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A invenção do óxi

por Editoria Delegados

Por Tarso Araujo

 

Barriga é o nome que se dá para os erros de informações cometidos pela imprensa. Pesquisando e escrevendo sobre drogas para diversos veículos do país, tive a infelicidade de testemunhar dezenas, talvez centenas de erros dos mais variados tipos na cobertura sobre o tema. Pudera. O tema das drogas é um dos assuntos mais complexos que um jornalista pode cobrir. Alguns erros são fruto de má-fé e tentativas de desinformar a população, algo relativamente comum num assunto tão disputado ideologicamente. Mas a maioria dos erros são mesmo consequência da falta de tempo e de fontes confiáveis na correria do trabalho de redação. Por isso, topei escrever no ano passado o livro Guia sobre Drogas para Jornalistas, por encomenda da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas. O livro é um glossário de termos importantes para a cobertura sobre o tema, para ajudar o jornalista que precisa aprender rapidamente um conceito para não escrever uma asneira na notícia que você vai ler. O texto abaixo é uma adaptação do que escrevi para a introdução do livro: a história de como a imprensa inventou o óxi, uma droga que jamais existiu.

Se você tiver curiosidade de ler o livro, pode baixá-lo por aqui: bit.ly/guiasobredrogas. Boa leitura.

 

A IMPRENSA NO REHAB

“Uma ameaça devastadora que se espalha pelo país.” Essa era a manchete de um dos jornais de maior circulação no Brasil num domingo de abril de 2011. “Derivado de cocaína e mais letal que o crack, óxi destrói jovens e crianças no Acre”, dizia o subtítulo. Segundo o enviado especial a Rio Branco, a nova droga é uma pedra, como o crack. “A diferença é que é mais barato e mata mais rápido”, porque é feita de cal virgem e gasolina. “Em poucas semanas, leva ao emagrecimento e à perda de dentes”, e o usuário “passa a ter uma cor amarelada”. O enfoque da reportagem era policial, com informações sobre o tráfico nas fronteiras do Acre e em praças de Rio Branco.

Um telejornal da manhã resumiu o medo. “Óxi pode estar mais perto de São Paulo.” Mas coube ao telejornal do horário nobre repercutir os sintomas pavorosos da substância “mais nociva que o crack”. Jornais, revistas, sites, boa parte da imprensa ­repercutiu a pauta. Afinal, tratava-se de uma nova e apavorante droga que emergia do coração da selva, ameaçando chegar aos centros urbanos e se espalhar como um vírus ebola. A história do óxi era sensacional. Dava um filme, era impossível não fazer uma suíte.

Mas a coisa era séria. E, em vez de virar filme, foi parar em Brasília. Em 7 de junho, menos de dois meses depois de a droga “estrear” na imprensa nacional, o deputado Padre Ton (PT-RO) convocou a audiência pública “Óxi e outras drogas na Amazônia Legal”. Em entrevista ao site de uma importante revista, ele se disse preocupado: “O avanço das drogas é um dos flagelos da atualidade”. Em sua segunda sessão, em 28 de junho, a audiência teve uma exposição de Adriano Otávio Maldaner, perito químico e chefe do Laboratório de Química Forense do Instituto Nacional de Criminalística – a maior autoridade “CSI” das drogas no Brasil.

O perito apresentou o resultado da análise de 20 amostras de apreensões de “óxi” feitas pela Polícia Civil na capital e em diversas cidadelas do Acre apontadas como rota da droga. Maldaner foi categórico: “Não posso dizer que existe uma nova droga”[1]. Do total de amostras, 30% não podia sequer ser fumada – era cocaína em pó[2]. O resto era crack ou pasta base. O laboratório da Polícia Federal (PF) ainda testou as amostras para a presença de solventes e de cal virgem – que a imprensa relatava serem ingredientes da devastadora mistura do óxi. Nenhuma amostra tinha quantidade dessas substâncias superior à das amostras de crack apreendidas pela PF, usadas no estudo para comparação. O perfil químico das pedras de óxi era, em tudo, o mesmo do crack.

“De tudo o que chegou aqui teoricamente como óxi, nada era óxi”, concluiu o cientista forense. Tudo o que fora dito sobre a substância na imprensa – sua concentração, sua composição, sua própria existência – era invenção, boato, suposições que não resistiam ao menor escrutínio. Passada a limpo, a história do óxi não era sensacional. Era sensacionalismo, apenas. Mau jornalismo.

Não houve nenhuma chamada de capa sobre a segunda sessão da audiência pública ou sobre a perícia da PF. Nenhuma grande reportagem veio desmentir a história da “nova” droga – nem mesmo uma errata. Apesar da impopularidade na mídia, o estudo de Maldaner e seu time de cientistas cumpriu sua função: frear uma onda de sensacionalismo que se alastrava com “notícias alarmistas e imprecisas”[3] sobre uma droga que sequer existia.

A história do óxi é um bom exemplo de como a imprensa influencia de forma decisiva e urgente a opinião pública e a política nacionais, neste caso sobre o tema específico das drogas. Infelizmente, ela também é emblemática do despreparo, da negligência e mesmo do preconceito com que o jornalismo brasileiro frequentemente aborda o assunto. Uma análise feita pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância em 2005 sobre reportagens de 74 veículos de imprensa mostrou que 28% delas associam o tema à violência e ao crime e tratam usuários esporádicos e dependentes da mesma maneira pejorativa, como “bêbados, viciados e drogados”[4]. Segundo os autores, as reportagens “contribuem para a desinformação”, estimulando o estigma social e dificultando ações de saúde. Outro estudo sobre o tema, publicado em 2006, concluiu que “os resultados confirmam um descompasso entre imprensa e epidemiologia, bem como a superficialidade com que um tema tão complexo é tratado”[5].

Na década de 2010, notam-se alguns avanços. Com a legalização da maconha no Uruguai e nos Estados Unidos, e o fracasso evidente da segurança pública no controle do tráfico, os veículos passaram a dedicar mais páginas sobre o debate de políticas de drogas. Além disso, de 2014 em diante, o tema maconha medicinal ganhou um espaço amplo e singular – é uma das raras pautas que não trata uma droga ilícita como algo essencialmente mau. O jornal que produziu a “barriga” do óxi passou a cobrir o tema das drogas, em outra (e nova) editoria denominada “Sociedade”. No geral, porém, a cobertura nacional ainda é majoritariamente policialesca, superficial, repleta de erros, preconceitos e sensacionalismo.

A primeira explicação para todos esses problemas da cobertura sobre drogas é comercial. Qualquer diretor de jornal sabe que sexo e violência, sonho e medo, são ímãs de audiência e cliques. E as substâncias psicoativas – especialmente as ilícitas – têm sido historicamente apresentadas como um bicho-papão para amedrontar leitores e alavancar vendas. Os artifícios são sutis, mas eficazes. A sinonímia entre uso de drogas e dependência, por exemplo, leva o cidadão a pensar que basta seu filho tocar num baseado para se tornar um “viciado”. Somando a isso mitos exaustivamente replicados, como o de que “a maconha é porta de entrada para drogas pesadas como o crack”, pais e mães ficam apavorados diante de qualquer sinal de fumaça.

Em 2013, uma pesquisa do Datafolha revelou que o envolvimento dos filhos com drogas é o maior medo das famílias brasileiras – mais do que assaltos e desemprego, por exemplo. O resultado é, de certa forma, um atestado da eficácia dos meios de comunicação em espalhar o medo. Em 1983, quando o instituto de pesquisa fez o levantamento pela primeira vez, o maior medo das famílias era a inflação – tema repisado pela imprensa com a ilustração de um dragão. Vinte anos depois, o animal que cospe fogo foi substituído por outro ser mitológico, o “zumbi da cracolândia”. A estratégia de assustar para vender segue a mesma. A solução para essa fonte de problemas da cobertura de drogas se resume a uma palavra: ética. Cabe aos donos, aos diretores e aos editores de veículos abrir mão do artifício sensacionalista. É a própria credibilidade de seus veículos que está em jogo.

Outra causa frequente das falhas da cobertura sobre o tema é, digamos, estrutural. A popularização da internet e, depois, dos smartphones foi um duro golpe para os veículos tradicionais, especialmente para os jornais da grande imprensa. Cada vez mais, as pessoas recorrem aos amigos das redes sociais para se informarem. A queda na circulação e no faturamento fez os jornais encolherem e demitirem jornalistas em massa. Sobrecarregados, os que sobram nas redações culpam a falta de profissionais e de tempo para realizar as pautas com precisão e profundidade[6]. Mas, numa época marcada pela massificação das fake news, a crise não deveria ser uma desculpa para mazelas. Ao contrário, deveria ser um incentivo a mais na busca do bom jornalismo. Mais uma vez, é a credibilidade que fica ameaçada. Ela é o que pode garantir a sobrevivência dos veículos entre a profusão de informações duvidosas que se acessa na internet.

Afinal, mas não menos importante, outra causa da precariedade da cobertura sobre drogas é o despreparo dos jornalistas para lidar com um tema complexo. Poucos assuntos têm um caráter tão multidisciplinar. Um debate sobre políticas de drogas – como a validade das internações compulsórias, por exemplo – envolve necessariamente questões médicas, jurídicas, sociológicas e até filosóficas. É muito difícil para um jornalista transitar por tantas áreas com fluência. Além disso, as drogas estão vinculadas a questões de ordem cultural, moral e religiosa, que influenciam até mesmo a ciência. O debate dentro de cada área de conhecimento é cheio de controvérsias de fundo ideológico.

Aos jornalistas e comunicadores em geral cabe se preparar melhor para cobrir esse tema em toda sua complexidade, com responsabilidade e precisão. Mas quem consome informação também têm o papel, não menos importante, de desconfiar do que se lê e vê por aí. E de fiscalizar a atuação dos veículos de comunicação, sejam eles velhos bastiões da imprensa ou jovens canais de Youtube. Reparou que determinada informação está errada, incompleta, enviesada? Mande carta para o ombudsman, comentários na rede social, reclamações ao editor: mostre a todos que você está de olho. A história do óxi – e tantas outras barrigas da cobertura de drogas – são um exemplo de como a mídia pode manipular nossas emoções e vidas com mitos e monstros inventados. O papel dos meios de comunicação deveria ser justamente o oposto: nos proteger dessas mentiras. É preciso estar de olhos bem abertos para que eles cumpram essa missão sem vacilar.

*

O Guia sobre Drogas para Jornalistas, escrito por Tarso Araujo, foi produzido pela Catalize Comunicação Social em parceria com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e o IBCCRIM, com financiamento da organização Social Science Research Council, dos EUA.

Fonte: Araujo, Tarso. Guia sobre Drogas para Jornalistas – 1a eD. – São Paulo: IBCCRIM-PBPD-CATALIZE -SSRC, 2017.

[1] MALDANER, A. O. Comissão da Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional. Audiência Pública, 28 jun. 2011. p. 11.

[2] SILVA JUNIOR, R. C. da; MALDANER, A. O et al. Demystifying “oxi” cocaine: Chemical profiling analysis of a “new Brazilian drug” from Acre State. Elsevier Health. 2012, Sept. 10;221:113-119.

[3] Idem, p. 114.

[4] ANDI. Mídia e drogas – O perfil do uso e do usuário na imprensa brasileira. São Paulo: Cortez, 2005.

[5] NOTO, A. R.; MASTROIANNI, F. C. As drogas psicotrópicas e a imprensa brasileira: análise material publicado e do discurso de profissionais da área de jornalismo. Repositório Institucional Unifesp, 2006. Disponível em: <http://repositorio.unifesp.br/handle/11600/8969&gt;. Acesso em: 3 nov. 2017.

[6] Idem.

 

Por Tarso Araujo

Abril

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