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Militarização da segurança pública

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO
‘Militarização da segurança pública’, por Cristiano Augusto

JURÍDICO

Por Cristiano Augusto Quintas dos Santos

{loadposition adsensenoticia}Domingo, 10 horas da manhã, documentário sobre Racismo Policial: “Quem é que policia a Polícia?”, era a pergunta lançada nos versos de uma música de rap, e acompanhada por atabaques africanos. Como em um vídeo-clipe, a música apresentava cenas reais de atuação da Polícia Militar, acusada, naquele documentário, de ser violenta e racista. Vários tapes mostravam a truculência de militares que agrediam e torturavam, gratuitamente, moradores nas favelas e menores de rua. Na fala de uma socióloga, que analisava a situação de racismo policial no Rio de Janeiro, repetia ela uma frase que dizia ter ouvido de um policial militar: “no Rio de Janeiro policial não é preto, nem branco; policial é azul, que é a cor da farda da Polícia Militar”. Concluiu a socióloga que, ao incorporar a cor da farda da corporação, encarnava também a tradição racista e elitista da instituição. Um outro antropólogo denunciava que a Polícia Militar subia nos morros, fazia as suas detenções e, para descer os pardos e negros apreendidos, amarravam uma corda em seus pescoços, o que para os Policiais Militares era totalmente natural, na medida em que eram antigas práticas dos capitães-do-mato, da época da escravatura, como se pode ver em imagens e quadros daqueles tempos.

Nos mais diversos jornais ouvimos e lemos relatos de violência policial, em sua grande maioria praticada por policiais militares (e quem duvidar, basta fazer uma pequena pesquisa no Google ou no Youtube). Nas delegacias, principalmente naquelas onde existe carceragem, o relato dos presos é um só: nas revistas às celas, a Polícia Militar bate, e bate de graça, e ainda tentam oficializar a violência gratuita, aplicando, sem dó, o Auto de Resistência, e elaborando Termos Circunstanciados de Desacato e Desobediência. Um simples olhar sobre o suposto agressor revela a diferença de armas: de um lado, um policial militar forte, fardado, arma e tonfa na cinta, coturno lustrado e ameaçador; de outro lado, o sujeito magro, subnutrido, chinelos de dedo ou descalço, sem camisa, pernas magras, perdidas num calção largo.

Já se tentou explicar o problema da violência aplicada pela Polícia Militar. Dizer que são treinados para a guerra e não para o trato com os civis tem lógica, mas não é a única resposta. A resposta é que a instituição, em si, é violenta. Estigmatiza e faz estigmatizar. Exige a qualquer custo a hierarquia, e tal exigência contamina até mesmo o praça: como pode um meliante questionar o trabalho da Polícia? Como pode um elemento olhar na mesma altura dos meus olhos? E a continência? E tome-lhe bordoadas, sopapos, tonfadas e tapas.

Quando se começou a falar no Brasil, em uma dessas discussões que não levaram nem nunca levarão a nada, em unificação das Polícias, imaginou-se um cenário em que a Polícia Militar iria gradualmente se extinguir, pois, argumentava-se, em um Estado Democrático de Direito, não havia mais lugar para a militarização da Polícia; lugar de militar é no quartel, é na defesa contra o inimigo, e não no atendimento à população, na relação com os civis. Muito se falou, e pouco se fez. Aos poucos, a idéia foi sendo esquecida, admitindo-se, quando muito, uma integração entre as Polícias, mas jamais a extinção da “Orgulhosa”.

E, daquela idéia inicial de unificação e extinção da Polícia Militar, o contrário ocorreu: passou a Polícia Militar a elaborar Termos Circunstanciados, usurpando a expressão “Autoridade Policial” da Lei 9.099/95; juízes e promotores passaram a “autorizar” pela Polícia Militar o cumprimento de Mandados de Busca, entregando-lhes o papel de “Polícia Judiciária”, bem como a realizar (pasmem!) Interceptações Telefônicas, quando o seu papel constitucional é o da realização da polícia ostensiva, preventiva, e só. E tudo com a complacência (e estímulo) do Poder Judiciário, do Ministério Público e de demais autoridades.

Começou, salvo engano, no Estado de São Paulo. Ali, por meio de uma Recomendação, ou Resolução, ou alguma forma “legislativa” que não passa de mera portaria (e, portanto, só tem valor da porta para dentro, como dizia um mestre), passaram os Policiais Militares a realizar o chamado Termo Circunstanciado. O principal argumento para tal permissão: são infrações de menor potencial ofensivo, às quais não se impõem prisão em flagrante e, assim, pode-se dar valor ampliativo à expressão “Autoridade Policial” mencionada na Lei 9.099/95, para compreender, como Autoridade Policial, o soldado policial militar, que está em patrulhamento nas ruas e para os quais se exige como requisito em seu concurso de ingresso apenas ter terminado o segundo grau. Como delegado de polícia já há quase uma década, e como professor universitário especialista em Direito Penal, reconheço a grande dificuldade que é a tipificação das condutas. Imagine, então, um policial militar recém-ingresso, que, do alto dos seus dezoito anos (de idade, não de profissão) e com os conhecimentos que lhe foram transmitidos no segundo grau (que não tem, em suas grades curriculares, sequer noções básicas de Direito Penal), recebeu a difícil tarefa de tipificar condutas, sabendo-se que, a partir de sua tipificação, seguirão estas ou aquelas consequencias.

Argumentar-se-á que a tipificação pode ser controlada a posteriori, quando do encaminhamento do Termo Circunstanciado ao Juizado Especial Criminal. Mas será que jamais se pensou que a inadequada tipificação levará a inadequadas respostas processuais, perdendo-se aquele raro e importante momento do calor dos fatos, onde, na oitiva dos envolvidos, já restaria estabelecida a autoria? Sem contar que, dependendo da tipificação, perder-se-á a oportunidade da requisição e realização de provas periciais indispensáveis para a caracterização daqueloutro tipo penal. Prova pericial que, se não for realizada naquele momento, comprometerá toda a investigação e, via reflexa, todo o trabalho policial.

O policial militar, que não aprendeu a investigar porque não é esta a sua missão, não compreende a gravidade desta perda e, assim, com ela não se preocupa. Cuida apenas de preencher um formulário, para posterior digitação. Ao ser constatado o erro pelo juiz do Juizado Especial, daí já é tarde, perdeu-se a oportunidade. E o pior: naqueles “autos” de Termo Circunstanciado em que o Juiz e o Promotor verificam que não se trata de infração de menor potencial ofensivo, ou ainda, que precisam de alguma complementação, como a oitiva de outras pessoas (que estavam no local no dia dos fatos, mas não foram ouvidas porque, afinal, se tratava de um Termo Circunstanciado) são remetidos para a verdadeira Polícia Judiciária, que ficará encarregada de terminar aquele serviço mal iniciado. Então, aí se percebe o grande equívoco de aquelas pessoas não terem sido todas ouvidas quando da prática criminosa, o grande erro de não se ter requisitado esta ou aquela prova pericial e a perda da grande oportunidade de se chegar à verdade real. Tudo em nome do comodismo, que resolveram renomear de “celeridade”, tudo em nome do “dar um jeito”, da improvisação em algo seríssimo, que é a apuração do delito. E que não se culpe o policial militar indevidamente elevado à condição de “autoridade policial”, pois ele também foi vítima da grande falácia que é a “otimização dos recursos humanos de segurança pública”.

Contudo, as consequencias nefastas de tal prática igualmente nefasta ainda não chegaram aos ouvidos do legislador, ou até que chegaram, mas estão sucumbindo diante do lobby e de argumentos falsos. Refiro-me ao Projeto de Reforma do Código de Processo Penal, em trâmite pelo Senado Federal que codifica o tratamento reservado às infrações de menor potencial ofensivo, e que previa, originariamente, que o “delegado de polícia” seria o encarregado de determinar ou não a lavratura de termo circunstanciado. Cedendo aos falsos argumentos de celeridade e otimização, o termo “delegado de polícia” foi substituído por “autoridade policial”, permitindo a continuidade (se aprovado for) da usurpação da nobre função do delegado de polícia por policiais militares e, retornando-se ao título deste artigo, contribuindo com a militarização da segurança pública.

Apenas a titulo de argumentação, a lei 11.343/06, a nova Lei de Drogas, fez questão de mencionar, em vários de seus artigos, a figura da “autoridade de polícia judiciária”, a fim de não permitir incursões das autoridades militares em assuntos que não são de sua missão constitucional. No nosso humilde entendimento, em que pese o pleonasmo da expressão (posto que, autoridade policial só pode ser o delegado de polícia, chefe da polícia judiciária), tal atitude bem refletiu a preocupação em deixar as coisas em seus devidos lugares. No caso da Lei 11.343/06, por conta da maior e mais complexa operação de tipificação da atualidade, que é o enquadramento da conduta no artigo 28 da referida lei, classificando o conduzido como usuário (o que torna impossível a sua prisão cautelar) ou como traficante, que o classifica como criminoso equiparado a hediondo (ou seja, “oito ou oitenta”). Parece-me que a Lei 11.343/06 não quis “brincar” com a tipificação provisória, considerando, acima de tudo, as consequencias da tipificação incorreta.

O fenômeno da militarização da segurança pública também se faz presente quando da representação por expedição de mandados de busca domiciliar elaborados por policiais militares e, pasmem, pelo seu deferimento. De se ver que a regra é a inviolabilidade do “asilo do indivíduo”, havendo poucas exceções a esta inviolabilidade, sendo uma delas o cumprimento de ordem judicial, conforme previsto na Constituição Federal. É também na Carta Magna a “distribuição” das atribuições da polícia, reservando à Polícia Civil e à Polícia Federal o papel de Polícia Judiciária, e à Polícia Militar a missão do policiamento ostensivo. Ora, se a regra é a inviolabilidade domiciliar, as exceções devem ser interpretadas sob a estrita legalidade e constitucionalidade. E é fácil perceber que a Polícia Militar não é o órgão constitucionalmente escolhido para exercer o papel de Polícia Judiciária. Assim, o cumprimento de seus mandados de busca e, mais ainda, a representação por sua expedição, devem ser de atribuição das Polícias Judiciárias e não da polícia ostensiva, sob pena de se estar diante de uma prova constitucionalmente ilícita, inutilizando todos os esforços e meios do trabalho policial, e, o pior de tudo, brindando-se à impunidade, na medida em que a prova ilícita, é certo, não serve para condenar.

Estranhamente, os mesmos órgãos que se intitulam como “fiscais da lei” não só fazem vistas grossas a tais manifestas ilegalidades, como também as promove, não sendo raro as autoridades militares direcionarem seus relatórios de “investigação” ao membro do Ministério Público, para que este promova a representação perante o juiz criminal, “esquentando” o pedido de buscas, numa forma de burlar a lei que jurou defender. Não se deve achar normal, nem mesmo sob o pretexto de se garantir a ordem e a paz social, que militares ingressem na residência de um civil, considerando-se, ademais que a medida de busca e apreensão está intimamente ligada à investigação criminal, tarefa esta que, também, não é da atribuição da Polícia Militar. Militares invadindo residências de civis, até então presumidamente inocentes: militarização da segurança pública.

E vão além os atos de polícia judiciária usurpados pela Polícia Militar, sob o pretexto da “otimização”, como a autorização judicial para a realização de interceptações telefônicas, muitas vezes também “esquentada” pelo Ministério Público, a pedido das famosas “P2”, ou o “Serviço Reservado da Polícia Militar”. Tais seções, inclusive ressalte-se, foram criadas originariamente para a investigação de crimes militares praticados por seus integrantes, mas que agora lançam seus tentáculos para todos os setores da sociedade. Não se percebe o risco da militarização das investigações? Depois de mais de 20 anos de Constituição e transição para a Democracia, os principais diretores sociais (Judiciário, Ministério Público e o Legislativo) parecem ter esquecido os perigos do tempo em que os inquéritos eram secretariados nos quartéis, sob rígida hierarquia e intransparência, e mediante a truculência que é tradicional na corporação militar, o que se mostra de todo inaceitável nos dias de hoje.

O argumento da “otimização” na verdade representa o reconhecimento dos parcos recursos materiais e humanos reservados às polícias judiciárias que, pelo ser caráter reservado e não ostensivo, aparece pouco, como deve ser, e não rende tanta mídia, nem tantos votos; assim como a sua função, não de “combate ao inimigo”, mas sim de “polícia cidadã”, também não adoça o espírito popularesco da “vingança estatal” e desta forma, quase sempre não é reconhecida pela população. É preciso resgatar o valor do que é certo, ainda mais se tratando de objetos tão singulares e preciosos que são a liberdade, a vida e a dignidade da pessoa, mesmo que seja uma pessoa suspeita e investigada, para que esta não seja tratada como um meliante ou um elemento.

Cristiano Augusto Quintas dos Santos
Delegado de Polícia do Estado do Paraná,
Especialista em Direito Penal e
Professor Universitário

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