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‘Ficha limpa’ como o arquétipo da moralidade

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO
‘Ficha limpa’ como o arquétipo da moralidade, por Vigliar

JURÍDICO

Por José Marcelo Vigliar

{loadposition adsensenoticia}Estive fora por alguns meses. Nem me despedi. Como ninguém me procurou – nem lá na Redação do Última Instância – fico triste e, paradoxalmente, feliz. Feliz porque não fiz falta alguma. Triste porque não fiz falta alguma.

Já que esses sentimentos antagônicos parecem revelar que algo não vai bem, e que talvez fosse o caso de avisar meu psiquiatra, vou falar de um tema que aprecio, usando um tema muito caro aos psicólogos e psiquiatras: os arquétipos.

Como meu conhecimento sobre o tema é extremamente superficial, falo de um arquétipo que se relaciona ao Direito: o da moralidade administrativa. Claro: estamos em plena aplicação da denominada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010). Uma “ficha limpa” fala, teoricamente, de seu proprietário. Quase que funciona como um currículo às avessas. Sem trocadilhos, porque deles sempre me afasto, uma “ficha suja” (não limpa), pode representar um curriculum mortis. Morte do candidato (principalmente os profissionais que julgam a política uma profissão, reconhecendo-se – com excesso de falta de modéstia – essenciais ao país). Funciona como uma “F.A.” (muito mencionada nas denúncias), que constitui uma abreviatura para a expressão “folha de antecedentes criminais”, também conhecida, mais vulgarmente ainda, como “capivara” (principalmente quando maculada).

Candidato tem “capivara”? No âmbito penal pode até ocorrer. No âmbito não penal, desconhecíamos a figura, que, na realidade, era representada pela certidão de distribuição que os órgãos jurisdicionais, destituídos de competência para exercer a jurisdição do âmbito penal, expedem, veiculando eventuais ocorrências, que vão, apenas para exemplificar, desde ações que tramitaram (ou tramitam) em vara de família e sucessões, passando pelas demandas de competência da Justiça Federal comum, até as ações trabalhistas.

O tema é rico. Trago algumas dúvidas que já não são novas. Meu objetivo é o debate.

Comecemos por algumas considerações sobre a moralidade e a probidade administrativas.

Convém lembrar que, atendendo previsão constitucional, a Lei 8.429, de 2 de junho de 1992 estabeleceu, em seu artigo 12, incisos I, II e III as sanções para as modalidades de ato de improbidade administrativa, exemplificadas em seus artigos 9º, 10 e 11. Além dessa lei, mas igualmente exigindo o prévio exercício da atividade jurisdicional do Estado (o denominado “processo obrigatório”), o inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 outorgou a todo cidadão a possibilidade de ajuizar a denominada ação popular para a defesa da moralidade administrativa, embora, de forma clara, não tenha concedido a este a possibilidade do ajuizamento da ação para a responsabilização do agente público pela prática de ato de improbidade administrativa.

Assim, os cidadãos não estão incluídos entre os legitimados para postular em juízo as sanções referidas na Lei 8.429/92. Não obstante, o ajuizamento de ação popular determina (por expressa previsão legal contida na Lei 4.717/65 – denominada Lei da Ação Popular que ainda tem vigência não parte não conflitante com o Texto Supremo), a intervenção do Ministério Público.

Essa intervenção deve levar – a partir do conhecimento do ato de imoralidade administrativa apresentado na inicial da ação popular (como sua causa de pedir) – a, no mínimo, iniciar investigação em sede de inquérito civil para, se o caso, ajuizar demanda (no mínimo conexa) com a ação popular, considerando alguns dos pedidos que na ação de responsabilização pela prática de ato de improbidade administrativa se viabilizam (inexistentes no âmbito da ação popular).

Quais pedidos? Basta a análise dos incisos I a III do mencionado artigo 12, da Lei nº 8.429/92). O autor popular pode deduzir pedidos limitados. Os legitimados para a ação que objetiva o combate à improbidade administrativa podem deduzir todos os que os autores populares poderiam deduzir, mais os que os mencionados incisos permitem.

Importante ressaltar desde logo, em relação às ações que buscam a responsabilização pela prática de ato de improbidade administrativa, considerando o texto da Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010:

a) a despeito do preâmbulo da Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, não são apenas as inelegibilidades decorrentes da prática de ato de improbidade administrativa que são preservadas; outras condutas também o são, como se vê, v.g., nos incisos 1 a 10, da alínea “e” do artigo 2º da referida lei;

b) indubitavelmente, e como consequência da observação anterior, para que haja inelegibilidade pela prática de ato de improbidade ou imoralidade administrativas, deve o candidato ostentar a qualidade que a Lei 8.429/92 descreve em seu artigo 2º, ou realizar as condutas descritas em seu artigo 3º, quais sejam,  induzir/concorrer para a prática do ato de improbidade/imoralidade, ou desse ato se beneficiar de alguma forma; assim, parece que o objetivo do dispositivo foi de possibilitar a tentativa de tornar inelegível quem tenha condições pessoais, no momento de seu alistamento, previstas nos mencionados dispositivos;

c) obviamente, a Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010 não revoga a Lei 8.429/92; não apresenta novas situações (que são apenas exemplificativas) de improbidade administrativa; antes, faz clara referência aos atos mais assemelhados aos de improbidades (principalmente os que envolvem o patrimônio público – artigos 9º e 10), e aos atos de improbidade que, pela imoralidade (e sem considerar mesmo qualquer prejuízo ao patrimônio público), são puníveis a título de improbidade, descritos, também exemplificativamente, em seu artigo 11;

d) a Lei de Improbidade Administrativa – como ficou conhecida a Lei 8.429/92 -, de forma clara e consentânea com a disciplina constitucional (haja vista tratar-se de “processo necessário”, ou seja, apenas se cogita da prática de ato de improbidade após o trâmite de processo judicial, realizado com a observância das garantias constitucionais reservadas ao processo), exige, em seu artigo 20 (que está intimamente ligado ao processo eleitoral), de forma inequívoca (o que não foi nem mesmo mencionado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010), o trânsito em julgado da sentença condenatória; em outras palavras: suspensão de direitos políticos, dada a gravidade dessa sanção, sempre exigiu o trânsito em julgado para que se possa cogitar de o agente público (artigo 2º) ou seu “participe”/ beneficiário (artigo 3º) tenham realizado conduta ímproba; nesse particular, se o processo é obrigatório, ou seja, se apenas se cogita da aplicação das sanções previstas após sentença condenatória cujos efeitos apresentem-se imutáveis (fenômeno da “coisa julgada material”), e se esse processo judicial, para que seja legítimo o exercício do poder-dever-função-atividade jurisdicional do Estado deve respeitar todas as cláusulas que integram o devido processo legal (juiz natural, contraditório, ampla defesa etc.), parece controvertido, como pretende a Lei Complementar 135, ora analisada, permitir que, ainda na pendência de recurso, possa o agente público (artigos 2º e 3º) tornarem-se inelegíveis diante de pronunciamento jurisdicional (mesmo que colegiado) sem o trânsito em julgado da sentença condenatória (caso se prefira: sem que os efeitos dessa sentença tenham se tornado imutáveis);

e) o princípio da inocência, analisado aqui em seu sentido amplo (até porque os atos de improbidade administrativa não constituem tipos nem veicula sanções penais e porque a Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010 trata conjuntamente atos de improbidade e tipos penais em conjunto), como elementos capazes de infirmar a moralidade do candidato, fica, aparentemente, invertido, em prol de uma proteção à cidadania que pode levar a prejuízos irreparáveis e a prejudicar a própria independência do Judiciário em seus órgãos colegiados: os tribunais comuns condenam (sem trânsito) e obrigam a Justiça Eleitoral a considerar o candidato inelegível (sem independência, e como mera “boca da lei”);

f) por constituir apenas hipótese de laboratório, torçamos para que jamais os órgãos colegiados venham a condenar quem quer que seja, atendendo a interesses estranhos, apenas para torná-lo inelegível!

Parece ter ficado claro que considero essa Lei Complementar inconstitucional. Mas, felizmente para muitos, não a julgarei. Mas, de qualquer forma, o debate é bom.

Paradoxalmente, estávamos mesmo a necessitar de maiores rigores para as inelegibilidades, mas não necessitávamos criar um arquétipo de moralidade que, se observado de perto, não representa o “inconsciente coletivo” que plasmou a Constituição Federal, exigindo garantias que a todos interessa (basta que nos coloquemos na posição de acusados), como é o caso da presunção de inocência.

Uma “ficha limpa” provisória, pois o inocente ainda não condenado pelo colegiado pode vir a ser condenado, depois de terminar tranquilamente o seu mandato, nada garante. Por que o condenado (de forma ainda não definitiva, mas pelo colegiado) não poderia concorrer se, ao contrário, pode ser absolvido. O “mito da condenação provisória de colegiados comuns” cria uma figura que torna a Justiça Eleitoral quase que dispensável. Cumprem o acórdão, como se definitivo fosse. Reconhecem a inocência, se ainda não houve condenação por órgãos colegiados, desprestigiando os juízes de primeiro grau. Em qualquer hipótese: esquecem as garantias constitucionais.

Na realidade, a “ficha limpa” nem mesmo um arquétipo constitui. Basta analisarmos a lição (entre muitas que encontrei, mas foi a que compreendi), do Prof. Adenaúer Novaes (Mito Pessoal e Destino Humano. Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2005,  p. 250), que afirma, com palavras mais sábias que os “arquétipos são estruturas virtuais, primordiais da psique, responsáveis por padrões e tendências de comportamentos comuns. (…) Não são passíveis de materialização, mas de representação simbólica. Para Jung, são hereditários e representam o aspecto psíquico do cérebro. São universais, comuns a todos os seres humanos e ordenam imagens reconhecíveis pelos efeitos que produzem”.

Se todos concordam que a “ficha limpa” da Lei Complementar 135 pode ordenar imagens sempre reconhecíveis pelos efeitos (provisórios) que produzem, talvez estejamos diante de uma alucinação coletiva.

Em breve, em nome de valores reconhecíveis por determinados grupos (e não de toda a coletividade), talvez tenhamos que admitir que nada do artigo 5º da Constituição Federal pode ser oponível contra o Estado. Torçamos para que os detentores do Poder não procurem instituir uma contra marcha das garantias, em nome de seus valores, dos grupos que representam, dos partidos a que pertencem.

Sobre o autor

José Marcelo Vigliar é advogado em São Paulo. Formado pela USP, é mestre e doutor em direito processual civil pela mesma universidade. Foi promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo, de 1991 a 2004, e procurador do Estado de São Paulo, de 1990 a 1991. É membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual  (IBDP) e do Instituto de Estudos Direito e Cidadania (IEDC). Leciona na Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Publicou Ação Civil Pública e Tutela Jurisdicional Coletiva, entre outros livros

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