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Interceptação telefônica e encontro fortuito: prova (in)válida?

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS
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JURÍDICO
Interceptação telefônica e encontro fortuito

É (in)válido?

JURÍDICO

Um dos casos midiáticos mais rumorosos nos últimos tempos relacionados com a serendipidade (encontro casual ou fortuito, durante uma interceptação telefônica, de algo – de outro crime – que não se procurava) ocorreu no mundo do futebol, na Espanha: o “dono” do time Hércules, de Alicante (Espanha), que alcançou a primeira divisão em meados de 2010, estava sendo investigado por corrupção no caso Brugal. Trata-se de um empresário envolvido num rumoroso caso de corrupção vinculada ao recolhimento do lixo na cidade de Vega Baja (Alicante).

A investigação teve início em maio de 2007 e durante as interceptações telefônicas o citado empresário, dentre tantas outras revelações, contou que corrompeu o goleiro de uma equipe (ao que tudo indica do Córdoba), dando-lhe 100 mil euros para facilitar os gols do seu clube (que venceu o jogo por 4×0) e subiu para a primeira divisão. O encontro (“El hallazgo”) foi casual porque não se investigava nada a respeito dessa infração.

O juiz do caso (José Luis de la Fuente – titular do juizado de instrução número 7 de Alicante) negou o pedido do Ministério Público que pedia o envio das gravações (clandestinas, porque o escândalo do futebol não estava sob investigação) para a Federação Espanhola de Futebol assim como para o Conselho Superior de Esportes.

Sua fundamentação: “a entrega dessas gravações constituiria uma intromissão – indevida – na intimidade e violaria o segredo das comunicações”. O achado foi casual (“el hallazgo de estas conversaciones fue casual”). Investigavam-se os delitos de concussão, fraude e tráfico de influências.

Com eles o “achado” não tem nenhum tipo de conexão, ou seja, a infração encontrada por acaso não está na mesma situação histórica de vida do delito investigado – historischen Lebenssachverhalt.  O fato achado por acaso não tem nenhuma ligação histórica com o fato investigado. Nesse caso a revelação não tem nenhum valor jurídico e a interceptação telefônica não serve de fonte de prova. Serviria como “notitia criminis”? Não há dúvida. Serve como notícia do crime, quando o fato constitui crime, ou de uma irregularidade, quando o fato não constitui crime, como é o caso da compra de resultados no futebol espanhol, visto que a lei penal que pune essa infração só entrará em vigor no dia 22 de dezembro de 2010.

Contra a decisão do juiz de primeiro grau houve recurso para a Audiência Provincial de Alicante (equivalente ao nosso Tribunal de Justiça), que não deu provimento ao recurso do Ministério Público – ou seja: confirmou a decisão denegatória de primeira instância.

Fundamentação: “Não é possível remeter o conteúdo das conversações interceptadas ao organismo administrativo (Federação Espanhola de Futebol) porque as conversações detectadas não estão amparadas pela autorização judicial que permitiu as escutas que foram gravadas. Essas conversações nem sequer deveriam ter entrado nos autos do processo em que foram descobertas porque, ao não ter nenhuma relação com o objeto da investigação e carecer totalmente de transcendência penal, deveriam ter sido rechaçadas.

Isso não incide de maneira negativa na possibilidade investigativa dos órgãos administrativos respectivos [ligados ao futebol], porque contam com seus meios próprios de averiguação de infrações graves, podendo inclusive servir de “notitia criminis” a publicação nos meios de comunicação dessas conversações”.

O que acaba de ser descrito revela uma coisa que o povo, de um modo geral, especialmente quando está irado com a criminalidade, tem muita dificuldade de compreender: que o direito é constituído de formas jurídicas. Sobretudo o direito de provar um fato está cheio de formas jurídicas: não se pode obter uma prova a qualquer preço, não se pode descobrir a verdade de qualquer maneira, a prova ilícita é inadmissível etc.

Existem formas jurídicas e as formas jurídicas são garantias. As formas jurídicas podem gerar impunidade? Não há dúvida, podem. A prescrição constitui exemplo disso. Mas esse é, excepcionalmente, um dos preços que devemos pagar para viver sob a égide do Estado de Direito.

O direito tem regras, tem formas que fazem parte do chamado devido processo legal, tem prazos etc. Quando essas regras não são observadas – no campo probatório – o produto produzido (ou encontrado) não tem valor jurídico. A opinião pública, que confia tanto na eficácia das leis penais, fica muito frustrada (e atônica) quando o réu, por questões técnico-jurídicas, fica impune.

Mas é assim que, às vezes, funciona o Direito, que não constitui um instrumento absoluto para a realização do valor Justiça.

Sobre o autor

Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários livros (clique aqui para ver a lista completa), entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Penas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais

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