Por Adriano Sousa Costa, Anderson Marcelo de Araújo e Hudson Benedetti
Do procedimento escalonado do reconhecimento pessoal
O reconhecimento pessoal é um meio de prova previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal e que pode ser didaticamente dividido em quatro etapas. Conquanto possa ser presidido pela autoridade judicial, na fase processual, é mais comum que seja realizado pelo delegado na fase de investigação criminal.
A primeira etapa desse procedimento escalonado é a declaratório-descritiva, na qual o reconhecedor é convidado a indicar, perante o delegado, características do suspeito, principalmente sexo, altura, cor de pele, idade, cor do cabelo etc. Perceba-se que a vítima ou a testemunha não têm condições de indicar qualquer elemento individualizador mais concreto nesse momento, como o trecho do nome, alcunha, parentesco ou local de residência.
A segunda etapa se resume à arregimentação de pessoas com características semelhantes às do suspeito da prática criminosa, por isso nominados suspeitos putativos.
Perceba-se que a investigação pode ter trazido à baila suspeitos que variam um pouco das características descritas originalmente pela vítima ou pela testemunha. Mas, nesse caso, foi sábio o legislador quando determinou que o paradigma para a escolha de suspeitos putativos sejam as características do indivíduo que será submetido a reconhecimento. O artigo 226, inciso II, do CPP menciona: “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
Enfim, realizado o perfilamento entre os suspeitos real e putativos, inicia-se a terceira etapa (apontamento), na qual o reconhecedor indicará se algum dos indivíduos colocados na sua presença é o autor do delito.
Como ato derradeiro, independentemente de o resultado do reconhecimento ser positivo, passar-se-á à quarta etapa do procedimento (autuação), a qual formalizará o documento para juntada nos autos.
Do reconhecimento pessoal parcial
O resultado do apontamento da vítima e da testemunha pode ser positivo (reconhecedor aponta com certeza o suspeito), negativo (reconhecedor diz que nenhum dos indivíduos presentes no ato é o autor de delito) ou parcial (reconhecedor diz que o suspeito possui semelhanças probabilísticas com o autor do fato).
Negar a importância do reconhecimento parcial seria desacreditar a relevância da busca de linhas investigativas ao longo do procedimento persecutório. Toda investigação parte de hipóteses iniciais (mais frágeis) em face das quais constroem-se outras mais certeiras. Sob esse prisma, o resultado do reconhecimento, ainda que parcial, gera consequências relevantes para a investigação, principalmente em face de crimes que, desde o início, não permitem a determinação imediata de suspeitos (o que é comum aos crimes patrimoniais violentos, inclusive).
Também, ainda que parcial, o reconhecimento pode servir de norte-magnético para a operacionalização de medidas mais apuradas (interceptação telefônica e afastamento de sigilos de dados) e para a realização de exames periciais mais certeiros, a exemplo do DNA. Por isso, uma das funções do reconhecimento parcial é permitir a continuidade das investigações (através de outras ferramentas probatórias mais cartesianas) em desfavor daquele suspeito não totalmente descartado.
Por isso, a nosso ver, o reconhecimento, como qualquer outra prova [1], principalmente quando parcial, deve ser avaliado como elemento indicativo-corroborador em um contexto probatório mais amplo.
Do falso positivo: do reconhecimento calunioso, do putativo e do étnico-racial
Aponte-se que o reconhecimento positivo pode ser oriundo tanto de uma mentira deliberada (o que nominamos reconhecimento calunioso), ou seja, o reconhecedor sabe que aquele indivíduo apontado não é o autor do delito, tanto quanto de uma falsa memória (reconhecimento putativo), percepção contaminada por fatores externos variados. Em semelhante sentido aponta MATIDA [2]:
“Nas falsas memórias, por contaminação do registro, armazenamento ou na tentativa de se recuperar o fato ocorrido, falta correspondência entre o que aconteceu e o que é recordado (Stein, 2009). O fato ocorrido é x, mas a vítima/testemunha, por variáveis que atuam dificultando o registro, o armazenamento ou a recuperação, recorda y e, por isso, relata y. A falsa memória acompanhada da sinceridade do relato provoca um erro honesto; um descompasso entre o relatado e o ocorrido que é, inobstante, bem intencionado. Na mentira, vale esclarecer, para continuar com o mesmo exemplo do fato x, a vítima/testemunha recorda x e relata deliberadamente o fato y. descompasso entre o relatado e o experenciado por ela não é bem intencionado mas desonesto.” (Negrito dos autores)
Ousamos adicionar uma espécie aos gêneros acima: o falso positivo étnico-racial. É aquele que deriva de semelhanças étnicas e raciais entre o reconhecido e o autor do fato e que, por heurística, induzem o reconhecedor a apontar aquele indivíduo como sendo o provável autor dos fatos.
E não se pode negar que isso pode acontecer no Brasil, principalmente por se perceber que paradigmas fenotípicos e étnico-raciais são frequentemente utilizados pelas próprias agências policiais ostensivas como norte-magnético para a realização de buscas pessoais, mascarando a verdadeira motivação pelo rótulo do “tirocínio” [3].
Os trejeitos, a forma de falar, as vestimentas e a cultura (que são expressões do componente étnico-racial) também são utilizados como atalhos informacionais pelo reconhecedor em sua conclusão enviesada de que o reconhecido mantém grande semelhança com o suspeito. Por isso a grande importância de que os suspeitos putativos ostentem simétricas características do suspeito real, inclusive as étnico-raciais.
Conquanto seja sabida a grande dificuldade de se operacionalizar um reconhecimento étnico-racial no mundo policial, ao menos que sejam tais vetores inspiração hermenêutica para a coleta dos elementos descritivos iniciais previstos no inciso I do artigo 226 do CPP: “a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida”.
O reconhecimento fotográfico precário: uma história jurisprudencial e o overruling
O reconhecimento fotográfico só ganhou maior relevo nos tribunais superiores recentemente. Restrito era o debate sobre as consequências do inadequado procedimento de reconhecimento fotográfico, principalmente acerca das nulidades e da contaminação frente aos demais elementos que dele derivassem.
O primeiro precedente de que se tem notícia no âmbito do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria aponta para a precariedade do reconhecimento em virtude da inobservância do procedimento legal. Como consequência, impedia-se que, isoladamente considerado, fosse suficiente para um decreto condenatório, conforme:
“EMENTA: I. […]. III. Reconhecimento fotográfico. O reconhecimento fotográfico à base da exibição da testemunha da foto do suspeito é meio extremamente precário de informação, ao qual a jurisprudência só confere valor ancilar de um conjunto de provas juridicamente idôneas no mesmo sentido: não basta para servir de base substancial exclusiva de decisão condenatória.” (HC 74.751, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, 1ª Turma, julgado em 4/11/1997, DJ 03-04-1998 PP-00003 EMENT VOL-01905-03 PP-00405)
Conquanto existissem precedentes que apontavam para a conspurcação do elemento probatório produzido, também existiam decisões (inclusive algumas mais recentes do STF sobre o tema) admitindo o uso do reconhecimento fotográfico como prova idônea, ainda que inobservado o procedimento no artigo 226, conforme:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO DUPLAMENTE CIRCUNSTANCIADO. GRAVIDADE CONCRETA DO DELITO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA PARA FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL FECHADO. RECONHECIMENTO PESSOAL. ART. 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AUSÊNCIA DE NULIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.” (RHC 161.466 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, 2ª Turma, julgado em 5/4/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 02-05-2019 PUBLIC 03-05-2019)
E ainda nesse sentido:
“Reconhecimento fotográfico e durante audiência em juízo. Validade dos atos, ainda que não realizados na forma prevista no artigo 226 do CPP. Suficiência para a procedência da ação penal. Pena. Fixação acima do mínimo legal justificada pela segunda qualificadora, a funcionar como circunstância judicial desfavorável. Admissibilidade. Condenação mantida. Preliminar de nulidade rejeitada. Apelo, no mérito, desprovido.” 6. Agravo regimental DESPROVIDO.” (ARE 823.431 AgR, relator(a): LUIZ FUX, 1ª Turma, julgado em 10/2/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-041 DIVULG 03-03-2015 PUBLIC 04-03-2015)
Na linha da supracitada clivagem interpretativa, o Superior Tribunal de Justiça não possuía uma jurisprudência uníssona sobre a matéria, conservando julgados que admitiam o reconhecimento fotográfico como prova idônea, mesmo que produzido sem o rigor do artigo 226 do CPP, bem como outros em sentido contrário.
Mas com o julgamento do HC n° 598.886 SC a jurisprudência do STJ se firmou no sentido da imprestabilidade do reconhecimento fotográfico precário como elemento probatório, superando eventuais dúvidas sobre as consequências do malferimento do procedimento legal de coleta.
Neste case, deixou-se claro que o procedimento do artigo 226 do Código de Processo é mandamental, e não uma mera inspiração para a tomada de decisão de agentes públicos persecutórios. Contudo, reforçou-se que, existindo outros elementos probatórios autônomos, a nulidade do reconhecimento não produz-lhe a contaminação reflexa. Vejamos:
“O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. […]
O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de “mera recomendação” do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório. […]
4. O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato. […]
De todo urgente, portanto, que se adote um novo rumo na compreensão dos Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas; não se pode mais referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças.”
Da imprecisão subjacente e da confirmação de dados qualificativos
Se a vítima ou a testemunha apontam de forma firme e convincente em desfavor de um indivíduo, desde o início da investigação, faltando somente a confirmação de alguns poucos dados qualificativos do suspeito, não há necessidade de “reconhecimento fotográfico”, nos termos do artigo 226 do Código de Processo Penal.
Imagine, hipoteticamente, o cenário em que uma testemunha diz que o autor de tentativa de homicídio é seu vizinho de bairro, amigo de infância, o qual se chama João. A testemunha teria presenciado toda a dinâmica criminosa e soube individualizar quem é o autor do fato, mesmo não sabendo declinar o seu nome completo (e demais dados qualificativos).
Nestes casos, o procedimento de confirmação de dados do suspeito basta. Está calcado na prévia e confiável individualização realizada pela vítima ou pela testemunha em atos investigativos anteriores (a exemplo de sua oitiva). E, neste caso, mostrar a fotografia do suspeito à vítima ou à testemunha — para que confirme se aquela é a pessoa que já havia indicado como suspeito — não pode ser confundido com o reconhecimento fotográfico.
E essa diferença conceitual entre o reconhecimento fotográfico e a confirmação de dados qualificativos não é tão nova assim. Inclusive é trazida pela própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a qual firmou entendimento de que não se invalida condenação sustentada por apontamento de autoria coligada à apresentação de fotografia para a confirmação de qualificação de suspeito, conforme decisão recente que apontou o distinguishing:
“Apesar do reconhecimento fotográfico na fase inquisitorial não ter observado o procedimento legal, o presente caso enseja distinguishing quanto ao acórdão paradigma da nova orientação jurisprudencial, tendo em vista que a vítima relatou, nas fases inquisitorial e judicial, conhecer o réu pelo apelido de ‘boneco’, bem como o pai do acusado, por serem vizinhos, o que não denota riscos de um reconhecimento falho. 3. Nos termos da jurisprudência desta Corte, nos crimes contra o patrimônio, a palavra da vítima possui especial relevo, tendo em vista sobretudo o modus operandi empregado na prática do delito, cometido na clandestinidade, sendo que a reversão das premissas fáticas do julgado, para fins de absolvição, demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório, inadmissível a teor da Súmula 7/STJ. 4. Recurso especial improvido.” (grifo dos autores) (REsp n. 1.969.032/RS, relator ministro Olindo Menezes, desembargador convocado do TRF 1ª Região, 6ª Turma, julgado em 17/5/2022, DJe de 20/5/2022.)
Essa dicotomia precisa ser pontuada aqui para não se colocar a vítima ou a testemunha de crimes violentos em situação de revitimização desnecessária, pois não parece razoável ser ela obrigada a se apresentar no mesmo ambiente em que o suspeito está para a realização de “auto de reconhecimento”. Até mesmo para evitar a incidência do artigo 15-A da Lei nº 13.869/2019 em face da autoridade persecutória que banalizar a realização do reconhecimento pessoal em casos absolutamente despropositados.
[1] Parte da doutrina e jurisprudência inserem o reconhecimento pessoal/fotográfico no âmbito das provas irrepetíveis, dando-se maior valor ao reconhecimento feito na fase de investigação do que na fase jurisdicional, em razão da proximidade entre o fato e o procedimento de reconhecimento.
Sobre os autores
Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito e doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.
Anderson Marcelo de Araújo é policial civil do Distrito Federal, ex-delegado de polícia de SC e ex-oficial do Ministério Público do RS.
Hudson Benedetti é delegado de Polícia Civil de Goiás, professor de Direito Penal para carreiras policiais do curso CPPolícia, pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes e pós-graduado em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FespMDFT).
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