Por Matheus Tauan Volpi, Murilo Alan Volpi e Nilson Marão Baracat
Por Matheus Tauan Volpi, Murilo Alan Volpi e Nilson Marão Baracat
A violência doméstica e familiar contra mulher é um dos mais graves problemas a serem enfrentados na atualidade. Inúmeras mulheres são vítimas de violência todos os dias. Embora inúmeros episódios de violência permaneçam subnotificados, sem integrar os dados oficiais e as estatísticas, há, por outro lado, muitos casos em que a violência é denunciada e os agressores são, não raro, presos em flagrante delito.
Nessas hipóteses, questão ainda sem resposta satisfatória na doutrina é saber se o delegado de polícia poderá ou não arbitrar fiança nos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher.
O delegado de polícia é a primeira autoridade a analisar situações flagranciais. É o primeiro agente público com atribuição para decidir pela prisão do autor ou pela sua imediata liberação. Apresentado o preso ao delegado de polícia, este ouvirá o condutor, as testemunhas, a vítima e, ao final, interrogará o acusado, lavrando o auto de prisão. Concluído o procedimento, o delegado de polícia, havendo indícios de autoria e prova da materialidade, mandará recolher o agressor à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança.
Na análise das situações flagranciais, a lei permite que a autoridade policial conceda fiança nas infrações penais cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos (artigo 322 do CPP), o que abrange a maior parte dos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher (artigos 129, §13, e 147 do CP, artigo 21 da Lei de Contravenções Penais etc.). Feito o pagamento da fiança, o autor é imediatamente posto em liberdade. Apesar do emprego do verbo “poderá” pelo artigo 322 do CPP, a concessão da fiança é um verdadeiro dever, já que, em caso de indevida recusa, haverá “coação ilegal” na liberdade de locomoção, autorizando o manejo do Habbeas Corpus (artigo 648, V, do CPP). Na antiga Lei de Abuso de Autoridade, ademais, era expressamente catalogada como crime a conduta de “levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei”.
O ordenamento brasileiro é omisso quanto ao cabimento ou não de fiança nas infrações penais que envolvam violência doméstica e familiar contra mulher. Apenas há vedação expressa à concessão de fiança pela autoridade policial em relação a um único crime praticado nesse contexto. Veda-se especificamente a concessão de fiança policial no delito de violação de medida protetiva de urgência, prevendo-se que só o juiz poderá concedê-la (artigo 24-A, §2º, da Lei nº 11.340/2006). Salvo essa hipótese, a lei é omissa e não esclarece se é possível ou não o arbitramento de fiança nos demais delitos.
Uma resposta simplista ao problema parece incoerente com a complexidade do fenômeno da violência doméstica e familiar contra mulher. Sabe-se que a violência doméstica e familiar contra mulher se desenvolve dentro de um “ciclo de violência doméstica”, que é constantemente repetido, passando pelas fases da tensão, agressão e arrependimento (lua de mel) [1].
Diante das especificidades do ciclo de violência doméstica, a indiscriminada concessão de fiança nos crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra mulher poderia conduzir a situações em que a integridade psíquica e física da vítima restaria seriamente comprometida. A concessão de fiança pela autoridade policial e a imediata liberação de um agressor pode perpetuar o ciclo de violência doméstica, muitas vezes até o agravando, em vez de interrompê-lo. A medida, inclusive, poderá ser contrária ao disposto no artigo 11, I, da Lei nº 11.340/2006, segundo o qual, “no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências, garantir proteção policial, quando necessário”.
Diante disso, há entendimento de que em nenhuma hipótese seria cabível o arbitramento de fiança nas infrações penais envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher. Nesse sentido, a Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), concebida pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH) do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), editou enunciado segundo o qual em nenhuma hipótese seria cabível o arbitramento de fiança policial nas infrações penais que envolvam violência doméstica e familiar contra mulher.
Nos termos do Enunciado nº 06, “nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idosa, enfermo ou pessoa com deficiência, é vedada a concessão de fiança pela autoridade policial, considerando tratar-se de situação que autoriza a decretação da prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, CPP. (Aprovado na Plenária da IV Reunião Ordinária do GNDH de 07/12/2011 e pelo Colegiado do CNPG de 19/01/2012)”.
Outra corrente, por outro lado, faz uma análise literal e isolada da legislação, concluindo que a concessão de fiança é sempre possível nas infrações cuja pena máxima cominada não supera quatro anos, inclusive infrações que envolvam violência doméstica e familiar contra mulher. Para essa corrente, só não seria possível a concessão da fiança nas hipóteses em que há vedação expressa, como na figura do artigo 24-A da Lei nº 11.340/2006.
Acreditamos que a solução mais adequada seja uma solução intermediária [2] [3]. Em regra, o delegado não deve arbitrar fiança. Só deverá ser arbitrada a fiança quando, na situação fática, verificar a completa ausência de risco à integridade física da vítima e ausência dos requisitos da prisão preventiva (artigo 20 da Lei nº 11.340/2006).
A vedação completa à concessão de fiança policial nas infrações penais envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher não possui amparo no ordenamento jurídico. Não há nenhuma normal legal que proíba a fiança genericamente nesses delitos. A construção doutrinária realizada fundamenta-se em uma preocupação de evitar possível usurpação da função judicial. Isso porque se apenas o juiz poderia decretar a prisão preventiva, somente ele poderia analisar se estão presentes ou não os requisitos da prisão e, consequentemente, arbitrar ou não a fiança.
Essa preocupação, todavia, não se justifica. Isso porque ao delegado de polícia não cabe a análise definitiva do cabimento ou não da prisão preventiva. A autoridade policial irá realizar apenas uma análise precária dos pressupostos da prisão preventiva, sem prejuízo da posterior apreciação judicial. Eventual entendimento em sentido contrário significaria negar o caráter sistemático do ordenamento jurídico.
Dessa forma, conjugando as regras dos artigos 322 e 324, IV, do CPP, entendemos que a fiança é possível, mas não deverá ser concedida quando a autoridade policial verificar a presença dos requisitos que autorizem a prisão preventiva, notadamente nos casos em que vislumbre, pela natureza e circunstâncias do fato, risco à integridade física da vítima. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia, de forma fundamentada, justificar a recusa ao arbitramento da fiança, apontando as razões concretas que indicam risco efetivo à integridade física da vítima e a presença dos requisitos da prisão preventiva (artigo 20 da Lei nº 11.340/2006).
[1] WALKER, Lenore. The battered woman. New York: Harper and How, 1979.
[2] PEREIRA, Thaís Orlandini. Prisão em Flagrante e o Não Arbitramento de Fiança Sob um Viés Protetivo da Mulher. Disponível em: http://www.revistas.pr.gov.br/index.php/espc/edicao-2-artigo-11. Acesso em 25/01/2022.
[3] JUNIOR, João Biffe. A fiança pode ser arbitrada pelo delegado de polícia nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher? Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2016/10/06/a-fianca-pode-ser-arbitrada-pelo-delegado-de-policia-nos-crimes-que-envolvam-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher/>. Acesso em 25/01/2022.
Sobre os autores
Matheus Tauan Volpi é delegado de polícia no Estado de Minas Gerais (PC/MG), doutorando em Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e especialista em Direito Tributário pela USP, professor de Direito Penal e Processo Penal na Unip-São José do Rio Preto/SP e já foi advogado e analista jurídico do Ministério Público (MP/SP).
Murilo Alan Volpi é promotor substituto no Estado do Paraná (MP/PR), doutorando e mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie, especialista em Direito Tributário pela USP, já foi advogado, analista Jurídico do MPSP e delegado de polícia no Estado de Minas Gerais.
Nilson Marão Baracat é delegado Regional de Polícia da 4º DRPC/Iturama (PC-MG).
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