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A análise crítica dos institutos jurídicos da vadiagem e da mendicância no ordenamento jurídico brasileiro.

por Editoria Delegados
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1. Breve escorço histórico; 2. Previsão no Direito Positivo; 3. Considerações Jurisprudenciais; 4. Vigência e eficácia das normas jurídicas; 5. O papel do Direito Penal; 6. Considerações hermenêuticas.

 

 Por FLÁVIO CRISTIANO COSTA OLIVEIRA


1. Breve escorço histórico.

 

De insofismável utilidade para a adequada compreensão das fontes formais é o estudo das fontes materiais, as quais representam os fatores sociais, históricos, econômicos, ou seja, a fase pré-jurídica da norma de direito.

Na Europa do século XVIII, a substituição do antigo regime de constituição feudal, pelo novo regime representado pelo comércio e pela indústria, trouxe várias conseqüências, dentre elas profundas transformações na economia e nas relações sociais.

Segundo Robert Castel, o ideal liberal, ou seja, o laisser-faire econômico, ao passo que reconheceu a propriedade e o trabalho como fontes de todas as riquezas, as reduziu a mercadorias negociáveis, fato que conduziu a um paradoxo.

O avanço econômico e a neófita ordem de relações comerciais, beneficiaram apenas o grupo social composto por comerciantes e financistas. A esfera social representada pelos assalariados, trabalhadores e produtores foi a grande prejudicada haja vista os seguintes fatores: a) diminuição da renda devido o aumento do custo de vida; b) flutuações do mercado que gerava instabilidade de empregos e baixíssimos salários; c) desequilíbrio entre a oferta e demanda de trabalho que aumentou sobremaneira o numero dos pobres; d) os direitos civis, políticos e sociais não foram adequadamente harmonizados com a liberdade e a propriedade.

A liberdade de trabalho teve a missão de livrar a iniciativa privada dos entraves do sistema das comunidades de ofício e acabar com as regulamentações protecionistas que dificultavam a livre contratação de trabalhadores.

Na realidade o que ocorreu foi apenas a sucessão de interesses, quero dizer, a burguesia sucedeu a nobreza.

Com a transformação do trabalho em mais uma das mercadorias transacionadas no balcão do comércio contratual, logo deu origem a uma hoste de trabalhadores miseráveis e impelidos pela necessidade a negociar sua força laboral, muitas vezes, pelo custo da própria sobrevivência.

Na época 1/3 da população européia situava-se próximo ao patamar da indigência.

O início do século XIX é qualificado pela tomada de consciência por parte da população de uma vulnerabilidade de massa diretamente relacionada com o fenômeno do pauperismo. Assim, pobre virou sinônimo de trabalhador.

Para Castel duas características identificam o pauperismo. A primeira é a presença de uma indigência não provocada pela falta de trabalho, mas sim devido á nova organização de trabalho liberado que é causa de insegurança social contínua, pois a indústria apenas absorvia operários quando havia necessidade.

O segundo é a degradação moral. As pessoas saiam dos campos, de suas terras natais e passaram a viver à margem das fábricas, na sujeira, embrutecidas. Famílias de trabalhadores ocupavam pequenos espaços nos subúrbios das cidades industriais, sem higiene, no meio da promiscuidade, dos vícios, da violência, do alcoolismo, da prostituição. Gerações de famílias inteiras foram lançadas, sem preparação ou planejamento, nas oficinas e ao redor das cidades.

Não tardou o surgimento de grande número de pobres, indigentes, inválidos, pedintes sociais que logo atraíram a atenção da burguesia industrial para o perigo de uma desagregação do sistema capitalista, representado pela desfiliação em massa como forma de protesto geral.

Para afastar o risco da dissociação, o Estado procurou solucionar a nova questão social dos miseráveis e desafortunados por meio de duas estratégias.

O Estado evitava legislar sobre direitos sociais, justamente para que os indigentes não tivessem meios objetivos e garantidos para exigir juridicamente prestações de tal natureza em face do Estado.

A questão da indigência foi entregue ao poder tutelar das elites sociais que assumiram uma posição de beneficência.

O indigente era interpretado como um pedinte, sendo que sua relação com seu benfeitor era sobretudo uma relação regida por normas éticas e morais, fora da bilateralidade atributiva que diferencia as regras jurídicas das regras morais.

Entretanto, o regime de tutela ou de filantropia possuía efeitos limitados e pontuais, causando o feito multiplicador do número de pedintes, pobres e indigentes. Além de não atingirem a causa do pauperismo, não reabilitavam as pessoas da indignidade e nem as reinseriam no mercado de trabalho.

A segunda estratégia foi a criminalizando a indigência, os fatos foram tipificados como vagabundagem ou mendicância.

Nas palavras de C.Bloch, citado por Castel( 2009:243):

“Considerando essa longa sequência de leis[ o conjunto das regulamentações sobre a vagabundagem e a mendicância] percebe-se que eram dirigidas sobretudo contra os mendicância] percebe-se que eram dirigidas sobretudo contra os mendigos que a miséria obriga a serem vagabundos. A administração, quase sempre impotente para oferecer trabalho ao povo, não tinha outro recurso senão empilhar uma miséria inoportuna nos hospitais ou armar a lei com rigor para encarcerar todos os que cansavam a sociedade.”

 

A normatividade em questão tem o papel de clarificar e ratificar a visão da escola do materialismo histórico capitaneada por Karl Marx que estabelece um senso crítico da verdadeira relação que se estabelece entre o Direito e a Economia.

Na visão do velho Marx o Direito seria parte da superestrutura de caráter ideológico, condicionado pela infra-estrutura econômica de natureza capitalista. Sendo que a infra-estrutura econômica molda a sociedade e determina as formas de normas culturais, englobando a Ética e o Direito, em face dos interesses da classe que detém os meios de produção, ou seja, a burguesia capitalista.

Por oportuno, vale ressaltar que o entendimento do Direito como uma superestrutura econômica também é útil para explicar a passagem do Direito costumeiro para o Direito baseado na lei e em seus princípios gerais de ordenação lógica.

Assim, o Direito baseado no costume, haja vista seu caráter pontual, peculiar e particularista contrariava os interesses da classe capitalista nascente. Era nacessário um instrumento de ordenação social, lógico, sistemático que garantisse a certeza e previsibilidade almejada pela sociedade liberal.

Por tal razão o Código Civil Francês de 1804 é considerado por juristas, sociólogos e historiadores como o marco fundamental da codificação, da supremacia definitiva da lei sobre as demais fontes, durante muito tempo.

Retornando ao tema das normas que criminalizaram a mendicância e a ociosidade social, podemos arrematar afirmando que normas de tal natureza foram reproduzidas sob a nomenclatura de polícia dos costumes simbolizando o papel policialesco do Estado Liberal como forma de manter, pela coercibilidade, os trabalhadores presos a nova fórmula de trabalho e subsistência , outrossim, objetivavam reprimir as possíveis turbulências populares.

 

2. Previsão no Direito Positivo.

 

No Brasil, o Decreto-lei Nº 3.688 publicado em 03 de outubro de 1941, denominado de Lei das Contravenções Penais, no capítulo VII intitulado: “ Das contravenções relativas à polícia dos costumes”, tipificou nos artigos 59 e 60 os delitos de vadiagem e mendicância, respectivamente.

In verbis:

Art. 59. Entregar-se alguem habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses.

Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.

Art.60. Mendigar, por ociosidade ou cupidez.

Pena- prisão simples, de quinze dias a três meses.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um sexto a um terço, se a contravenção é praticada:

a) de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento.

b) mediante simulação de moléstia ou deformidade

c) em companhia de alienado ou de menor de dezoito anos.

 

Na mesma data foi publicado o Decreto-Lei Nº 3.689, Código de Processo Penal, cujos artigos 323 e 324 vedavam a concessão de fiança nos casos das contravenções penais de vadiagem e mendicância, ademais, em qualquer caso, se houvesse no processo prova de ser o réu vádio.

A lei nº 6.815 publicada em 19 de agosto de 1980, que definiu a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, também trouxe um dispositivo tratando da questão da vadiagem e da mendicância aplicável ao estrangeiro:“ É passível, também de expulsão, o estrangeiro que entregar-se à vadiagem ou á mendicância”( Art. 65, parágrafo único da Lei 6.815/80).

Pelo exposto, a lei sempre procurou dispensar um tratamento rigoroso a tais questões, situação que foi mitigada com a superveniência da Lei 11.983/2009, que revogou o artigo 60 da Lei das Contravenções Penais, e com o advento da Lei 12.403/2011 que revogou os dispositivos do Código de Processo Penal que vedavam a concessão de fiança nos casos das contravenções penais de vadiagem e mendicância, ademais, em qualquer caso, se houvesse no processo prova de ser o réu vádio.

Mas o verdadeiro entendimento das causas da mudança legislativa não podem ser encontrados exclusivamente no positivismo das regras. Na verdade dependem do estudo de outras questões traduzidas, providencialmente, em determinados precedentes judiciais.

 

3. Considerações Jurisprudenciais.

 

A partir do estudo da nomogênese jurídica, podemos identificar 02(dois) grandes sistemas de Direito no mundo ocidental: a) o sistema de tradição romanística ou civil Law, que corresponde às nações latinas, latino-americanas e germânicas e b) o sistema de tradição anglo-americana ou commom Law.

No primeiro ocorre o primado do processo legislativo e da lei como fonte do direito, sendo que as demais fontes adquirem valor acessório.

No segundo temos um Direito costumeiro e jurisprudencial que se revela pelos usos, costumes e pela jurisprudência.

O Direito pátrio tem a lei como fonte prevalente, entretanto como bem leciona Miguel Reale, as normas legais adquirem cada vez mais importância no sistema de commom Law. Também os precedentes judiciais, desempenham papel sempre mais importante no Direito de tradição romanística.

Enfim, ambos sofrem influências recíprocas, de modo que não existe um sistema melhor ou mais perfeito, uma vez que decorrem das experiências culturais de cada povo.

Neste contexto, importante aos propósitos deste desiderato, considerarmos as idéias contidas em julgados sobre a questão.

O precedente mais emblemático foi expedido por ocasião da instauração de um inquérito policial pela suposta prática da contravenção de vadiagem, que foi encaminhado para a 5ª Vara Criminal de Porto Alegre, ocasião em que o magistrado Moacir Danilo Rodrigues proferiu a sentença que transcrevemos a seguir:

“Marco Antônio Dornelles de Araújo, com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais. Requer o Ministério Público a expedição de Portaria contravencional. O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho…”Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara do Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho do pobre que pobre é, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso. Marco Antônio mora na Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba. Carrega sacos. Trabalha “em nome” de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema? Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de “cheques especiais”, é um burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego é preso por vadiagem. Não tem fiança ( e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso. De outro lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já está dito), não tem amigos influentes. Não há apresentação, não há padrinho. Não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais tragédia que humor) do Chico Anísio. As mãos que produzem força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calos, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a assinatura do indiciado à fls. 5v.) nem com a vida. E hoje, para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena para graúdo. E deles é o reino da terra. Marco Antônio, apesar da imponência do nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu. A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o juiz não é. Por isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito. Porto Alegre, 27 de setembro de 1979. 1.. Moacir Danilo Rodrigues. Juiz de Direito – 5a Vara Criminal.”Transcrito do Suplemento Jurídico: DER/SP no 108 de 1982.

 

4. Vigência e eficácia das normas jurídicas.

 

Não obstante as valiosas lições de sensibilidade e de senso de justiça retromencionadas, podem os adeptos da escola do positivismo jurídico contra-arrazoarem sustentando que o sentimento subjetivo de justiça não é critério técnico-jurídico de validade formal do Direito. Quem nem tudo que é legal é justo. Que os Tribunais não podem recusar aplicação ás normas de direito em vigor.

Entretanto, se aprofundarmos o estudo dos aspectos de validade das normas de direito veremos que elas não se restringem ao aspecto formal, mas também englobam as esferas da eficácia e do fundamento.

Logo, além de possuir vigência formal, ou seja, ser estabelecida por um órgão competente, com obediência ao due process of Law e com legitimidade quanto à matéria, a norma de direito deve ter efetividade e ter uma ratio juris.

Existem casos de leis vigentes que não têm eficácia, não se convertem em ações efetivas encontrando resistência por parte da sociedade e dos operadores do Direito.

Isso pode ocorrer porque a norma de direito, em determinadas hipóteses, afronta a consciência da coletividade, seus valores, suas tradições. Assim, razão assiste a Miguel Reale quando afirma que o Direito autêntico não é apenas declarado, mas reconhecido pelo seio social.

A esfera do fundamento da norma de direito diz respeito ao valor ou fim visado pela regra, uma vez que é inconcebível uma regra jurídica desvinculada de uma finalidade.

Destarte, antes das alterações promovidas pelas Leis 11.983/2009 e 12.403/2011, a coletividade atenta aos graves problemas sócio-econômicos vivenciados por países emergentes como o Brasil, vinham concedendo pouquíssima aplicabilidade às normas legais relacionadas com a vadiagem e mendicância.

A sociedade e a coletividade jurídica formada por Delegados de Polícia, Juízes de Direito, Promotores de Justiça e Advogados, já desposavam o entendimento uníssono de que a mendicância, na maioria das vezes, era resultado das transformações sociais causadas pelo crescimento desordenado dos grandes centros promovido pelo capitalismo em suas incessantes fases.

A industrialização altera a estrutura social, concentra a renda, causa inúmeras disfuncionalidades e graves problemas sociais cujas soluções deveriam ser buscadas através de programas sociais e políticas públicas eficazes, visando promover a integração e isonomia social.

Motivo pelo qual, antes mesmo de serem oficialmente revogadas, tais normas já haviam caído em desuso.

 

5. O papel do Direito Penal.

 

A idéia de que as questões sociais subjacentes e relacionadas com a valoração jurídica das normas da vadiagem e mendicância mereciam solução diversa da criminalização, nos remete ao estudo dos princípios do direito penal e de suas respectivas escolas doutrinárias.

Conforme as lições retromencionadas, o positivismo jurídico de Binding, cujo formalismo normativista sustentou o estudo do Direito isolado da realidade, com exclusão dos juízos de valor e limitação do seu objeto ao estudo do direito positivo, não atende mais à realidade contemporânea.

Traços de harmonia com a hodirenidade são perceptíveis no Garantismo Penal de Ferrajoli, baseado no princípio da necessidade teleológica do Direito penal, enfim um sistema de axiomas que se estende desde a criação até a execução da lei. Dentre os princípios mais importantes desta escola podemos salientar o princípio da intervenção mínima do Direito penal.

Tal norma principiológica nos conduz a reflexão de que a criminalização de um fato apenas deve ocorrer quando tal opção for o último recurso, o meio indispensável para a proteção de determinado interesse jurídico.

Nesse sentido a regra de direito não é a única espécie de regra ética ou cultural de que dispõe a sociedade para solucionar seus conflitos de interesses.

Não olvidemos da moral, seja individual ou coletiva, cuja construção possui afinidades com outras instituições como a escola, a família e demais fatores desencadeadores de oportunidades de plena inclusão e desenvolvimento sócio-cultural.

 

6. Considerações hermenêuticas.

 

Conforme previsto no artigo 59 do Decreto-lei Nº 3.688 publicado em 03 de outubro de 1941, a contravenção penal de vadiagem ainda continua em vigor.

Entretanto, até que o legislador infraconstitucional reconheça que as questões afetas aos temas da ociosidade e das ocupações lícitas devem ser solucionadas por normas jurídicas não penais ou mesmo por espécies de normas éticas diversas do próprio Direito, como a moral , por exemplo; até que este nível de consciência seja atingido, cabe aos processos hermenêuticos corrigir as injustiças que, porventura, estejam escudadas pela lei.

Os hermeneutas do nosso século precisam se libertar das vetustas fórmulas de investigação moldadas pela ideologia liberal, segundo a qual o aplicador da lei deveria buscar a vontade do legislador presente no momento exato em que a lei foi criada e ser o que, outrora, se denominou juiz boca da lei.

Aos valores da Justiça comutativa e distributiva, devem ser acrescentados os da Justiça Social pois a realidade hodierna não se coaduna apenas com o individualismo jurídico ou o papel do todo em face de cada um, mas também o dever de cada um para com o toda a coletividade.

O surgimento das normas de natureza principiológica, a supremacia das normas constitucionais, a tomada de consciência pela comunidade jurídica da irrenunciabilidade de valores universais, como o princípio da dignidade da pessoa humana, entendido como um invariante axiológico, traduzem a certeza de que a Ciência do Direito se aperfeiçoou.

Ao lado de tais valores, outros de inegável importância como os princípios da razoabilidade e proporcionalidade permitiram o surgimento do fenômeno do ativismo judicial, ampliando o controle jurisdicional que evoluiu da simples legalidade para o âmbito da juridicidade, reduzindo sobremaneira a discricionariedade do poder político.

Neste contexto o aplicador e intérprete do Direito assume um papel fundamental para a construção do conceito de Justiça Social.

O operador do Direito não deve olvidar que as normas jurídicas possuem uma estrutura peculiar e ademais são espécies de normas culturais diversas das leis físico-matemáticas.

As normas jurídicas possuem natureza axiológica e teleológica. Devido sua natureza cultural implicam uma tomada de posição diante da realidade, são juízos de valor, enfim.

Logo, o juízo de interpretação do Direito deve ser axiológico e não apenas um juízo descritivo, cego para os valores e para a realidade social que a norma de direito objetiva regular e transformar.

É bem verdade que as leis das ciências naturais são juízos de neutralidade, mas o direito não pode ser reduzido a um ato mecânico, tal qual a aplicação de uma fórmula matemática ou física.

Despreocupados acerca destes temas fundamentais e obnubilados pelo utilitarismo e pragmatismo que a politização do Direito produz, os operadores jurídicos contemporâneos festejam e até são contemplados com prévias formulas eletrônicas que otimizam o tempo de atendimento dos jurisdicionados e administrados no momento da prestação das tutelas jurisdicionais e administrativas.

Como se a distribuição de justiça não exigisse maiores indagações sobre a peculiaridade de cada caso no âmbito da riqueza da diversidade social. Assim, em breves momentos, após o preenchimento de dados objetivos, se produz uma decisão que poderá custar um alto preço por um dos maiores bens jurídicos do ser humano, ou seja, a liberdade.

 

Sobre o autor

 

FLÁVIO CRISTIANO COSTA OLIVEIRA

Flávio Cristiano Costa Oliveira é mestre em direito constitucional e especialista em direito empresarial pela universidade de fortaleza e delegado de polícia civil pelo estado do Piauí.


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