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O delegado de polícia como fiscal da compatibilidade constitucional e convencional de leis e atos normativos

por Editoria Delegados

Por Pedro Henrique Palharini Bastos

Por Pedro Henrique Palharini Bastos

I – Introdução

O que se pretende com este breve artigo é tecer argumentos favoráveis à possibilidade de o delegado de polícia, a partir de seu juízo técnico, deixar de aplicar lei ou ato normativo que entenda como incompatível com a Constituição ou com os tratados internacionais de direitos humanos. Obviamente, não há nenhuma pretensão de exaurimento do tema, servindo este texto apenas como mote para a promoção do debate.

Sobre este mesmo tema, abordando mais detalhadamente o controle de convencionalidade e fazendo uma análise mais aprofundada, HENRIQUE HOFFMANN e RUCHESTER MARREIROS BARBOSA já defenderam essa possibilidade:

“Nessa esteira, reconhecer o dever de detectar a inconvencionalidade das leis por uma carreira jurídica como a do delegado de polícia, que lida diariamente com mitigação de direitos dos cidadãos, nada mais é do que seguir os ditames interpretativos da Corte IDH e da melhor doutrina internacionalista (https://www.conjur.com.br/2017-nov-07/academia-policia-delegado-aferir-convencionalidade-leis)”

O propósito deste texto, como dito, não é exaurir o assunto, mas, sim, apresentá-lo, reunindo e acrescentando argumentos favoráveis ao reconhecimento deste dever-poder que todo delegado de polícia deve se desincumbir, expandido-o, também, para a análise da compatibilidade constitucional das leis e atos normativos.

II – Natureza jurídica da função do delegado de polícia; consequências

A ordem jurídica, como se sabe, consiste em um sistema hierarquizado, cujo ápice e fonte conformadora é a Constituição. Abaixo dela, com status supralegal, temos os tratados de direitos humanos não internalizados na forma do art. 5º, §3º, da Constituição (adotada aqui a visão consagrada no Supremo Tribunal Federal, sem desconhecer os entendimentos pela estatura constitucional destes tratados). Um sistema, para sobreviver, demanda coerência, demanda compatibilidade de todas as suas partes. Sobre a coerência do sistema e os mecanismos de sua preservação, é importante mencionarmos as palavras de BARROSO:

O ordenamento jurídico é um sistema. Um sistema pressupõe ordem e unidade, devendo suas partes conviver de maneira harmoniosa. A quebra dessa harmonia deverá deflagrar mecanismos de correção destinados a restabelecê-la. O controle de constitucionalidade é um desses mecanismos, provavelmente o mais importante, consistindo na verificação de compatibilidade entre uma lei ou qualquer ato normativo infraconstitucional e a Constituição. Caracterizado o contraste, o sistema provê um conjunto de medidas que visam a sua superação, restaurando a unidade ameaçada” (BARROSO, Luis Roberto; O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro; Editora Saraiva, 2016).

Como se vê, a harmonia do sistema deve ser preservada a partir de mecanismos, dentre os quais estão o controle judicial de constitucionalidade e o controle de convencionalidade. Mas, como visto, esses mecanismos não são as únicas formas de autopreservação do sistema.

O art. 2º da Lei nº 12.830/2013 estabelece: “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado“. Afirmada a natureza jurídica da atividade do delegado de polícia, é preciso que saibamos a exata dimensão dessa característica no que toca à rotina prática deste operador do Direito.

É sabido que, em seu dia a dia, cabe ao delegado a aplicação das mais diversas legislações, devendo sempre a sua atuação ser pautada pela observância da ordem jurídica. E se assim o é, é preciso relembrarmos o que já foi dito aqui e que é óbvio: o centro gravitacional da ordem jurídica é a Constituição. Além dela e também com especial força conformadora da legislação ordinária, temos os tratados de direitos humanos. Logo, é necessário concluirmos que o delegado deve aplicar não só a legislação infraconstitucional, mas a própria Constituição e os tratados mencionados, também zelando pela coerência do sistema jurídico.

A coerência do sistema jurídico demanda, como visto, que se preserve a supremacia da Constituição e que se combata os atos inferiores que lhe contrariem. Para este mesmo fim (a harmonia do sistema), também se revela indispensável que a superioridade dos tratados de direitos humanos seja protegida ante a legislação ordinária que lhe desafie. Dessa forma, deve-se concluir que, no desempenho de seu mister, o delegado de polícia não pode fazer incidir atos que se contrapõem à Constituição ou aos tratados de direitos humanos. Assim, ante um ato que repute inconstitucional (ou não recepcionado) ou inconvencional, é dever do delegado negar-lhe aplicação.

Por óbvio, o que se está a dizer não é que o delegado possa pronunciar a inconstitucionalidade (ou a não recepção) ou a inconvencionalidade de um ato normativo, de modo a fazer recair sobre ele todas as consequências disso (em suma, no caso da inconstitucionalidade, o seu expurgo do ordenamento jurídico) – isso só é possível por parte do Poder Judiciário (no caso da inconstitucionalidade) e dos Tribunais Internacionais (no caso dos tratados). O que o delegado fará é apenas negar a aplicação do dispositivo legal no caso concreto, permanecendo o ato válido até posterior pronunciamento desta mácula no foro adequado.

Por outro lado, é preciso enfrentar o fato de que o delegado de polícia está na estrutura do Poder Executivo, que possui um vínculo reforçado ao princípio da legalidade (art. 37 da Constituição), especialmente se considerarmos a máxima de que ao Poder Público somente é dado agir com a autorização legal. Como se sabe, a partir disso, se questiona até mesmo a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo poder negar aplicação à lei que considere inconstitucional – em que pese a postura majoritária, tanto em sede doutrinária como jurisprudencial, ainda seja pela aceitação dessa hipótese.

 Tais circunstâncias representam um óbice apenas aparente à conclusão exposta neste artigo. Em primeiro lugar, temos as diversas releituras que o princípio da legalidade vem sofrendo na doutrina administrativista, a ponto de ganhar até mesmo nova nomenclatura: juridicidade. Em suma, o que a doutrina procura demonstrar é que o princípio impõe a obediência não só às leis (stricto sensu), mas sim a todo o ordenamento jurídico (cujo ápice, lembremos, é a Constituição). Vejamos:

Desta forma, a legalidade não é o único parâmetro da ação estatal que deve se conformar às demais normas consagradas no ordenamento jurídico. A legalidade encontra-se inserida no denominado princípio da juridicidade que exige a submissão da atuação administrativa à lei e ao Direito (art. 2º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/1999). Em vez de simples adequação da atuação administrativa a uma lei específica, exige-se a compatibilidade dessa atuação com o chamado ‘bloco de legalidade’.

O princípio da juridicidade confere maior importância ao Direito como um todo, daí derivando a obrigação de se respeitar, inclusive, a noção de legitimidade do Direito. A atuação da Administração Pública deve nortear-se pela efetividade da Constituição e deve pautar-se pelos parâmetros da legalidade e da legitimidade, intrínsecos ao Estado Democrático de Direito” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; Curso de Direito Administrativo; Editora Método, 2020).

 De tal forma, aplicar uma lei inconstitucional (ou não recepcionada) é negar a Constituição; aplicar uma lei inconvencional é subverter a hierarquia do sistema, negando normas superiores. Ao fim e ao cabo, sob o pretexto de se respeitar a legalidade (aplicar a lei em sentido estrito), acaba-se por feri-la de maneira ainda mais grave (descumprindo normas superiores e a própria lei fundamental do Estado).

E que não se oponha aqui o argumento de que, inexistindo um pronunciamento judicial anterior da inconstitucionalidade (ou não recepção) ou da inconvencionalidade e de suas consequências, o dispositivo legal deve ser aplicado a qualquer custo até a manifestação definitiva do Poder Judiciário ou dos Tribunais Internacionais. Isso porque, consagrada como de natureza jurídica a atividade do delegado de polícia, é seu dever-poder, a partir de uma análise técnica, fazer o contraponto entre ato inferior e normas superiores, no caso, os tratados de direitos humanos e a Constituição. Além disso, estamos todos sob a égide da Constituição e dos tratados, e a eles devemos igual respeito. Assim, considerar que um dispositivo inconstitucional (ou não recepcionado) ou inconvencional deva ser aplicado, de maneira acrítica, até o Poder Judiciário ou os Tribunais Internacionais manifestarem-se definitivamente sobre tal circunstância (o que, em muitas situações, leva um tempo considerável) representa, por vias transversas, impor uma fragilidade maior no vínculo do Poder Executivo com estas normas, elevando os juízes (nacionais ou não) como tutores exclusivos da supremacia constitucional e da superioridade dos tratados.

Pela importância de tal ato (negar aplicação a uma lei), obviamente a sua prática impõe ao delegado um ônus argumentativo fortíssimo, em prestígio à segurança jurídica e à presunção de constitucionalidade das leis. O peso desse ônus variará conforme algumas circunstâncias, como, por exemplo, a existência de precedentes judiciais, em controle difuso, reconhecendo a inconstitucionalidade alegada; ou a existência de manifestações de órgãos internacionais reconhecendo a inconvencionalidade que se busca afirmar. Dessa forma, quanto maior o ineditismo da tese alegada para se reconhecer a inconstitucionalidade ou a inconvencionalidade, maior será o ônus argumentativo; por outro lado, quanto mais precedentes judiciais e internacionais existirem no mesmo sentido, o ônus será menor.

Diante desses motivos brevemente expostos, conclui-se que a Lei 12.830/2013, ao consagrar a natureza jurídica das atividades desempenhadas pelo delegado de polícia, já o habilita a realizar o controle de leis ou atos normativos em face dos tratados de direitos humanos e da Constituição, sendo seu dever-poder não aplicar as normas que lhes contrariem. Em sede doutrinária, essa questão já é bem esclarecida por MAZZUOLI:

tanto a Polícia Federal quanto a Polícia Civil têm o dever de aplicar as garantias previstas nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil no exercício de suas funções, da mesma forma que também devem destinar aos cidadãos (investigados, detidos etc.) todas as garantias estabelecidas pela Constituição Federal” (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos, 4. ed. São Paulo: GEN/Método, 2017, p. 464/469).

É importante destacar, entretanto, que o delegado não disporá de um “cheque em branco”. Ele está sempre subordinado ao controle dos órgãos atuantes na persecução penal e, na hipótese aqui descrita (negativa de aplicação de uma lei), é seu dever, por prudência, o envio da situação ao Poder Judiciário para conhecimento. Logo, eventual ação temerária sua neste âmbito o sujeitará a consequências jurídicas graves. O que não se pode, entretanto, é permanecer encarando a atividade do delegado de polícia com os olhos do passado – a consagração legal da natureza jurídica e o seu constante reforço somente contribuem para a constitucionalização da investigação criminal.

 Assim, da mesma forma que o juiz, na sua esfera de competência, pode avaliar a constitucionalidade (ou a recepção) ou a convencionalidade de uma lei e, em caso de juízo negativo, deixar de aplicá-la (controle difuso); o delegado de polícia também pode e deve fazer o mesmo no seu âmbito de atribuição, nas decisões que toma. O que difere, por óbvio, é que as consequências definitivas desta incompatibilidade somente ocorrerão a partir do pronunciamento judicial em abstrato – no caso da inconstitucionalidade – ou de decisão dos Tribunais Internacionais – quanto à inconvencionalidade.

Apesar de, no nosso entender, a possibilidade de o delegado fazer o controle difuso de constitucionalidade e de convencionalidade já vir estampada na consagração da natureza jurídica de sua atividade, seria salutar uma disposição legal expressa, detalhando-se um procedimento. Nesse sentido, deve ser comemorado o Projeto de Lei nº 2622, de 2019, de iniciativa do Senador Styvenson Valentim e em trâmite no Senado Federal. Esse projeto visa acrescentar o §7º no art. 2º da Lei 12.830/2013, nos seguintes termos:

§ 7º Compete ao delegado de polícia, por ato fundamentado, realizar o controle difuso de constitucionalidade e de convencionalidade no âmbito de suas atribuições, submetendo o ato ao juiz competente em até 48 (quarenta e oito) horas”.

Embora não pareça, a temática aqui levantada possui sua relevância prática, haja vista, por exemplo, a vigência de algumas contravenções penais de compatibilidade constitucional duvidosa (art. 59. Entregar-se alguem habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita), algumas cuja não recepção já foi até mesmo proclamada pelo Supremo Tribunal Federal (art. 25 da Lei das Contravenções – RE 583523).

III – Conclusão

Como dito inicialmente, obviamente este texto não possui pretensão alguma de exaurir o tema, mas, sim, o propósito de apresentar e instigar o debate. Tal debate possui relevância, haja vista que a seara penal, pela gravidade de suas consequências, é a que mais tem aptidão de gerar eventuais lesões a direitos fundamentais (a partir de tipificações incompatíveis com a Constituição e com os tratados de direitos humanos); enquanto isso, o Delegado de Polícia pode e deve fazer valer o seu papel de primeiro garantidor da legalidade e da justiça (voto do Ministro Celso de Mello no HC 84548/SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio). A nosso ver, é a conclusão que melhor promove a força normativa da Constituição.

Sobre o autor

Pedro Henrique Palharini Bastos é delegado de Polícia Civil do Estado de Rondônia.

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