Por Wlademir Mota – Presidente da ADEPTO, Delegado de Polícia Civil, Ex-Secretário da Segurança Pública
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Entre 2021 e 2025, o feminicídio no Tocantins desenha uma curva que oscila entre reconhecimento e preocupação. São cinco anos em que os gráficos mostram barras e linhas, mas quem sente o impacto são mulheres, filhos, pais, mães e comunidades inteiras. De acordo com o painel de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) da Secretaria da Segurança Pública, apenas nesse período o Estado registra 80 mulheres assassinadas por serem mulheres: 21 em 2021, 14 em 2022, 15 em 2023, 13 em 2024 e, com o ano ainda em curso, 17 em 2025.
Quando se olha com atenção para essa trajetória recente, a curva é acidentada. Em 2021, o Tocantins atinge um pico, com 21 feminicídios. Em 2022, há uma queda significativa para 14 vítimas, sugerindo uma resposta mais coordenada da rede de proteção e do sistema de justiça. Em 2023, os casos sobem levemente para 15 e, em 2024, recuam para 13 na base estadual. No mesmo período, o Mapa da Segurança Pública, do Ministério da Justiça, consolida 18 feminicídios em 2023 e 12 em 2024, apontando uma redução de 33,33% e colocando o Estado entre os destaques nacionais na diminuição desse tipo de crime. As metodologias variam, mas a mensagem de fundo é a mesma: a violência de gênero no Tocantins nunca saiu do patamar de alerta.
O ano de 2024, em especial, foi tratado como um marco. Reportagens, notas oficiais e postagens em redes sociais do governo destacaram a queda de um terço nos feminicídios em relação ao ano anterior. Atribuiu-se o resultado ao fortalecimento da rede de atendimento, à articulação entre delegacias e demais órgãos de Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria, Judiciário, saúde, Secretaria da Mulher e assistência social, bem como à intensificação de campanhas educativas e à ampliação de canais de denúncia, como o aplicativo Salve Mulher. Em vez de falar apenas em “índices”, o discurso oficial passou a usar a expressão “vidas salvas”, lembrando que cada número a menos representa uma mulher que não morreu e uma família que não entrou na estatística do luto.
Enquanto os números do feminicídio sobem e descem nos relatórios oficiais, outra disputa, bem concreta, ajuda a explicar como decisões administrativas podem fortalecer ou enfraquecer a proteção às mulheres: a celeuma das caminhonetes da Rede de Proteção. Em 2024, o governo do Tocantins, com recursos de emendas parlamentares da bancada federal, entregou dezenas de caminhonetes 4×4 a municípios de todo o Estado. Eram veículos anunciados como parte da Rede Integrada de Proteção à Mulher, pensados para auxiliar as Forças de Segurança por meio das Secretarias da Mulher nos municípios, realizar visitas às vítimas, acompanhar o cumprimento de medidas protetivas e alcançar regiões onde a estrutura de segurança é mais frágil. Em muitas cidades, a caminhonete se tornou símbolo de presença do Estado ao lado das mulheres em situação de violência.
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Meses depois, porém, o que era símbolo de avanço virou motivo de polêmica. A partir de questionamentos do Ministério Público em um município do interior, a Secretaria da Segurança Pública decidiu recolher as caminhonetes cedidas às prefeituras, sob a alegação de que a forma de cessão teria sido irregular e de que os veículos deveriam permanecer sob uso exclusivo da Polícia Civil. Parlamentares autores das emendas reagiram publicamente, prefeitos protestaram e setores ligados à rede de proteção classificaram a medida como um retrocesso na política de enfrentamento à violência contra a mulher.
No centro da disputa, mais do que uma discussão burocrática sobre termos de cessão e pareceres jurídicos, está uma pergunta simples: quem perde quando o veículo que estava à disposição das vítimas para uma resposta rápida é retirado do município? Casos pontuais de desvio de finalidade devem ser apurados com rigor, mas as mulheres não podem ficar à mercê de impasses burocráticos, sobretudo em um Estado de dimensões extensas, em que episódios de violência se espalham por diversos rincões e onde cada quilômetro de distância pode significar uma porta fechada para o socorro. O episódio expõe uma contradição incômoda: de um lado, o Estado celebra, com dados oficiais, a redução dos feminicídios e o reconhecimento nacional obtido em 2024. De outro, decisões administrativas que impactam diretamente a capacidade de chegar até as vítimas acabam enfraquecendo, na ponta, a mesma rede que sustentou esses resultados.
Já 2025 veio lembrar que, em segurança pública, nenhuma conquista é definitiva. No primeiro semestre, os números ainda eram animadores: o comparativo oficial indicava redução de 25% nos feminicídios em relação ao mesmo período de 2024, com queda de oito para seis casos. Porém, à medida que o ano avançou, o painel da SSP passou a mostrar outro cenário: o total de vítimas em 2025 já chegou a 17, superando as 13 registradas em 2024 na mesma base estadual e elevando a taxa para 2,35 feminicídios por 100 mil mulheres. O sinal de alerta voltou a piscar.
Por trás desses números, há um padrão que repete uma velha realidade. A maioria dos feminicídios acontece dentro de casa, em residências que deveriam ser abrigo, mas se transformam em cenário de medo e agressão. Municípios como Palmas, Gurupi e Araguaína aparecem com concentrações maiores de casos, ao lado de cidades menores que também figuram nas estatísticas, mostrando que o problema não é exclusivo das grandes zonas urbanas. Na prática, o risco se espalha pelo território: está na capital, no interior, na periferia e na zona rural.
A figura do agressor também não foge ao padrão. Na esmagadora maioria dos casos, o feminicídio é praticado por companheiros ou ex-companheiros, homens que conheciam profundamente a rotina da vítima, sabiam seus horários, seus medos e vulnerabilidades. Raramente o feminicídio é um ato isolado; costuma ser o último capítulo de uma sequência de humilhações, ameaças, controle, agressões físicas e psicológicas que se prolongam por meses ou anos, até a ruptura definitiva – muitas vezes, letal.
Quando o Tocantins aparece como referência nacional na redução desse crime, como aconteceu em 2024, isso significa que parte desses ciclos foi interrompida antes do desfecho fatal. Significa que, em algum ponto, uma denúncia foi acolhida, uma medida protetiva funcionou, um agressor foi contido, uma mulher foi retirada do ambiente de risco. Ao contrário, quando os números voltam a subir, como em 2025, o recado é duro: a engrenagem da proteção precisa girar com a mesma velocidade – ou maior – que a engrenagem da violência.
Os últimos cinco anos deixam lições claras. A primeira é que é possível reduzir feminicídios quando o tema é tratado como prioridade de Estado, com rede articulada, orçamento, formação de equipes e campanhas permanentes. A segunda é que todo avanço é provisório: basta o afrouxamento dos esforços, o enfraquecimento de serviços especializados ou a perda de foco para a curva voltar a subir em pouco tempo. A terceira é que a interiorização da proteção é fundamental, porque muitas mulheres vivem em cidades onde não há delegacia especializada nem estrutura completa de apoio, e depender de uma viatura distante pode ser a diferença entre a vida e a morte.

Mais do que debater apenas números, o desafio para o Tocantins é transformar o “caso de sucesso” de 2024 em política permanente e contínua. Isso inclui garantir orçamento estável para a rede de proteção, manter e ampliar delegacias especializadas, investir em casas-abrigo, qualificar continuamente policiais e profissionais de saúde, assistência e educação, além de sustentar campanhas permanentes em escolas, bairros e comunidades.
No fim, a pergunta que ecoa por trás de cada tabela é simples e incômoda: quantas daquelas 80 mortes, entre 2021 e 2025, poderiam ter sido evitadas? Enquanto a resposta continuar sendo “muitas”, o feminicídio precisa permanecer no centro da agenda pública do Tocantins. O reconhecimento nacional de 2024 mostra do que o Estado é capaz quando decide enfrentar o problema. Os números de 2025, por sua vez, lembram que essa decisão precisa ser renovada todos os dias.

Palmas, 07 de dezembro de 2025.
WLADEMIR MOTA
DELEGADOS
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