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Lei nº 14.599/2023: imunidade de viaturas veladas e outros reflexos legais

por Editoria Delegados

Por Adriano Sousa Costa, Francisco Enaldo Sales Campelo e Waldir Soares de Oliveira

Por Adriano Sousa Costa, Francisco Enaldo Sales Campelo e Waldir Soares de Oliveira

Mudança terminológica: acidente ou sinistro de trânsito

A primeira mudança trazida pela Lei nº 14.599/2023 foi meramente terminológica. A nomenclatura “acidente”, que estava difundida ao longo de todo o Código de Trânsito, foi substituída pela palavra “sinistro”. No total, entre inserções e substituições, contabilizamos 33 delas no corpo da Lei nº 9.503/97.

A NBR 10.697/20 já definia, antes do referido diploma legal, em termos técnicos o que é considerado um sinistro de trânsito:

“…todo evento que resulte em dano ao veículo ou à sua carga e/ou em lesões a pessoas e/ou animais, e que possa trazer dano material ou prejuízos ao trânsito, à via ou ao meio ambiente, em que pelo menos uma das partes está em movimento nas vias terrestres ou em áreas abertas ao público”.

Pelo fato de a palavra acidente sempre ter se associado à ideia de evento inesperado, não intencional e imprevisível, o que nem sempre era o caso, foi realmente oportuna a alteração terminológica em comento.

Recognição visuográfica x levantamento de informações

Segundo a nova redação do inciso IV do artigo 20 do Código de Trânsito brasileiro, compete à Polícia Rodoviária Federal, no âmbito das rodovias e estradas federais, efetuar levantamento dos locais de sinistros de trânsito e dos serviços de atendimento, socorro e salvamento de vítimas.

É importante perceber que o termo “levantamento” autoriza somente a busca de informações elementares sobre os sinistros, os envolvidos no evento, placas e serviços de atendimento, socorro e salvamento. Todavia, nunca sob aspectos que tangenciem à investigação de sinistros que correspondam a ilícitos penais.

Até porque ao delegado de Polícia é que cabe a recognição visuográfica do local do crime, não podendo ser ela realizada por policial rodoviário federal.

Tal diligência investigatória proporciona condições para materializar os indícios e as provas dos delitos, por intermédio de imagens e fotos do lugar onde ocorreu a infração penal, como um primeiro (e bem relevante) passo investigativo.

Trata-se de método de investigação criminal, envolvendo conhecimentos e técnicas que visam a conferir uma visão holística dos fatos que dali por diante serão investigados.

Se quisesse o legislador ter conferido tal prerrogativa aos patrulheiros federais, deveria ter mencionado isso expressamente. Se não o fez, é porque conhece das prerrogativas da Polícia Judiciária e da função ostensiva da Polícia Rodoviária Federal.

Dessarte, acerta o legislador ao definir claramente uma atribuição acessória a tal sorte de policiais ostensivos. Qualquer interpretação em sentido diverso pode atribuir poderes típicos do artigo 6º (de Autoridade Policial) a quem não o detém pela Constituição Federal.

Crimes de via pública

O conceito de via pública é mais restrito do que o de vias terrestres. As vias particulares de circulação pública amoldam-se a este, mas não àquele.

“Artigo 2º Parágrafo único. Para os efeitos deste Código, são consideradas vias terrestres as praias abertas à circulação pública, as vias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas e as vias e áreas de estacionamento de estabelecimentos privados de uso coletivo.”.

E compreender o conceito de via pública é essencial porque existem crimes de trânsito que requerem, além de terem sido praticados na direção de veículo automotor, que o local de seu cometimento seja em via pública. Este é o caso dos artigos 308 e 309 do CTB.

Ou seja, para alguns crimes, basta a ocorrência consumativa em vias terrestres; para outros, há que ter sido perpetrada a conduta em uma via pública (espécie do gênero via terrestre).

Prova da relevância de tal classificação é que, quando o legislador desejou manejar a elementar “em via pública” no caso do crime de embriaguez ao volante (artigo 306 do CTB), acabou promovendo involuntariamente uma revolução copernicana no tipo penal.

Afinal, lembre-se de que, antes da Lei nº 12.760/2012, o crime elencado no artigo 306 do CTB exigia que a conduta fosse realizada em via pública. Após a referida reforma, o delito passou a não mais exigi-lo. E a alteração é importante, pois, se a conduta de dirigir embriagado for praticada em via particular de uso coletivo, o tipo penal incidiria hoje, mas não o podia antes da Lei nº 12.760/2012.

Cadeia de custódia vinculativa

O legislador criou mais um requisito para a custódia de elementos essenciais a sinistros de trânsito (que correspondam a crimes, por óbvio).

Após deixar claro que os policiais rodoviários federais não podem proceder à recognição visuográfica de locais de sinistros (mas somente podem fazer levantamentos), o legislador optou por requerer a presença de perito oficial para a realização de algumas providências essenciais para a prova do dolo ou culpa do referido sinistro.

Afinal, agora, no caso do exame pericial de local, só o perito responsável pelo comparecimento in loco é que poderá retirar o disco ou unidade armazenadora de registro instantâneo de velocidade.

E se o veículo for removido para o pátio do Instituto de Perícia, sem que no local de sinistro tenha sido realizado o devido exame, é somente o perito com atribuições para o exame pericial indireto que deverá retirar o disco ou unidade armazenadora do registro de velocidade.

“Artigo 279. Em caso de sinistro com vítima envolvendo veículo equipado com registrador instantâneo de velocidade e tempo, somente o perito oficial encarregado do levantamento pericial poderá retirar o disco ou unidade armazenadora do registro. (Redação dada pela Lei nº 14.599, de 2023).”

Isso não indica, contudo, que os veículos envolvidos no sinistro não possam ser movimentados, caso a situação em concreto assim o autorize. Afinal de contas, ainda permanece válida a Lei nº 5.970, de 11/12/1973, a qual assevera:

“Artigo 1º Em caso de acidente de trânsito, a autoridade ou agente policial que primeiro tomar conhecimento do fato poderá autorizar, independentemente de exame do local, a imediata remoção das pessoas que tenham sofrido lesão, bem como dos veículos nele envolvidos, se estiverem no leito da via pública e prejudicarem o tráfego. Parágrafo único. Para autorizar a remoção, a autoridade ou agente policial lavrará boletim da ocorrência, nele consignado o fato, as testemunhas que o presenciaram e todas as demais circunstâncias necessárias ao esclarecimento da verdade.”

Remoção de veículo em estado de abandono ou sinistrado

Note que o legislador não fixou que o veículo em estado de abandono ou sinistrado precisa estar em uma via pública para justificar a sua remoção para o depósito do órgão ou entidade competente do Sistema Nacional de Trânsito.

“Artigo 279-A. O veículo em estado de abandono ou sinistrado poderá ser removido para o depósito fixado pelo órgão ou entidade competente do Sistema Nacional de Trânsito independentemente da existência de infração à legislação de trânsito, nos termos da regulamentação do Contran. §1º A remoção do veículo sinistrado será realizada quando não houver responsável por ele no local do sinistro. §2º Aplicam-se à remoção de veículo em estado de abandono ou sinistrado as disposições constantes do artigo 328, sem prejuízo das demais disposições deste Código.”

E duas situações diferentes foram tratadas pela Lei nº 14.599/2023: o estado de abandono e o veículo sinistrado. O estado de abandono requer atos ou omissões que indiquem maior desinteresse do seu proprietário; de outro turno, no caso da remoção do veículo sinistrado, basta que não haja responsável pelo veículo no local de sinistro. A diferença é gritante, portanto.

O estado de abandono não se confunde com a coisa abandonada (res derelicta). Aquele se materializa na permissividade de perecimento do veículo pela falta de cuidados elementares ao bem. No caso da coisa abandonada (res derelicta), há o interesse do antigo proprietário em não mais manter a coisa em seu patrimônio.

Na verdade, um veículo abandonado a sua própria sorte em uma vaga de garagem, delegacia de polícia (sem que se saiba da sua procedência ou motivo da apreensão), em um terreno baldio ou mesmo acidentado na beira de uma rodovia, são passíveis de remoção, inclusive por motivo de preservação da saúde pública. E, nesse caso, perceba-se que cabe a venda, via leilão (artigo 328 do CTB).

Viaturas veladas: imunidade das infrações de trânsito

Após a Lei nº 14.599/2023, as infrações de trânsito que versem sobre circulação, parada, estacionamento não mais se aplicam aos veículos de segurança ou de salvamento. Não só isso. A falta de identificação ostensiva não será mais objeto de infração de trânsito.

“Artigo 280. §6º Não há infração de circulação, parada ou estacionamento relativa aos veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, aos de polícia, aos de fiscalização e operação de trânsito e às ambulâncias, ainda que não identificados ostensivamente. (Incluído pela Lei nº 14.599, de 2023).”

E a construção linguística dessa imunidade permite a visualização de algumas possíveis facetas dessa imunidade.

A primeira é a de que a imunidade incidira em face de veículo que esteja simplesmente destinado aos referidos misteres, ainda que não efetivamente em operação quando da ocorrência da infração de trânsito. Nesse caso, motoristas de viatura que a param irregularmente em frente a um supermercado a fim de fazer compras fora do expediente estariam resguardados. A nosso ver, essa faceta é inaplicável, muito porque deturpam a essência da garantia legal.

A segunda é a de que no caso de viaturas descaracterizadas (não plotada/adesivada), ainda que com luzes e sons característicos desligados, gozariam deste alcance tuitivo. Parece adequada tal interpretação. Do contrário frustar-se-ia um acompanhamento veicular de suspeitos, por exemplo. E isso parece razoável, pois o dispositivo legal deixa claro que, no tocante aos veículos de polícia, não precisam estar em situação de “prestação de socorro ou de salvamento”. Basta que estejam devidamente empenhados consoante sua missão legal e constitucional.

Fato é que, ainda, caberá aos respectivos órgãos correcionais (corregedoria) exercer forte vigilância a fim de coibir excessos e penalizar infratores sob o olhar exclusivamente disciplinar.

Por fim, faltou um certo cuidado ao legislador, o qual deixou de manter coerência com os ainda vigentes dispositivos do artigo 29 do CTB, quando idealizou a nova redação do artigo 280, parágrafo 6º. Vejamos que há um suposto conflito dessas normas.

“Artigo 29. VII – os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, além de prioridade no trânsito, gozam de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência, de policiamento ostensivo ou de preservação da ordem pública, observadas as seguintes disposições: e) as prerrogativas de livre circulação e de parada serão aplicadas somente quando os veículos estiverem identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação intermitente; f) a prerrogativa de livre estacionamento será aplicada somente quando os veículos estiverem identificados por dispositivos regulamentares de iluminação intermitente;”.

De toda forma, em havendo dispositivos homovitelinos que aparentemente se digladiam, opta-se sempre pela interpretação mais protetiva ao condutor do veículo. Ou seja, prevalece a nova redação do artigo 280. §6º, do CTB, com todos os consectário interpretativos que dela derivam.

Retroatividade ou não do direito administrativo sancionador

Antes da modificação promovida pela Lei nº 14.599/23, os veículos empregados no atendimento às situações de emergência, salvamento e de policiamento estavam sujeitos, em igualdade de condições aos particulares, às mesmas infrações e multas, conquanto pudessem invocar o artigo 29, inciso VII, para, em recurso, justificar a atuação e repelir a responsabilidade.

Contudo, a Resolução nº 985/22, de 02/01/2023, aprovou o novo Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, o qual trazia uma recomendação aos órgãos de trânsito no sentido de não processar as multas por equipamento eletrônico sobre as viaturas padronizadas.

O tema só se consolidara com a Lei nº 14.599/2023 que estabeleceu imunidade na circulação, parada ou estacionamento relativa aos veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, aos de polícia, aos de fiscalização e operação de trânsito e às ambulâncias, ainda que não identificados ostensivamente.

Quanto à produção de efeitos no tempo, sopitam duas correntes. Uma advoga que a imunidade deverá operar de agora em diante, não sendo possível retroagir para açambarcar ocorrências sob a égide da norma não permissiva. Senão, deveria o legislador anistiar todas as multas ocorridas preteritamente, o que não foi feito.

Em outra ponta, têm os defensores da retroatividade da previsão mais favorável. Sustentam a possibilidade de se extrair do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, um princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

Sobre os autores

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Francisco Enaldo Sales Campelo é delegado de polícia do ES, vice-presidente da Adepol-ES, pós-graduado em ciências criminais, Direito do Estado, Direito Administrativo e gestão pública.

Waldir Soares de Oliveira é delegado de polícia civil de Goiás, deputado Federal por três mandatos, pós-graduado em Direito Penal, Processo Penal e Gerenciamento Segurança Pública e atual presidente do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran/GO).

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