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Crime doloso contra a vida de civil praticado por militar em serviço deve ser investigado pela Polícia Civil

por Editoria Delegados

Por William Dal Bosco Garcez Alves

Por William Dal Bosco Garcez Alves

 

Questão que tem causando divergência de opiniões entre os juristas e gerado grande desgaste institucional entre as Polícias Civis e as Polícias Militares diz respeito à atribuição para a condução da investigação criminal de crimes dolosos contra a vida de civil quando praticados por militar em serviço[1].

 

O texto constitucional é claro ao referir que, como regra, a apuração de infrações penais e a execução das funções de polícia judiciária competem à Polícia Federal e às Polícias Civis[2], reservando às Polícias Militares o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Note-se que as atribuições dos órgãos de segurança pública estão elencadas, de forma clara, no texto constitucional, não deixando margens para dúvidas de qual é o papel de cada instituição na tarefa de prevenir e reprimir as infrações penais, de modo que a atividade de investigação criminal, como regra constitucional expressa, pertence à polícia judiciária[3], i.e., a Polícia Federal e as Polícias Civis.

 

Sem delongas, e adentrando no assunto proposto, a Constituição Federal, ao descrever as atribuições da Polícia Civil, refere que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares[4].

 

Nesse passo, ao redor da expressão “exceto as militares”, inserta no artigo acima transcrito, é que se instala a polêmica, uma vez que “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”[5], de modo que, nestes casos, excepcionalmente, a Polícia Militar fará as vezes de polícia judiciária, já que o fato investigado deverá ter natureza militar[6].

 

Os crimes militares “em tempo de paz”, que são os que interessam ao estudo e solução da discussão proposta, estão elencados no artigo 9° do Código Penal Militar, de modo que no inciso II, alínea “c”, há previsão de enquadramento militar para “os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados (…) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil”.

 

Cumpre asseverar que o parágrafo único do dispositivo legal citado, i.e., o art. 9° do Código Penal Militar, com a alteração produzida pela Lei 9.299/96, é claro ao referir que “os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica.

 

Repare que a legislação militar infraconstitucional, atualmente[7], se amolda, nesse ponto, ao que prevê a Constituição Federal, que é clara ao consagrar a competência do Tribunal do Júri para o processo e julgamento dos crimes militares dolosos contra a vida de civil, perpetrados por militares dos Estados.

 

A CF estabelece que “compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”[8].

 

Abrindo um parêntese, insta referir, por pertinente, que o assunto proposto não se restringe unicamente ao âmbito estadual, onde se reporta a policiais e bombeiros militares (art. 42 da CF), alcançando igualmente os membros das Forças Armadas, i.e., Exército, Marinha e Aeronáutica (art. 142 da CF)[9].

 

Feitas essas referências legislativas, cumpre esclarecer que aqueles que entendem ser atribuição da Polícia Militar a investigação de crimes dolos contra a vida de civil praticados por militares baseiam seu entendimento em dois pontos: a) o primeiro, é de que o parágrafo único do artigo 9° do Código Penal Militar, assim como o artigo 125, §4°, da Constituição Federal, se referem apenas à “competência para julgamento”, nada referindo sobre a atribuição investigativa; b) o segundo, está atrelado à redação do artigo 82, §2°, do Código de Processo Penal Militar, de onde se extrai que “nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”.

 

Ao nosso ver, conforme construção interpretativa lógica que a seguir faremos, fruto do processo de aplicação da hermenêutica constitucional, esses dois argumentos apresentam falha estrutural deôntica, mostrando-se equivocados. Veja-se:

 

Até o advento da Lei 9.299/96, que alterou o artigo 9° do Código Penal Militar, o crime doloso contra a vida cometido por militar, fosse a vítima civil ou militar, era de competência da Justiça Militar. No entanto, a referida lei determinou que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis passassem a ser julgados pelo Tribunal do Júri.

 

Nesse contexto, segundo o professor Damásio de Jesus[10], “houve quem dissesse que a lei, ao transferir ao Júri a competência para julgamento de crimes militares, mostrava-se inconstitucional. Não pensamos assim, uma vez que a interpretação correta a ser dada, teleológica e não puramente gramatical, revela que a lei passou a considerar comuns esses delitos. Em outras palavras, não se trata de determinar o julgamento de crimes militares pela Justiça Comum, mas da modificação da natureza do delito, que de militar passou a ser considerado comum e, portanto, de competência da Justiça Comum (grifamos).

 

Portanto, a inferência lógica é que os crimes dolosos contra a vida de civil perpetrados por militar, por força do estabelecido na Lei 9.299/96, foram despojados de sua condição de crime militar, retornando, desde então, à condição de crimes comuns, da competência da Justiça Comum. E, como conseqüência, diante das regras insculpidas no texto constitucional, a apuração das infrações penais de competência da Justiça Comum incumbe à Polícia Civil.

 

Esse, inclusive é o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça[11], que já se manifestou no sentido de que “o parágrafo único do art. 9º do CPM, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.299/96, excluiu do rol dos crimes militares os crimes dolosos contra a vida praticado por militar contra civil, competindo à Justiça Comum a competência para julgamento dos referidos delitos (grifamos).

 

Portanto, a Lei 9.299/96, muito além de alterar a “competência” para julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, implicitamente alterou a “atribuição” para a investigação[12]-[13], já que alterou a natureza jurídica desses crimes para a condição de crimes comuns.

 

No que se refere ao argumento embasado no art. 82, §2°, do Código de Processo Penal Militar, que, ao nosso sentir, contradiz a redação do seu próprio caput, cumpre trazer a baila o escólio de Bruno Zanotti[14], o qual sustenta a não aplicabilidade do dispositivo após a EC 45/04. Veja-se:

 

Outro argumento equivocadamente utilizado para sustentar que a atribuição investigativa dos crimes de homicídio praticados contra civil por policial militar foi abordado por ocasião do julgamento da medida cautelar no curso da ADI 1494-3, qual seja, o art. 82, §2º, do CPPM. O art. 82, §2º, do CPPM, incluído em 1996 (…). Note a questão temporal dos fatos. A medida cautelar, tomada em 1997, e o artigo incluído em 1996 são anteriores à Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o que torna ainda mais forte o argumento de que, atualmente, a interpretação veiculada em alguns manuais não mais encontra respaldo jurídico, seja porque o dispositivo não foi recepcionado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, seja porque ele não mais possui aplicabilidade, já que não há mais o que ser investigado (…).

 

O entendimento firmado com base nesta interpretação, está alinhado com o que entende o Supremo Tribunal Federal[15], no sentido de que os crimes dolosos contra a vida praticados contra civil foram implicitamente excluídos do rol dos crimes militares[16]. O raciocínio interpretativo da Suprema Corte é a seguinte:

 

No artigo 9º do Código Penal Militar que define quais são os crimes que, em tempo de paz, se consideram como militares, foi inserido pela Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, um parágrafo único que determina que “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”. – Ora, tendo sido inserido esse parágrafo único em artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz, e sendo preceito de exegese (assim, CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 9ª ed., nº 367, ps. 308/309, Forense, Rio de Janeiro, 1979, invocando o apoio de WILLOUGHBY) o de que “sempre que for possível sem fazer demasiada violência às palavras, interprete-se a linguagem da lei com reservas tais que se torne constitucional a medida que ela institui, ou disciplina”, não há demasia alguma em se interpretar, não obstante sua forma imperfeita, que ele, ao declarar, em caráter de exceção, que todos os crimes de que trata o artigo 9º do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida praticados contra civil, são da competência da justiça comum, os teve, implicitamente, como excluídos do rol dos crimes considerados como militares por esse dispositivo penal, compatibilizando-se assim com o disposto no “caput” do artigo 124 da Constituição Federal“.

 

Cumpre asseverar, também, a hermenêutica utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 260.404, no que se refere ao artigo 82 do Código de Processo Penal Militar, de onde se extrai, em complemento ao trecho da decisão acima transcrito, que:

 

Corrobora essa interpretação a circunstância de que, nessa mesma Lei 9.299/96, em seu artigo 2º, se modifica o “caput” do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar e se acrescenta a ele um §2º, excetuando-se do foro militar, que é especial, as pessoas a ele sujeitas quando se tratar de crime doloso contra a vida em que a vítima seja civil, e estabelecendo-se que nesses crimes “a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”. Não é admissível que se tenha pretendido, na mesma lei, estabelecer a mesma competência em dispositivo de um Código – o Penal Militar – que não é o próprio para isso e noutro de outro Código – o de Processo Penal Militar – que para isso é o adequado.

 

Por essa razão, referimos anteriormente que, ao nosso sentir, o §2° do art. 82 do Código de Processo Penal Militar contradiz seu próprio caput. O Direito não pode permitir interpretações que conduzam ao absurdo. Nessa esteira, para a devida harmonização dos dispositivos legais citados, é forçoso concluir que “a regra processual contida no §2º do art. 82 do CPPM é norma de direito intertemporal estabelecida com o propósito de regular as situações transitórias entre o antigo e o novo regramento legal referente à conceituação de crime militar/crime comum”[17].

 

Dessa forma, a melhor interpretação lógico-sistemática aponta que o §2º do art. 82 do Código de Processo Penal Militar não exclui a competência da Polícia Civil para apuração de crimes dolosos[18] contra a vida praticados por militar contra civil. O referido dispositivo estabelece apenas, como regra de transição, que os inquéritos policiais militares instaurados sobre fatos desta natureza (à época da mudança na lei) fossem encaminhados à Justiça Comum, uma vez que regras de caráter processual possuem aplicação imediata, inclusive para fatos ocorridos antes da sua vigência[19].

 

Por tanto, nos termos da argumentação tecida, entendemos que o crime doloso contra a vida de civil praticado por militar, tendo sido despojado de sua natureza de crime militar, possui adequação típica imediata no art. 121 do Código Penal e não no art. 205 do Código Penal Militar.

 

À guisa de conclusão, nos termos do artigo 9°, inc. II, alínea “c”, do CPM, são considerados militares, em resumo, os crimes descritos no Código Penal Militar, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum[20], quando praticados (…) por militar em serviço ou atuando em razão da função (…) contra civil. Entretanto, especificamente no que se refere ao crime de homicídio doloso praticado contra a vida civil, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal refere que esses crimes serão de competência da Justiça Comum, retirando-lhes, assim, a condição de crimes militares. E, afastada a natureza militar, por óbvio que a investigação deve ser realizada pela instituição oficial que detém a competência para a apuração das infrações penais sujeitas à Justiça Comum, que é a Polícia Civil.

 

Nesse jaez, como consequência, cabe ao delegado de polícia, na condição de autoridade policial[21], a apuração das referidas infrações penais, verificando a configuração de eventual situação de flagrante, bem como procedendo à apreensão dos objetos que tiverem relação com o fato e demais instrumentos do crime, os quais deverão acompanhar o inquérito policial até a sua remessa ao juízo.

 

[1] Saliente-se que estando o militar de folga assentou-se o entendimento de que a competência para o julgamento é do Tribunal do Júri, não sendo da Justiça Militar. Nesse sentido: “(…) é competente a justiça estadual para processar e julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militar, fora de serviço, ainda que usado para o delito, arma da corporação” (CC 19833, STJ).

[2] Essa é a investigação criminal autêntica ou pura, instituída como regra no Estado Democrático de Direito insculpido pela Constituição Federal de 1988, a qual classificamos como a investigação criminal constitucional genuína (GARCEZ, William. Investigação criminal constitucional: conceito classificação e sua tríplice função. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58958/investigacao-criminal-constitucional-conceito-classificacao-e-sua-triplice-funcao>. Acessado em 12 de setembro de 2017.

[3] Art. 4° do CPP e artigo 2°, caput e §2°, da Lei 12.830/13.

[4] Artigo 144, §4°, CF.

[5] Artigo 124 do CF.

[6] Artigos 7° e 8° do Código de Processo Penal Militar.

[7] Dizemos “atualmente”, porque foi a CF/88 que incorporou, com a edição da EC 45/04, a regra trazida pela Lei 9.299/96. Ou seja, a redação do art. 125, §4°, da Constituição Federal (2004) é posterior à alteração de competência promovida no art. 9°, parágrafo único, do Código Penal Militar (1996).

[8] Art. 125, §4°, da CF.

[9] MACHADO, Leonardo Marcondes. Investigação pela PM dos próprios homicídios dolosos revela autoritarismo. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-ago-29/academia-policia-investigacao-pm-proprios-homicidios-revela-autoritarismo#_ftn11>. Acessado em 12 de setembro de 2017.

[10] JESUS, Damásio Evangelista de. Competência para julgamento de crime militar doloso contra a vida. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10869/competencia-para-julgamento-de-crime-militar-doloso-contra-a-vida>. Acessado em 12 de setembro de 2017.

[11] STJ, 3a Seção, CC 45.134, julgado em 29/10/2008.

[12] STJ, 5ª Turma. HC 45.726, rel. min. Gilson Dipp. J. em 03/11/2005.

[13] STJ, 5ª Turma. HC 47.168, rel. min. Gilson Dipp. J. em 16/2/2006.

[14] ZANOTTI, Bruno Taufner. Homicídio cometido por policial militar contra civil: atribuição investigativa da Polícia Civil ou da Polícia Militar?. Disponível em: <https://blogdodelegado.wordpress.com/2013/11/17/homicidio-cometido-por-policial-militar-contra-civil-atribuicao-investigativa-da-policia-civil-ou-da-policia-militar/>. Acessado em 12 de setembro de 2017.

[15] STF, Pleno, RE 260.404, rel. min. Moreira Alves, DJ de 21/11/2003.

[16] STF, RE 462.631, rel. min. Joaquim Barbosa, julgado em 23/09/2009.

[17] TJRS, 3a Câmara Criminal, Correição Parcial 70016030181, j. em 28/09/06.

[18] Saliente-se que, havendo dúvida sobre a existência do elemento subjetivo do crime praticado contra a vida, i.e., do dolo do agente, a questão deverá ser solucionada no âmbito da Justiça Comum e não na Justiça Militar (STJ, 3a Seção, CC 129.497, j. em 08/10/2014).

[19] STF, HC 76.380, Dj. 05/05/1998; STF, HC 111.406, j. em 25/06/2013.

[20] O homicídio classifica-se no Direito Penal Militar com “crime militar impróprio”, uma vez que, na essência, trata-se de um crime comum, previsto no Código Penal. Diz-se “impróprio” o crime militar que não está exclusivamente tipificado no Código Penal Militar, i.e., que possui correspondente outro diploma incriminador.

[21] GARCEZ, William. O conceito de autoridade policial na legislação brasileira. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/47144/o-conceito-de-autoridade-policial-na-legislacao-brasileira>. Acessado em 12 de setembro de 2017.

 

Sobre o autor

 

William Dal Bosco Garcez Alves é Delegado de Polícia Civil no Rio Grande do Sul

 

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