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A vontade da vítima na Lei Maria da Penha: o paradoxo criado pela jurisprudência

por Editoria Delegados

Por William Garcez

Por William Garcez[1] 

A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, entre outros objetivos, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, atendendo às diretrizes preconizadas em diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário[1] e, em especial, ao disposto no art. 226, §8°, da Constituição Federal, onde se lê que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Anote-se que a criação de uma lei para proteger a mulher é louvável, notadamente em um país onde a engrenagem social funciona a partir de pilares que apontam o gênero masculino como o dominador. Ainda que a Constituição Federal proclame a igualdade de todos[2] e, de forma enfática, equipare o homem e a mulher[3], subsiste até os dias de hoje essa ideologia patriarcal.

A superioridade masculina é tão enraizada na sociedade que sequer necessita de discurso para legitimá-la[4], de modo que esta concepção é vista como um padrão normal de comportamento social. Esse paradigma se encontra tão historicamente cristalizado que ditados populares, com natureza jocosa, como, por exemplo, em briga de marido e mulher ninguém mete a colher ou ele pode não saber por que bate, mas ela sabe por que apanha, acabam por naturalizar a violência doméstica[5].

Não há dúvidas, assim, de que a Lei 11.340/06 representa um incomensurável avanço na proteção da mulher, que vai desde a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, para tratar de forma mais segura e menos burocrática essas situações, até a previsão de medidas protetivas de urgência, para viabilizar uma resposta mais célere por parte do Estado nos casos de infrações penais.

Assim, tratando-se de violência doméstica e familiar contra a mulher, cujo conceito se extrai de interpretação conjunta[6] dos artigos 5°[7] e 7°[8] da Lei 11.340/06, há incidência de toda a gama de proteção multidiciplinar conferida pela lei à mulher vítima.

Diz-se proteção multidiciplinar porque a Lei 11.340/06 possui dispositivos de natureza civil, previdenciária, trabalhista, processual, etc., não se tratando, ao contrário do que muitos pensam, de uma lei exclusivamente penal. Aliás, refira-se, o único tipo penal nela previsto[9] foi incluído pela Lei 13.641/18, praticamente doze anos após a sua vigência.

Registrados esses breves apontamentos, e entrando, agora, no tema que se pretende analisar, chamamos atenção ao disposto no art. 41 da lei em estudo, o qual estabelece que não se deve aplicar a Lei nº 9.099/95 aos crimes[10] praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista.

Diante dessa determinação, como o instituto da representação, no crime de lesões corporais leves, está previsto no art. 88 da lei 9.099/95[11], sedimentou-se na jurisprudência[12] o entendimento de que, nessa hipótese, a ação penal é pública incondicionada[13], i.e., não depende de manifestação da vontade da vítima, devendo o Estado proceder de ofício.

Esse entendimento, em outras palavras, significa que além de não se prescindir da vontade da vítima para o início da persecução penal, deve ser desconsiderada a sua manifestação em sentido contrário, i.e., ainda que a vítima manifeste o desejo de não querer a instauração de um processo penal, devem as autoridades desconsiderar a sua vontade, obrigando-a a suportar o desgaste processual.

O Supremo Tribunal Federal, em 2012, fixou o entendimento de que não seria razoável deixar a atuação estatal a critério da mulher, pois a exigência dessa condição permitiria a reiteração da violência, caso a vítima não representasse ou se retratasse da representação oferecida, esvaziando-se a proteção pretendida pela lei, sendo, assim, necessária a intervenção estatal desvinculada da vontade da vítima.

É como se o processo penal fosse a solução imprescindível do problema da vítima. O entendimento do Tribunal Supremo, longe da realidade, é no sentido de que, submetendo-se o agressor (e a vítima) ao processo penal, os problemas estão resolvidos e a agressão não vai ocorrer novamente.

Seria bom se fosse assim, mas, lembrando do saudoso Nelson Rodrigues, essa não é a vida como ela é. Não demorou muito e, em 2015, com a edição da súmula 542[14], o Superior Tribunal de Justiça passou a adotar o mesmo entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Com a devida vênia à jurisprudência dos Tribunais Superiores, nos parece que retirar da mulher o direito de decidir sobre se quer ou não a instauração de um processo criminal, quando se está diante do crime de lesão corporal leve, significa negar sua liberdade, reduzindo-a a mera espectadora da ação estatal.

Nesse sentido, Renato Magalhães[15] sustenta:

A idéia de retirar da vítima-mulher o direito de decidir sobre a autorização para instauração de ação penal nos casos de lesão corporal dolosa leve praticados com violência de gênero, nos parece, com a devida vênia, um equivocado contra-discurso na sua política emancipacionista. Alie-se o pedantismo de pretender saber o que é melhor para a mulher, subestimando-lhe força, coragem e capacidade de gerir sua própria vida. Na verdade, aderindo à natureza incondicionada da ação, estamos suprindo o Direito Penal de um paternalismo estatal que decide pela mulher o seu próprio destino.

Pretende-se que a mulher vítima seja submissa àquilo que se definiu ser o melhor para ela, desconsiderando e desrespeitando sua vontade, colocando-a em uma condição de ser inferior, como se fosse incapaz de decidir o que é melhor para si, tal qual o ideal de cultura machista e patriarcal que a própria lei pretende corrigir.

Compactuando do mesmo entendimento, e entendendo que a desconsideração da vontade da vítima é pura violência processual, Leonardo Marcondes[16] lembra a importância que tem o papel da vítima na persecução penal, sendo a sua vontade, na maioria das vezes, imprescindível. Veja-se:

Não queria absolutamente nada (na esfera penal). Havia um grito oculto, porém flagrante, que clamava pela não intervenção estatal. Ela, definitivamente, não queria uma “solução” fictícia do Estado. Prisão ou falsas medidas de proteção não resolveriam aquela questão.

Inconformada com a total desconsideração de sua manifestação de vontade e com a supressão absoluta de sua autonomia para gerir os próprios conflitos, até os mais íntimos, passou a responder da mesma forma que fora tratada pelo Estado. Com sabotagem! Negou, em suas declarações oficiais, que fora agredida, e se recusou a ser submetida a exame de corpo de delito. Em suma: tratou de sabotar o sistema que insistia em desconsiderá-la!

E assim é, sob o manto de uma suposta “proibição de proteção deficiente”, ofende-se a dignidade da mulher vítima de violência doméstica e familiar, quando, na verdade, se deveria protegê-la. Afinal, como entender que o propósito protetivo da Lei 11.340/06 se perfaz suprimindo o direito de escolha da mulher?

Conforme enfatiza Marcondes[17], é visível o desrespeito aos tratados internacionais e, notadamente à recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas, no sentido de que a vítima seja tratada com compaixão e respeito pela sua dignidade.

Cumpre frisar, por pertinente, que a Lei 11.340/06 é totalmente compatível com o instituto da representação, sendo que o art. 16, é claro ao estabelecer que, nas ações penais públicas condicionadas à representação da vítima, só será admitida a renúncia perante o juiz, em audiência especialmente designada para essa finalidade[18], antes do recebimento da denúncia.

A própria lei enfatiza que a manifestação de vontade da vítima, como condição de procedibilidade, nos casos autorizados pela legislação, deve ser respeitada, sendo que a supressão de seu direito de escolha se dá apenas porque o instituto da representação, no caso de lesão corporal leve está na Lei 9.099/95, estivesse no Código Penal, como no crime de ameaça, por exemplo, estaria tudo certo.

Não se olvide que, para além do Direito Penal, há uma questão de Direito de Família muito mais relevante do que a imposição da pena criminal ao agressor. É essa questão de fundo que precisa ser resolvida e, s.m.j., ela passa longe do processo penal. Além disso, a imposição de um processo penal pode estremecer ainda mais as bases da relação doméstica e familiar, sendo que a consideração da vontade da vítima em muito facilitaria a composição do conflito, se essa for a sua vontade.

De que forma as partes irão se reconciliar, dividindo o mesmo teto, quando há um processo criminal em andamento, cuja finalidade primordial (livre de demagogia) não é outra senão a aplicação da pena? Como referimos, a solução efetiva do problema passa longe do direito penal.

Entretanto, lamentavelmente, como assevera Marcondes[19]:

O foco não está no conflito, na violência ou na vítima; muito menos em qualquer ideia de terapia ou composição. O centro gravitacional é sempre o castigo e, por via indireta, o meio necessário para se chegar até ele. O que importa, em suma, é a pena criminal e o processo penal.

Esse desvio de foco parece desconhecer que o Direito Penal, como instrumento formal de controle, possui objetivos não aparentes que vão além do discurso produzido na superfície e que, na maioria dos casos, não resolve o problema, apenas pune aquele que violou a norma.

Assentados esses argumentos, entendemos que o disposto no art. 41 da Lei Maria da Penha deveria ser interpretado no sentido de impedir a aplicação das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 ao agressor, mas não para desconsiderar a vontade da vítima quanto ao início do processo no crime de lesões corporais leves.

Inclusive, esse é o entendimento que parece se coadunar com o espírito da lei que, no seu art. 17, preconiza ser vedada a aplicação de penas de cesta básica, prestação pecuniária ou, ainda, a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

Nesse aspecto, andou bem o Superior Tribunal de Justiça ao definir que “a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha[20] e que “a prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos”[21].

A necessidade de se respeitar a vontade da vítima faz parte da vontade do legislador, pois, quanto ao regramento das medidas protetivas de urgência, que têm caráter cautelar e nitidamente protetivo, a lei não confere ao delegado de polícia a possibilidade de representar pela proteção da vítima, podendo (devendo) apenas remeter ao Poder Judiciário o pedido da vítima[22], i.e., a lei entende que deve o delegado respeitar a vontade da vítima no sentido de querer ou não a especial proteção.

 

Portanto, se para a sua proteção cautelar imediata o legislador condicionou a efetivação à necessidade de manifestação de vontade da vítima, é evidente paradoxo desconsiderar a sua vontade para o início da persecução penal, no caso de lesão corporal leve, mormente em se considerando que o Direito Penal é a última forma de resolução dos conflitos, sendo regido pelo princípio da subsidiariedade.

 

Considerações Finais

Posto isso, concluímos que a Lei 11.340/06 representa avanço na proteção da mulher, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar no seio de uma sociedade firmada sob pilares que apontam o gênero masculino como o dominador. Entendemos que o disposto no art. 41 da Lei 11.340/06 não deveria ser interpretado no sentido de suprimir a vontade da vítima no que se refere ao início da persecução penal quanto ao crime de lesão corporal leve.

Afirmamos que a Lei Maria da Penha é totalmente compatível com o instituto da representação, frisando, inclusive, que a manifestação de vontade da vítima deve ser respeitada nos casos autorizados. Trata-se de uma condição de procedibilidade, nos moldes do processo penal tradicional.

Reforçamos que retirar da mulher o direito de decidir sobre o início da persecução penal, no crime de lesão corporal leve, significa negar sua liberdade. Pensamos que desconsiderar a vontade da mulher é um equivoco que contraria a política emancipacionista, acarretando a sua submissão àquilo que se convencionou ser o melhor, sem considerar o seu desejo, o que é típico de uma cultura machista que a própria lei pretende corrigir.

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[1] Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (chamada de Convenção de Belém do Pará.

[2] art. 5°, inciso I, Constituição Federal.

[3] art. 226, §5°, Constituição Federal.

[4] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p.18.

[5] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 5ª edição. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 25.

[6] DIAS, Maria Berenice. Loc. cit, p. 62-63.

[7] Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

[8] Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

[9] Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

[10] Neste aspecto, registramos que, embora a lei refira-se apenas aos crimes, diante dos fins sociais a que a lei se destina, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (HC 280.788) e do Supremo Tribunal Federal (HC 106.212) é no sentido de que o dispositivo também deve abarcar as contravenções penais, pois a vontade do legislador não poderia ser outra, senão a de alcançar todas as infrações penais.

[11] Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

[12] STF, Pleno, ADI 4424 e ADC19, min. rel. Marco Aurélio, j. 08/02/2012.

[13] STJ, 3ª Secção, Pet. 11.805, min rel. Rogério Schietti Cruz, j. 10/05/2017.

[14] Nesta ocasião em que foi revista a tese fixada no REsp 1.097.042, julgado em 2010, quando se estabeleceu entendimento em sentido contrário.

[15] MAGALHÃES, Renato Vasconcelos. A representação da vontade da vítima na Lei Maria da Penha.Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13191/a-representacao-da-vontade-da-vitima-na-lei-maria-da-penha. Acessado em 23/04/2020.

[16] MACHADO, Leonardo Marcondes. Desconsiderar vontade da vítima na Lei Maria da Penha é pura violência processual. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-20/academia-policia-desconsiderar-vontade-vitima-pura-violencia-processual#_ednref3. Acessado em 23/04/2020.

[17] MACHADO, Leonardo Marcondes. Loc. cit.

[18] Logicamente que a audiência de retratação da representação pressupõe a iniciativa da vítima, a fim de que a providência não ganhe cunho constrangedor, viciando a sua vontade, induzindo-a à retratação (STF, HC 98.880, min rel. Marco Aurélio, j. 04/10/2011.

[19] MACHADO, Leonardo Marcondes. Loc. cit.

[20] STJ, Súmula 536, 3ª Seção, j. em 10/06/2015.

[21] STJ, Súmula 588, 3ª Seção, j. em 13/09/2017.

[22] Art. 12, inc. III, Lei 11.340/06.

 

[1] William Garcez é Delegado de Polícia no Rio Grande do Sul. Pós-graduado com Especialização em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Direito Criminal na graduação e na pós-graduação da Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e em cursos preparatórios para concursos. Escritor de artigos jurídicos.

 

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