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Audiência de custódia, o símbolo da impunidade: a pesquisa de satisfação do preso

por Editoria Delegados

A audiência de custódia, que poderia ser chamada de “pesquisa imediata de satisfação de presos”

Assassino confesso de cartunista debocha em audiência e pede a juíza: ‘Me condena a 30 anos porque 10 é pouco’

Por Bruno Carpes

Em recente manifestação, o Conselho Nacional de Justiça, por intermédio do ministro Dias Toffoli, referiu que, por meio de mutirões e de audiências de custódia, quer reduzir o número de presos em 40%. A iniciativa do CNJ, por meio de resolução de 2015, sobreveio após julgamento da ADPF 347, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal declarou a obrigatoriedade da apresentação do preso no prazo de 24 horas, em razão do disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro. O Pacto de San José da Costa Rica diz, em seu artigo 7.º, que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”.

Analisando a audiência nos moldes descritos pelo CNJ, verifica-se a sua veia totalmente desequilibrada, contrariando o princípio mais elementar da justiça: a equidade. Policiais podem facilmente ser acusados de abuso de qualquer gênero, sem contraditório algum, fator que pode decidir em favor da liberdade do flagrado em crime, por exemplo. Aliás, os policiais responsáveis pela prisão nem sequer podem ingressar na sala de audiências. Ademais, dispositivos da referida resolução evidenciam o mero viés desencarcerador do instituto, uma vez que o juiz deverá “abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante”, bem como deverá “indeferir as perguntas do Ministério Público ou da defesa técnica relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação”.

Os defensores da audiência de custódia referem que o Brasil seria um dos poucos países ocidentais a não garantir a apresentação do preso perante o juiz de Direito

Por outro lado, os defensores da audiência de custódia referem que o Brasil seria um dos poucos países ocidentais a não garantir a apresentação do preso perante o juiz de Direito, induzindo o cidadão a pensar que o país apenas estaria seguindo a audiência nos mesmos moldes de países ditos mais civilizados. Todavia, não esclarecem que, ao contrário dos países tomados como exemplo, o Direito brasileiro havia deixado de seguir os moldes processuais de equidade consagrados na ciência jurídica. A mudança da posição do STF nos idos da década passada (seguido, posterior e inadvertidamente, pelo Legislativo federal) tornou a presunção de inocência como princípio de caráter absoluto. Ou seja, os defensores da audiência omitem que os países que realizam a audiência de apresentação não ridiculizaram o seu Judiciário, tornando-o mero “Serviço de Atendimento ao Cliente”.

Até a década de 90, se qualquer pessoa fosse flagrada cometendo crime, com prova hígida, a presunção estaria abalada, sendo a prisão mera decorrência lógica, ressalvando-se a possibilidade de o juiz aferir se existiriam motivos razoáveis e concretos para o preso responder ao processo em liberdade. A sociedade não deveria arcar com o ônus do tempo de uma pena praticamente certa na sentença. Esta é a razão, inclusive, na extinta diferenciação entre prisão em flagrante e prisão preventiva (essa em caráter de exceção) – diferenciação referendada pelo Supremo por décadas, inclusive por ministros que hoje pregam o oposto.

Passo seguinte, como sói acontecer com decisões tomadas a partir de órgãos centrais distantes das realidades locais, a resolução do CNJ interfere drasticamente no trabalho da Polícia Civil e da Polícia Militar, especialmente no interior do país. Isso porque, além de atuar com parcos recursos humanos e materiais na sua finalidade policial, as polícias têm de deslocar viatura para apresentação de presos no Fórum. Cumpre ressaltar que, na grande maioria dos municípios brasileiros, as polícias têm apenas uma equipe disponível por turno.

E pensar que tudo isso poderia ser evitado. Afinal, os ministros do STF simplesmente ignoraram, como lembrou o magistrado paulista Marcelo Assiz Ricci (e com quem concordo), que o Código de Processo Penal confere ao delegado de polícia – cargo ocupado privativamente por bacharel em Direito – a função judicial para um único ato, isto é, a realização de juízo de valor acerca da prisão em flagrante quando da apresentação do preso, cabendo à autoridade judiciária apenas realizar o juízo formal do auto de prisão em flagrante (homologação). Ou seja, o delegado, neste caso específico, é “outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”, como diz o Pacto de San José. Aliás, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Vélez Loor vs. Panamá, entendeu que a prisão pode ser apreciada por órgão administrativo, desde que cercado das garantias de imparcialidade e independência, atributos conferidos ao delegado de polícia pela Lei 12.830/2013. O CPP, portanto, não contraria o Pacto de San José, que já vigorava no Brasil por 23 anos quando editada a resolução do CNJ, sem que fosse suscitada a ilegalidade da persecução penal em razão de o juiz não ter mantido contato imediato com o preso para decidir sobre a manutenção da prisão.

Se existe ponto positivo na criação da audiência pró-bandido, este reside na demonstração de que é possível tornar os procedimentos penais mais céleres. Ante a imposição da audiência de custódia pelo Supremo, abre-se o caminho para a criação legislativa de um rito sumaríssimo para presos em flagrante, garantindo equidade à audiência com a oitiva de eventuais vítimas e testemunhas presenciais, e observando-se o mandamento constitucional de celeridade e efetividade processual.

Enquanto isso, o cidadão indaga-se, sem entender os paradigmas dos juristas das mais altas cortes: a Justiça não deveria estar preocupada com a redução do número de crimes? Definitivamente, a audiência de custódia, que poderia ser chamada de “pesquisa imediata de satisfação de presos”, determina à força a falência total do sistema de segurança pública.

Sobre o autor

Bruno Carpes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais.

Gazeta do Povo

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