 170 p.

CARVALHO, Paulo Henrique da Silva. A Importância Do Inquérito Policial No

Sistema Processual Penal. Direito Positivo, São Paulo, 2006. Disponível

em:<http://www.direitopositivo.com.br/modules.php?name=Artigos&file=display

&jid=454>. Acesso em: 10 de setembro. 2014

 

[1]Tal assertiva pode ser comprovada através de pesquisas junto a qualquer Comarca do nosso extenso território. Para tal, basta a verificação de que a denúncia oferecida pelo representante do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal publica incondicionada, inicia-se da seguinte maneira: “Consta do incluso Inquérito Policial que no dia…, por volta das …., fulano de tal”, seguida da exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. (Carvalho, 2006).

 

Sobre o autor

Erick da Rocha Spiegel Sallum
Delegado de Polícia Civil do DF, ex-agente de polícia federal classe especial, pós-graduando em Direito de Polícia Judiciária na ANP/PF.

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