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O delito de infanticídio e o estado puerperal

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO

O delito de infanticídio e o estado puerperal

 

JURÍDICO

 

Por José Carrazzoni Jr.

O presente ensaio surgiu na necessidade de fundamentação, a partir do enfrentamento da Questão 03 – frise-se extemporâneo – no bojo da prova discursiva de Medicina Legal, do IX Concurso Público para Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, cujo enunciado originário era pautado pelo seguinte postulado: “O crime de infanticídio se caracteriza, dentre outros fatores, pela presença do chamado ‘estado puerperal’. Diferencie puerpério e estado puerperal.”

 

Em nosso ordenamento o crime de infanticídio, está situado no Capítulo (I) Dos crimes contra a vida, e, é descrito no Artigo 123 do Código Penal, contendo a seguinte redação: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Assemelha-se ao crime de homicídio, porém recebe especial tratamento em virtude da associação à elementos fisiopsicológicos, em causa, o estado puerperal.[1] Em verdade, ocorre “que o estado puerperal, por vezes, pode acarretar distúrbios psíquicos na genitora, os quais diminuem a sua capacidade de entendimento ou auto-inibição, levando a eliminar a vida do infante”.[2]

À guisa de preliminares, é interessante observar a anotação de Mendes da Costa, quando refere que a “palavra infanticídio originou-se da fusão de dois radicais latinos: infans (criança) e caedere (matar), podendo ser definida, lato sensu, como dar morte a uma criança. Entretanto, para o Direito brasileiro, infanticídio não é a morte de uma criança qualquer. Para se dar uma definição de infanticídio compatível com o ordenamento jurídico pátrio (stricto sensu), é necessário que se leve em consideração cada elemento formador do tipo contido no art. 123 do CP brasileiro.”[3]

 

Valendo-se do Direito Comparado, sem maiores dificuldades, se encontra nos demais ordenamentos a tipificação da conduta em análise, como exemplo cite-se o Código Penal do Chile.[4] No mesmo sentido o Código Penal de Portugal. [5]

 

Mister é ressaltar, os elementos que cumulativamente caracterizam o crime de infanticídio: (a) matar o próprio filho; (b) durante o parto ou logo após; e, (c) estar sob influência do estado puerperal. Para o preenchimento do tipo penal, esses elementos devem obrigatoriamente estar presentes. Do que se observa, o crime em foco tutela a vida humana, assim como o crime de homicídio, distinguido-se pela preocupação com o indivíduo desde o nascimento, através da proteção extrauterina. Nesse ponto, é importante atentar-se para o que prescreve Delmanto acerca da conformidade: “Se a conduta ocorre antes do nascimento, o crime será de aborto (CP, arts. 124-128). Se ausente o elemento fisiopatológico ou temporal, poderá haver homicídio (CP, art. 121).”[6]

 

A respeito do bem jurídico tutelado, Bitencourt é magistral ao afirmar:

 

O bem jurídico do crime de infanticídio, a exemplo do homicídio, é a vida humana. Protege-se aqui a vontade do nascente e do recém-nascido. Comparativamente ao crime de homicídio apresentam-se duas particularidades: uma em relação aos sujeitos do crime e outra em relação ao período da vida a que se destina essa proteção legal.”[7]

 

O infanticídio se afigura da seguinte forma: (i) é crime próprio quanto ao sujeito [8]; (ii) doloso; (iii) de dano; (iv) material; (v) de execução de forma livre; (vi) comissivo ou omissivo; e, (vii) instantâneo. Ainda podemos considerar que se consuma com a morte do nascituro, admitindo-se, ainda, a forma tentada. [9]

 

Adentrando mais precisamente no cerne da presente resenha, pode-se, em singelas palavras, definir o puerpério como sendo o período que se inicia no parto, através das transformações fisiológicas (dequitação placentária), e que se estende até o retorno à completa normalidade dos órgãos genitais da parturiente, durando aproximadamente seis semanas [10]. Em outras palavras, significa “o conjunto dos processos (mecânicos, fisiológicos e psicológicos) através dos quais o feto a termo ou viável separa-se do organismo materno a passa ao mundo exterior”.[11] Para Odon Ramos Maranhão, “Puerpério é o período que se estende do fim do parto à volta do organismo às condições pré-gravídicas.”[12]

 

Sobre o estado puerperal[13], Odon Ramos Maranhão coloca que o “chamado estado puerperal constitui uma situação sui generis, pois não se trata de uma alienação, nem de uma semi-alienação. Mas também não se pode dizer que seja uma situação normal.”[14]

 

Como lembra Roberson Guimarães “É fato biológico bem estabelecido que a parturição desencadeia uma súbita queda em níveis hormonais e alterações em bioquímicas no sistema nervoso central. A disfunção ocorreria no eixo Hipotálamo-Hipófise-Ovariano, e promoveria estímulos psíquicos com subseqüente alteração emocional. Em situações especiais, como nas gestações conduzidas em segredo, não assistidas e com parto em condições extremas, uma resposta típica de transtorno dissociativo da personalidade e com desintegração temporária do ego poderiam ocorrer.”[15]

 

Qualquer definição que se queira dar para o “estado puerperal”, deve levar em consideração a observação de Delton Croce:

 

Modernamente, o entendimento da Medicina Legal pátria admite por influência do estado puerperal o que, via de regra, pode ocorrer com gestantes aparentemente normais, física e mentalmente, que, estressadas pelos desajustamentos sociais, dificuldades da vida conjugal e econômica, (…) enfim, uma série de fatores situacionais constituídos pelas perturbações psicológicas da adaptação à natalidade, determinam enfraquecimento da vontade, obnubilação da consciência, podendo os sofrimentos físicos e morais acarretados pela délivrance leva-lás a ocisar o próprio filho, durante ou logo após a mesma.”[16]

 

Portando, seguindo na postulação originária, o caminho para se responder a questão, passaria pela síntese de que, enquanto o “puerpério é o período de tempo entre a dequitação placentária e o retorno do organismo materno às condições pré-gravídicas” [17], o estado puerperal “seria uma alteração temporária em mulher previamente sã, com colapso do senso moral e diminuição da capacidade de entendimento seguida de liberação de instintos, culminando com a agressão ao próprio filho.”[18]

 

Referências:

 

[1] DELMANTO, Celso [et al]. Código penal comentado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 370.

 

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. Vol. 2. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 97.

 

[3] COSTA, Pedro Ivo Augusto Salgado Mendes da. A problemática do infanticídio enquanto tipo autônomo. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1508, 18 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10301>. Acesso em: 17 nov. 2008.

 

[4] § 2. Del infanticídio. Art. 394 Cometen infanticidio el padre, la madre o los demás ascendientes legítimos o ilegítimos que dentro de las cuarenta y ocho horas después del parto, matan al hijo o descendiente, y serán penados con presidio mayor en sus grados mínimo a medio. Disponível em: http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/legislacion/cl/cpchindx.html

 

[5] Artigo 136º. Infanticídio. A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos. Disponível em: http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/legislacion/pt/CPPortugal.pdf

 

[6] DELMANTO, Celso [et al]. op. cit, p. 371.

 

[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Vol. 2. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 138.

 

[8] Compartilham dessa posição: Nélson Hungria, Heleno Cláudio Fragoso, Aníbal Bruno, entre outros. Por outro lado, sustentam a comunicabilidade da influência do estado puerperal: Roberto Lyra, Magalhães Noronha, Basileu Garcia, e outros.

 

[9] DELMANTO, Celso [et al]. op. cit, p. 370.

 

[10] GUIMARÃES, Roberson. O crime de infanticídio e a perícia médico-legal. Uma análise crítica. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4066>. Acesso em: 01 dez. 2008.

 

[11] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Apud. BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit, p. 142.

 

[12] MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 181.

 

[13] A respeito ver: COSTA, Pedro Ivo Augusto Salgado Mendes da. A problemática do infanticídio enquanto tipo autônomo . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1508, 18 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10301>. Acesso em: 01 dez. 2008. “O tal estado puerperal exigido no art. 123 do Código Penal para a caracterização do infanticídio nunca teve sua existência comprovada. Sabe-se que existem doenças psicológicas que se manifestam no período gravídico e pós-gravídico, entretanto, tais doenças não podem ser confundidas com a “influência do estado puerperal”, que é diferente das psicoses puerperais, da depressão pós-parto, entre outras doenças capazes de acometer as mulheres durante o puerpério.”

 

[14] MARANHÃO, Odon Ramos. Idem, p. 202.

 

[15] GUIMARÃES, Roberson. op. cit.

 

[16] CROCE, Delton; JR. CROCE, Delton. Manual de medicina legal. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 470/471.

 

[17] GUIMARÃES, Roberson. op. cit.

 

[18] Idem, ibidem.

 

Sobre o autor


José Carrazzoni Jr. é advogado no RS e colunista da Revista da Defesa Social e Portal Nacional dos Delegados

 

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