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País está despreparado para enfrentar terrorismo, atos de extremismos e organizações infiltradas

por Editoria Delegados

Rodolfo Laterza, faz uma análise do sistema de Segurança Pública no Brasil

 

Reconhecido nacionalmente por suas lutas em favor da categoria e no combate à corrupção, o presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil do Espírito Santo (Sindelpo), Rodolfo Queiroz Laterza, faz uma análise do sistema de Segurança Pública no Brasil. Profundo conhecedor do direito praticado em todo o mundo, Laterza reconhece a fragilidade do Estado brasileiro em enfrentar crimes mais complexos, como o terrorismo, atos de extremismos e organizações criminosas.

 

Rodolfo Laterza foi responsável, junto como outros delegados e equipes de investigadores, por duas importantes operações policiais ocorridas no Estado nos últimos dois anos: Pixote e Derrama. A primeira, em agosto de 2012, desvendou um esquema de desvio superior a R$ 32 milhões no Instituto de Atendimento Sócio-Educativo do Espírito Santense (Iases), em que colocou na cadeia servidores públicos e empresários.

 

A segunda operação, Derrama (ocorrida em dezembro de 2012), mandou para trás das grades a ex-prefeita de Itapemirim Norma Ayub, esposa do todo poderoso presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, Theodorico Ferraço (DEM), principal aliado do candidato ao governo do Estado pelo PMDB, Paulo Hartung – que governou o Estado de 2003 a 2010, em cujo período aconteceram os desvios de dinheiro do Iases. Na Derrama também foram presos diversos ex-prefeitos, como Guerino Zanon (Linhares), que presidiu a Assembleia Legislativa.

 

“A PEC 51 é mais uma proposição de matiz ideológica e que até pode ser bem intencionada, mas totalmente sem embasamento empírico e que não se defronta com as causas reais dos problemas da segurança pública. Um subproduto das manifestações de junho do ano passado, com forte viés político e ideológico”, diz Rodolfo Laterza, autor do livro ‘Manual do Delagado – Teoria e Prática’, sobre a Proposta de Emendo Constitucional, que tramita no Congresso Nacional e versa sobre a desmilitarização das polícias.

 

Blog do Elimar Côrtes – O senhor acredita que o Brasil está preparado para enfrentar fenômenos mais complexos na segurança pública, como terrorismo, atos extremismos e organizações criminosas infiltradas nas estruturas do Estado?
Rodolfo Laterza – Inicialmente cumpre ressaltar que tais problemas são um desafio a todos os Estados modernos, pois correspondem a cenários complexos decorrentes de causas múltiplas de ordem política, econômica, social e cultural. Basta verificarmos as dificuldades que a maior superpotência militar atual, os Estados Unidos, enfrenta na neutralização de diversos conflitos relacionados ao extremismo islâmico e às organizações criminosas transnacionais.

 

No caso do Brasil, especificamente, as agências policiais não conhecem adequadamente ainda a natureza destes fenômenos e não estudam doutrinas de trabalho preparadas para diagnosticar, identificar e enfrentar tais cenários de risco. Estas modalidades de conflitos são muito específicas de uma era de pós-modernidade, moldada pela globalização, idolatria ao consumismo, fragmentariedade de interesses geoeconômicos e pulverização das ideologias após o fim da União Soviética.

 

Não há no escopo da segurança pública ainda em nosso País uma doutrina de ação frente ao extremismo político, ao terrorismo e às organizações criminosas de maior vulto. Falar disso inclusive é tabu no Brasil, de modo que quando somos surpreendidos por ações extremistas, como no caso das táticas de subversão empregadas por grupos genericamente rotulados como “Black blocs”, sequer há um preciso diagnóstico do fenômeno, havendo ações improvisadas e meramente reativas. E isso não é culpa das polícias, ao contrário do que apregoam muitas vozes na opinião pública, pois decorre de todo uma ausência de política estrutural do Estado brasileiro na defesa do regime democrático. Inclusive, quem discute a necessidade de implementação de medidas legais e sociais de defesa da ordem democrática na neutralização do extremismo de todos os matizes no Brasil sofre tamanho patrulhamento ideológico que acaba por se autocensurar, pois teme ser rotulado como autoritário ou reacionário.

 

Por conseqüência, atentados criminosos contra a estrutura do Estado ou mesmo contra a coletividade, tal como por vezes ocorreu após nossa redemocratização em variados momentos são logo esquecidos tão logo termine o clamor social. O Brasil é o único país entre as 10 maiores economias do mundo que não possui, por exemplo, uma legislação para ações terroristas, vigendo ainda a odiada Lei 7170/83 (Lei de Segurança Nacional), objeto de constrangimento por todos aplicadores da lei, justamente por possuir como epíteto a temática de “segurança nacional” em seu bojo, o que acaba por remeter a períodos traumáticos do regime militar de 1964.

 

Mas esse trauma justificadamente arraigado no imaginário coletivo da sociedade brasileira não pode impedir que se discuta a necessidade de se dotar o Estado Democrático de Direito de instrumentos de persecução penal e de uma tipologia específica no enfrentamento dos fenômenos extremistas que vulnerabilizam os direitos fundamentais e a própria democracia, caracterizada como um regime político em que o pluralismo e a proteção aos diretos fundamentais se ampara no estabelecimento de limites legais claros nas relações humanas e sociais.

 

– Por sua experiência de combate às organizações criminosas no Espírito Santo e estudioso que é do sistema Criminal brasileiro, como analisa a dificuldade do Estado brasileiro em reprimir esses tipos de crimes?
– A inserção em nosso ordenamento jurídico da Lei 12850/13 – nominada “Lei das Organizações Criminosas” – foi um avanço significativo na composição de um marco regulatório compatível com o extremo desafio das organizações criminosas ao Estado. Porém, isoladamente não resolverá o problema, pois o sistema de segurança pública ainda não é preparado nem sequer orientado para executar medidas institucionais de controle e punição efetiva das organizações criminosas, principalmente aquelas infiltradas na estrutura do Estado. Já é difícil em países com instituições mais estáveis e avançadas, como aqueles que integram a União Européia.

 

Em nosso País, totalmente incipiente em discutir segurança pública em suas premissas mais basilares, fica ainda mais complicado. Obviamente houve avanços recentes com trabalhos muito bem integrados entre a Polícia Federal, algumas Polícias Estaduais, Ministério Público de alguns Estados e o Poder Judiciário, mas ainda estamos no nascedouro da consolidação de um padrão independente de persecução e aplicação firme da lei penal na desarticulação das organizações criminosas. Esta dificuldade se coaduna com a precocidade de nossa democracia e a imaturidade cultural e política que ainda persiste na sociedade brasileira.

 

Não há possibilidade de êxito na luta contra as organizações criminosas quando há uma imensa desarticulação entre os atores do Sistema de Justiça Criminal, birras institucionais, falta de independência funcional das instituições policiais, ingerência política constante na segurança pública e, a meu ver, com significativo protagonismo, uma idolatria cultural à desonestidade, ao “jeitinho brasileiro” e a uma secular banalização de uma “subcultura de transgressão” nos modos de agir e representar da sociedade brasileira. Culpar a classe política e o Estado é uma visão reducionista perigosa das causas de nossas mazelas; afinal, todos são a sociedade e dela nascem como autoridades.

 

– Como o senhor analisa os protestos populares do ano passado em todo o Brasil e a interferências de grupos extremistas, como os “Black blocs”?
– Além da total perplexidade das instituições públicas na emergência deste fenômeno, houve uma absurda falta de diagnóstico para a execução de medidas de contenção do problema. E, conforme disse antes, a quem menos deve-se atribuir qualquer culpa ou responsabilidade são justamente as instituições policiais, principalmente a Polícia Militar.

 

As contradições da mentalidade cultural brasileira nunca foram tão evidentes quando emergiram aquelas conflagrações do ano passado. Esses agrupamentos extremistas, sem coerência ideológica, sem agenda clara de transformação e até mesmo sem lideranças apenas objetivam a ruptura do sistema democrático, utilizando-se para isso das concessões intrínsecas à democracia quanto aos direitos individuais e coletivos, já que sequer poderiam se associar ou se reunir em regimes totalitários que tanto idolatram, como Cuba, China e Coréia do Norte.

 

Deveriam ao menos agir com lógica naquilo que buscam – um totalitarismo de extrema esquerda, muito embora não saibam que seriam os primeiros a sofrerem as opressões de tais sistemas políticos, como deportação, prisões sem o devido processo legal, julgamentos sumários, expurgos, etc. Ou pensam que Che Guevara era um genuíno democrata?

 

– O senhor acredita que as polícias brasileiras enfrentam crise de identidade? Se enfrentam, por qual motivo?– Citarei como exemplo o caso da relação da sociedade com as polícias nos excessos ocorridos nas manifestações de junho do ano passado. Ao mesmo tempo em que se utilizou o aparato policial militar de choque para conter os excessos e ordenar tais manifestações, algo normal em qualquer democracia avançada (vide o padrão operacional vigente em países como EUA, Inglaterra, Itália, França) promoveu-se uma conveniente, porém catastrófica, anatematização da Polícia Militar, que se viu acuada e objeto de uma covarde expiação, que resultou até mesmo em propostas politicamente atraentes e demagógicas, como a PEC 51, sintetizada sob o jugo simplista da “desmilitarização” das polícias.

 

Ademais, parte da intelectualidade brasileira ainda enxerga o enfrentamento às forças policiais, ainda que de modo criminoso, como natural de uma resistência ao autoritarismo e à opressão. Instrumentalizam as experiências do regime militar para rebaixar de toda ordem as forças policiais, quando, na verdade, foram os militares que se apropriaram das forças policiais (Polícia Federal, Polícia Civil e Polícia Militar) nas deploráveis ações de repressão política e de terrorismo de Estado. Não foram as polícias que decretaram o AI-5, mas se tornou conveniente rotular qualquer uso legal, legítimo e proporcional da força pelas instituições policiais como inerentemente arbitrário e alusivo ao autoritarismo, quando, é cediço, o uso legal da força é a base de sustentação do Estado de Direito na sua fundação e continuidade existencial.

 

E qual a conseqüência deste rebaixamento deliberado da legitimidade existencial das forças policiais no Brasil? Um Estado de total anomia social, naquilo que Durkheim bem definiu com um quadro de desintegração social geral e progressivo decorrente de uma contínua e entronizada cultura de violação das normas e convenções sociais. Excetuando países com reconhecidos conflitos étnicos, sectários ou com organizações guerrilheiras ou terroristas, o Brasil é o País com maior número de mortes de policiais no mundo. Com embasamento, posso afirmar que a grande maioria dos policiais e autoridades no Brasil envolvidos no controle da criminalidade encontra-se acuada e temerosa de responsabilizações administrativas ou criminais, ainda que caluniosas e fomentadas por criminosos incomodados com a aplicação da lei. E pouco se aborda isso.

 

Há um expresso revanchismo histórico contra as polícias no Brasil, uma enviesada condenação daquilo que representam e uma conveniente transferência de responsabilidades dos fracassos de outras instituições para as polícias, que acabam injustamente absorvendo tantas demandas e tantas rotulações. Para agravar, há uma dificuldade das instituições policiais no Brasil de se comunicarem, integrarem e promoverem profundas autocríticas que permitam enfrentar suas dificuldades. Daí, temos a propagação geral de violências que afrontam a existência do próprio Estado Democrático e da sociedade, como no caso das organizações criminosas.

 

– Então existe revanchismo contra as agências policiais brasileiras?– É o que disse antes: historicamente as policias no Brasil foram instrumentalizadas pelas elites dirigentes em variadas épocas históricas na repressão política e na contenção das reivindicações de massa. Porém, as polícias foram instrumentos, não causas originais dos períodos autoritários e de exceção. Falo como delegado de Polícia: nas antigas Leis de Segurança Nacional vigentes durante o ápice repressivo do regime Militar (Decreto-Lei 898/69 e posteriormente a Lei 6.620/78) qualquer oficial militar tinha a prerrogativa de avocar as atribuições do Delegado de Polícia e perpetrar todo tipo de ação repressiva, inclusive se intitulando em codinomes com emprego de dísticos como “DR.”.

 

Para agravar, o regime militar usou maciçamente os DOPS no âmbito das Polícias Civil e Federal para desbaratar as organizações de luta armada e os movimentos sociais de oposição.

 

– Qual a culpa do cargo de Delegado de Polícia e dos milhares de profissionais que atualmente exercem diuturnamente suas atribuições com tamanha dificuldade por estes abusos?– A maioria dos delegados de Polícia sequer vivenciou este período. Porém, após a redemocratização do País, todas as polícias se tornaram objeto das mais variadas críticas, quando não houve uma ação isolada do aparato policial nas ações repressoras estatais no regime de exceção de 1964, havendo também uma contribuição de todos os atores de relevância institucional: Poder Judiciário, Ministério Público, classe política, organizações industriais e econômicas.

 

– Por que, em sua avaliação, existem tantos conflitos de poder no Brasil na esfera de segurança pública?
– Não só há conflitos de poder na segurança pública, mas em todo Sistema de Justiça Criminal. Além do fato de as instituições não se integrarem e não entenderem os limites de suas atribuições, priorizam discussões corporativistas como formas de obtenção de poder e, principalmente, nivelamento salarial, já que o Estado brasileiro criou distorções gigantescas e ilógicas entre as diferentes carreiras de Estado, o que resulta em conflitos que trespassam o racional e trilham a histeria passional.

 

Cria-se um antagonismo interinstitucional que desemboca em um enfretamento pior que ideológico, beirando um sectarismo fundamentalista que segrega os integrantes de cada instituição em suas micros realidades, gerando uma constante representação social negativa que não se resume aos conflitos entre as instituições, mas até mesmo entre seus componentes. Até abdica-se de amizades em decorrência destas distorções de poder criadas pela disfuncional e ineficiente estrutura institucional do Estado brasileiro. E muitas vezes algumas classes políticas mal intencionadas se aproveitam disso.

 

As conseqüências disso são as piores possíveis: ineficiência da máquina estatal, competição negativa entre as instituições, perseguições mesquinhas e caprichosas, impunidade geral e descrédito social.

 

– Qual a sua avaliação sobre a PEC 51?– Mais uma proposição de matiz ideológica e que até pode ser bem intencionada, mas totalmente sem embasamento empírico e que não se defronta com as causas reais dos problemas da segurança pública. Um subproduto das manifestações de junho do ano passado, com forte viés político e ideológico.

 

Os EUA possuem 15 diferentes agências de segurança que funcionam bem, ainda que não perfeitamente. Seria mais inteligente trazer à tona debates como autonomia financeira às instituições de segurança pública; independência funcional; investimento em tecnologia; justos planos de carreira e de remuneração.

 

– O que o senhor acha da instituição no Brasil do Juízo de Instrução?– Os Juízes de Instrução são adotados no âmbito de sistemas processuais de países com menor extensão territorial e mais homogeneidade cultural/social. Seria extremamente caro, difícil, complexo e demandaria mudanças logísticas, operacionais e administrativas extremas a adoção dos Juízes de Instrução em todo território nacional, quando já há uma carência crônica no efetivo de juízes para as atividades soberanas já constitucionalmente definidas.

 

Justamente por isso criou-se em nosso sistema de persecução penal o cargo de Delegado de Polícia, que reúne um hibridismo de atribuições de coordenação das atividades investigativas e de produção de provas e formação de um juízo de valor no controle e análise da legalidade das ocorrências que possam ter valoração criminal.

 

– Houve muita polêmica quando o Sindelpo apresentou à sociedade o Pacto da Legalidade. O senhor pode esclarecer melhor esse posicionamento?
– Justamente em função daquilo que foi anteriormente citado nesta entrevista – os crônicos conflitos de poder que permeiam as instituições de segurança pública e do Sistema de Justiça Criminal – houve uma má interpretação dos preceitos e fundamentos deste documento.

 

Inicialmente foi fruto de debates e ideias de toda categoria de Delegados de Polícia, além do próprio Ministério Público (vide a Recomendação nº 03/11 do antigo GECAP), juízes, advogados, e não apenas de uma ou algumas pessoas; sua finalidade é o aperfeiçoamento do delegado de polícia no exercício de suas funções, preservando-o de eventuais responsabilizações administrativas e criminais quando age mais em prol de clamores do que em observância à legalidade, bem como uma singela tentativa de se discutir a temeridade de persistência de improvisos de décadas nas políticas de segurança pública, que jogam as instituições umas contra as outras sem respeito às missões constitucionais de cada qual.

 

O “Pacto pela Legalidade” é uma cartilha recomendatória com diretrizes de procedimentos aos delegados de polícia pautada na observância estrita da legalidade, não uma legislação nova ou um comando cogente unilateral, até porque a autonomia funcional de cada delegado de polícia é uma premissa basilar e sua aplicação é fruto de consenso da categoria de delegados. Seus fundamentos são até redundantes, pois já estão integralmente na lei e na jurisprudência, algo mais que notório. É acima de tudo uma cartilha em que os delegados de polícia se vinculam a agir com responsabilidade e em consonância com a ordem jurídica, procurando contribuir para fomentar um debate necessário em que se respeitem de uma vez por todas as atribuições de cada instituição, pois com honestidade reflitamos: o sistema de segurança pública e de Justiça Criminal está em crise e enquanto há tanto conflito sequer realizamos com eficiência as atribuições que a Constituição definiu a cada instituição envolvida.

 

E sem hipocrisia incluo logicamente aqui todas as polícias do Brasil, inclusive as Polícias Civis. Mais do que antagonizar, este pacto pela legalidade é uma redundância ao que a Constituição, o Código de Processo Penal e tantas outras leis já definem e obrigam a todos. No Brasil, embora estejamos lentamente avançando e com momentos de retrocessos, infelizmente, por vezes, até o que é óbvio e evidente se torna foco de conflitos irracionais, por culpa acima de tudo da formação histórica da sociedade e do Estado no Brasil: desigual em suas bases mais elementares, contraditório, ineficiente e eivado de patrimonialismo, clientelismo, improvisos e nepotismo em todas as instituições.

 

Por Rodolfo Queiroz Laterza,
Delegado de Polícia Civil e presidente do SINDELPO

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