JURÍDICO
“Carteirada Policial”, abuso
ou prerrogativa de direito?
Por Flaubert Queiroz
JURÍDICO
Por Flaubert Queiroz
Ao verificar a divergência dos entendimentos de Delegados de Polícia acerca da legitimidade da “carteirada”, considerando a dialética e a cordialidade do ambiente democrático para discussão, sinto-me instado, como representante da Classe dos Delegados de Polícia do Estado de Pernambuco a oferecer meu posicionamento sobre o assunto.
Primeiramente gostaria de discordar do termo pejorativo “carteirada” comumente utilizado para descrever o ato de o Policial Civil identificar-se perante uma instituição Pública ou Privada. Tal termo traz em seu próprio sentido axiológico uma conotação antiética que repousa na conduta de o servidor Policial “valer-se desta condição para locupletar-se, tendo acesso gratuito a determinados locais”.
Observe-se que o termo “carteirada” pode e deve ser empregado quando ilegítimo ou abusivo, ou seja, quando determinada autoridade ou Servidor Público, que não seja Policial, utilize-se desta prática para ter acesso a locais de diversão pública sem estar efetivamente em serviço ou não tenha atribuição fiscalizatória sobre o local. Esta sim é a verdadeira “carteirada” em sua real acepção da palavra.
Desta forma, é comum e compreensível que a sociedade repudie este tipo de conduta que viola a ética e os princípios morais. Contudo, assevere-se que tal exegese não deve ser utilizada quando o autor for Autoridade Policial ou Policial, vez que, tal ato reveste-se de princípios deontológicos e jurídicos. Senão vejamos:
Sob o viés da discussão ética, os que se opõem à legitimidade do livre ingresso de Policiais a locais de diversão sem estar efetivamente em serviço, argumentam ser abusiva tal conduta por carecer de justa causa, já que o Policial está em momento de laser e descontração. No entanto, caso contrário, ou seja, se o Policial estivesse em serviço seria justo seu livre ingresso ao estabelecimento.
Ainda sob esta mesma óptica, validar-se-ia a teoria de que o Policial ao estar se divertindo e acompanhado, as vezes, por parentes e amigos estaria impedido de agir diante de uma situação delituosa, já que estaria presente no local apenas com o intuito de diversão e, por estar acompanhado de entes queridos, isto o obstruiria de exercer ininterruptamente sua função Policial.
Destarte, ao mudarmos o paradigma causal do argumento, poderíamos vislumbrar diversas outras situações em que a presença de um Policial em um local de diversões, mesmo não estando em serviço, poderia alterar substancialmente o resultado de uma situação delituosa.
Apenas a título ilustrativo, imaginemos que um Policial durante a sua folga vá a uma casa de shows e, para ter livre acesso ao local do evento, identifique-se como policial, sendo-lhe franqueado o acesso. No decorrer do evento acontece uma contenda em que vários indivíduos atacam com golpes potencialmente letais um outro indivíduo, o qual, indefeso cai ao chão e continua a ser golpeado pelos agressores. Neste momento, o Policial que estava em sua folga, mas identificado como Policial já na entrada do evento, percebe a enorme probabilidade da vítima vir a ficar gravemente lesionada, ou mesmo falecer em virtude da violência do ataque.
Assim, estando em desvantagem numérica, o Policial não age irresponsavelmente partindo para o enfrentamento direto aos agressores, mas aciona os seguranças do evento e também a Central de Polícia, bem como o serviço de socorro para a vítima, evitando assim, que a situação venha a se agravar. Ademais, ainda é possível após a contenção dos agressores, dar-lhes voz de prisão e, com reforço policial, conduzi-los à Delegacia mais próxima para adoção das providências legais cabíveis.
Este exemplo, aqui utilizado apenas para enriquecer a assimilação ideológica, ocorreu de fato com este que abaixo subscreve. Na ocasião, os agressores eram praticantes de artes marciais e atacaram a vítima por motivos de disputa entre academias e, provavelmente esta não veio a falecer por intervenção Policial.
Assim, infere-se que o Policial mesmo estando em gozo de sua folga, não deixa de ser Policial e a partir do momento que o mesmo se identifica na entrada de um evento ou de qualquer outro local acessível ao público, em caso de necessidade, passará a ser cobrado pela sociedade, sendo compelido a agir como policial, mesmo não estando em serviço, vez que, para a sociedade ele não é um cidadão comum, mas um Policial que tem o dever de agir diante de um crime.
Para a sociedade o Policial deve comportar-se exatamente como um super-herói, devendo estar disponível o tempo todo a fim de atender às mais diversas situações. Quantas vezes, um Policial está em casa, no final de semana em sua folga, e é interrompido por um amigo ou pessoa conhecida que fora vítima de um crime?
Por tais razões, não se pode afirmar antiética ou amoral, muito menos, denominar de “carteirada”, o ato de o Policial identificar-se em locais de acesso ao público para ter franqueado o seu acesso, vez que, a partir do momento em que o Policial se identifica, assume publicamente o dever legal de agir na presença de um crime.
Ademais, é de conhecimento comum que grandes aglomerações de pessoas trazem potencial perigo de ocorrência de crimes contra a vida e uso de substâncias ilícitas, sendo assim, imprescindível a presença não só de seguranças particulares custeados pelos organizadores de eventos ou proprietários de locais de diversão, mas também de Policiais, principalmente Policiais Judiciários, que representam naquele local os olhos da Lei em sentido amplo.
Por este prisma, extrai-se o princípio da onipresença da Polícia, ou seja, a Polícia deve ter conhecimento e estar sempre presente nos locais onde está a sociedade e, isto deve acontecer não só de forma preventiva ostensiva, mas também, investigativa, já que agentes particulares não possuem atribuições para fiscalizar irregularidades nem investigar prática de crimes.
A Polícia deve ser estimulada a estar presente em todos os locais onde potencialmente haja a probabilidade de ocorrências criminógenas e o livre acesso de Policiais a locais públicos ou privados deve ser garantido, não como forma de beneficiar pessoalmente o Policial com o não pagamento do ingresso, mas como forma de garantir a fiscalização e a ação da Polícia, não sendo exigível que o Agente ou Autoridade Policial esteja necessariamente em serviço, já que a Polícia é instituição permanente que funciona 24h.
Assim, sob o ponto de vista ético, comungamos do entendimento que o livre ingresso do Policial a estabelecimentos de diversão é uma prerrogativa e não uma graciosidade, tampouco generosidade da iniciativa privada, vez que, no mesmo compasso que o Policial beneficia-se com a gratuidade do ingresso, por outro lado, assume publicamente o ônus legal de agir em caso de necessidade.
Quanto à questão jurídica, esta reveste-se mais de argumentos principiológicos que normativos. Depreende-se do Art. 301 do CPP, in verbis: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito” (grifos nossos), o princípio da inescusabilidade da função policial.
Tal princípio norteia a obrigatoriedade da Autoridade Policial e de seus agentes de agirem na presença de um flagrante delito, independentemente de estar ou não em serviço. A escala de plantão é mero ato administrativo com o fim limitativo de horário normal de trabalho, conforme carga horária estipulada pela CF/88. Não impede a continuidade do exercício das funções policiais judiciárias, a qual pode se dar a qualquer momento.
Mesmo a legislação pátria sendo omissa em regulamentar definitivamente o tema, o que acabaria de vez com a polêmica, alguns Estatutos e Leis Orgânicas Estaduais avançaram neste sentido, a exemplo da Lei Orgância do Estado da Paraíba:
“CAPITULO VI
Das Prerrogativas Funcionais
Art. 141. O policial civil, no exercício de suas funções, goza das seguintes prerrogativas, dentre outras estabelecidas em lei:
I – omisses;
II – omisses;
III – omisses;
IV – omisses;
V – omisses;
VI – livre acesso a locais públicos ou particulares que necessitem de intervenção policial, na forma da legislação; grifamos
VII – ingresso e trânsito livres em locais de acessibilidade pública,independentemente de prévia autorização ou de verificação de estar em serviço, uma vez que o exercício das funções policiais ocorre em tempo integral e exige dedicação exclusiva, devendo-se apurar a responsabilidade penal do eventual obstrutor da ação policial nesse caso” (grifos nossos).
Tal diploma legal sedimenta o princípio da inescusabilidade da função policial tornando inequívoca a prerrogativa do livre acesso do Policial em locais de acessibilidade, ressaltando inclusive a possibilidade de apuração da responsabiliadde penal do eventual obstrutor.
Não pode existir questionamento se o policial civil está ou não de serviço, pois os policiais judiciários têm dedicação exclusiva e tempo integral, não exercendo jurisdição em sentido estrito, mas circunscrição, o que dá a atribuição de, a qualquer hora e lugar do país, entrar em locais de acesso ao público e agir na medida de suas responsabilidades. O limite que define a atribuição do delegado que está fora de sua circunscrição é não poder assinar os autos apenas, de resto faz tudo. Também, o policial civil pode portar arma de fogo em tais lugares, tendo em vista que esta é inerente ao cargo que se exerce, e não à sua pessoa.
Além do mais, não é atribuição/função de seguranças privados aferirem o caráter subjetivo da entrada franca armado ou não de um Policial Civil em locais sujeitos a fiscalização da polícia judiciária.
Alguns argumentam que a inicitiva privada não teria a obrigatoriedade de franquear o acesso ao Policial, já que, na maioria das vezes o evento é custeado com recursos de origem privada.
Tal agruição não se sustenta, restando inconstitucional, dada a amplitude da responsabilidade pela Segurança Pública que foi conferida pela Carta Política de 1988, em seu Art. 144, caput:
“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…” (grifos nossos).
Assim, prevalecendo os princípios supramencionados, bem como, o princípio da responsabilidade social pela Segurança Pública, não há que se falar em ônus para a iniciativa privada, ao contrário, a presença de um Policial em seu estabelecimento resguarda a sua responsabilidade para com a incolumidade das pessoas.
Por tudo que foi exposto, posiciono-me no sentido de que o livre ingresso do Policial Civil em casas de shows, cinemas e demais locais de acessibilidade pública não é um mero favor da iniciativa privada, é uma prerrogativa do Policial, amparada pelos princípios supramencionados, bem como, pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, já que o Policial representa, mesmo em momentos de folga, o braço aramado do Estado, pronto para agir e reagir.
Flaubert Queiroz/PE
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