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Despacho de não autuação de Dvd´s piratas

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

JURÍDICO
Despacho de não autuação jurídica de ‘Dvd´s piratas’

Por Fabrício de  Santis

JURÍDICO

Por Fabrício de Santis

{loadposition adsensenoticia}Uma aula de Direito Penal. O professor e delegado Fabrício de Santis constrói material jurídico que penhora orgulho do exercício da função de delegado. É uma verdadeira obra de arte. Demonstrativo da capacidade cognitiva da autoridade policial em aplicar o direito ao caso concreto. O que se vê adiante vem de uma decisão jurídica na análise de autuação ou não de atividades oriundas de Dvd´s piratas. A partir daí, o então jurista construiu pensamento atualizado sobre tal tema que resultou no despacho.

DESPACHO/GABINETE

Ref. Ocorrência: 100425/2011/1028
Vistos, e etc…


A Brigada Militar apresenta nesta Delegacia de Pronto Atendimento, na data de hoje, o conduzido XXXXXX, o qual fora encontrado possuindo em seu poder, num estabelecimento comercial sito na Avenida Liberdade, 1758, em Viamão/RS, cerca de 2.130 (dois mil, cento e trinta) DVD´s de diversos títulos, aparentemente não originais, ou seja, reproduções supostamente não autorizadas pelo autor de tais obras, elaboradas e comercializadas, em tese, com violação de direito de autor ou produtor autorizado.

Informam os militares que estavam de serviço quando teriam recebido delação apócrifa no sentido de tal comercialização pelo conduzido desses produtos, o que, de fato, parece ocorrer, diante do vasto material apreendido. Relatou, ainda, o comunicante policial militar, que o estabelecimento utilizado pelo conduzido para o comércio do material apreendido possui certificado de micro empresa.


São os fatos apresentados à Autoridade de plantão. Passo a decidir.

De início, aponta-se para a necessidade de realização de perícia especializada nos objetos apreendidos com o conduzido a fim de se lavrar o auto de prisão em flagrante, como condição de procedibilidade, fato que se mostra impossível nesta Comarca, devido à falta de um órgão oficial nesta região que atenda a tal diligência especializada e que se disponha a emitir laudo de constatação provisória de forma incontinente.


Por outro lado, mesmo que fosse possível tal constatação afirmativa-provisória concernente a “reprodução não autorizada” dos objetos apreendidos com o conduzido, entendo que a “prisão cautelar”, necessária a retirar do convívio social suspeitos de práticas delituosas, não pode ser confundida com ”políticas públicas” para se combater a falsificação e a venda de CDs e DVDs “piratas” em nosso País.

Também, ao se conceder o título de “Micro Empresa” ao estabelecimento objeto da apreensão, o órgão arrecadador de impostos é responsável pela fiscalização do ambiente de trabalho, em que pese também funcionar, conforme se depreende do histórico da ocorrência, se tratar também de um local “estúdio de tatuagem”. Portanto, é de se entender, in casu, pela atipicidade da conduta praticada, mediante a aplicação da Teoria da Tipicidade Conglobante, ou seja, a tipicidade penal demonstrada diante da conduta do suspeito carece de antinormatividade em si, posto ser essa fomentada, incentivada ou permitida pelo próprio Estado fiscalizador.


Argumenta-se, ainda, por outro prisma, novamente pela atipicidade material de tais condutas praticadas pelo conduzido, em vista a esmagadora aceitação pela sociedade, de todos os níveis aquisitivos, da prática de compra e venda de tais produtos, em quase todas as esquinas movimentadas das grandes e médias cidades, mormente pelo fato de não haver lesão jurídica ao bem penalmente tutelado, se consubstanciado tal afirmação no Princípio da Adequação Social, segundo o qual não é crime aquilo amplamente aceito pela sociedade, inobstante esteja formalmente previsto na lei penal.

Tal compreensão da tipicidade material é essencial a fim de se evitar distorções acerca da interpretação e alcance do Princípio em tela. Para tanto, o legislador deve captar o “espírito” da sociedade sobre determinado assunto a fim de elaborar a LEI, colhendo desta um exemplo de conduta negativa ou socialmente inadequada, danosa ou perigosa, que atente contra determinado convívio, demonstrando, então, o interesse sobre determinado BEM (valoração) jurídico a ser tutelado pela NORMA, e exteriorizada mediante a elaboração de uma LEI em sentido estrito.

Há que se destacar, também, em obediência ao Princípio da Intervenção Mínima, que o Direito Penal só deve se ater aos bens mais importantes, dotados de relevância no contexto social. Esse critério de escolha, limitador do poder punitivo do Estado, exige que o aplicador do Direito insista num Direito Penal que passe a atuar em último caso, ou seja, em “ultima ratio”,  apenas quando a violação à Norma não possa ser sanada por outros meios, mormente por outros ramos da ciência jurídica.

O Direito Penal – leia-se, através de seus aplicadores dispostos em órgãos públicos, tais como os dirigentes de Delegacias de Polícia, do Ministério Público e Poder Judiciário, por assim dizer -, não deve atuar quando os conflitos resultantes da conduta humana possam ser solucionados por outros ramos do ordenamento jurídico pátrio, v.g., Direito Civil, Administrativo, Previdenciário, Fiscal, etc.

Em nosso caso em análise, trazido ao conhecimento mediante esta ocorrência policial, é abalizado dizer que uma atuação mais forte de agentes da receita estadual/federal/municipal apreendendo tais produtos aparentemente de reprodução não autorizada ou carente de recolhimento de impostos, com conseqüente aplicação de multa e/ou fechamento do estabelecimento, resolveria a questão.

Na moderna concepção de Direito Penal defendida por CLAUS ROXIN, determinadas condutas tidas como crimes já não podem mais ser consideradas violadoras de normas penais, mormente pelo avanço significativo da sociedade e a aquisição de novos valores – adequação social -, os quais deverão ser salvaguardados por outros ramos do Direito, conforme já explicitado.     

Não se ignora a necessidade de efetivo combate à reprodução e comercialização de produtos falsificados. Por outro lado, traduz-se inadequado, irrazoável e desproporcional prender em flagrante, ou seja, mandar ao cárcere e misturá-lo com criminosos no presídio, aquele que vende “CD´s” ou “DVD´s” sem autorização do autor se a própria sociedade aceita tal conduta, consumindo deliberadamente o produto violador do direito autoral. Dessa forma, pergunta-se: quem ainda não violou tal norma? Quem nunca adquiriu um “DVDzinho” na banca da esquina para assistir no final de semana, pela comodidade de não precisar ir até o “Cinemark”?

Poderíamos, ainda, apontar a inconstitucionalidade do Art. 184, §2º, do Código Penal, introduzido pela Lei. Nº 10.695/03, sob o argumento previsto no Art. 5º, XIII, da CF, o qual dita que “é livre o exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão”, motivo porque pessoas estão, cada qual a sua maneira, “lutando pela sobrevivência, num País cheio de desigualdades”, além do que a pena mínima de dois anos de reclusão, estipulada para esse tipo de delito, é por demais desproporcional.

Com efeito, não se mostra crível se atribuir ao Delegado de Polícia apenas a função de efetuar a leitura fria e gramatical dos tipos constantes do Código Penal e leis especiais, a fim deste verificar se houve subsunção formal do fato supostamente criminoso a tais tipos incriminadores, tão somente, pois, se assim o fosse, bastar-se-ia instalar nos portões dos Fóruns “caixas eletrônicos penais”, os quais contivessem todas as opções criminosas possíveis e, acompanhados pelo policial/condutor, obter o suspeito seu ‘ticket’ de encaminhamento à prisão provisória, aguardando-se a acusação e devido julgamento.

Isso porque indiciado é o sujeito de direitos (e não simples objeto de investigação), eleito pelo Estado-investigação, mediante seu representante Autoridade Policial, conforme seu entendimento jurídico, como autor da infração penal, ou não. E, isso se dá, também, porque a investigação apontará, em momento oportuno, o(s) indício(s), quando então o Delegado de Polícia, seguindo sua convicção jurídica, providenciará o devido indiciamento, ou não, de quem se encontrar na posição de suspeição ativa, seja determinando sua oitiva na forma de interrogatório, seja ratificando o interrogatório do conduzido em procedimento flagrancial, seja decidindo não indiciá-lo, tendo em vista a ausência de tipicidade material da conduta, procedendo-se, por fim, nos demais atos que dele advém.

Frisa-se, por oportuno, que ao Delegado de Polícia cumpre, conforme disposição do art. 4º do CPP, “apurar infrações penais e sua autoria”. Assim, deve o Delegado apurar a autoria de infração penal, ou seja, autoria de “crime”.

Caso a Autoridade Policial entenda, juridicamente, analisando o fato sob o prisma de quaisquer teorias da Tipicidade que adote (Clássica, Finalista, Conglobante, Imputação Objetiva, Constitucionalista do delito, etc), que o ‘autor’ não praticou “crime”, então a única solução será decidir pelo seu não–indiciamento/não lavratura do flagrante, posto que não lhe compete indiciar “autor de fato ATÍPICO”, nem “autor de conduta típica e LÍCITA”, mas sim “autor de infração penal”; em outras palavras, autor de crime. E crime é, dentre os diversos conceitos analíticos que o explicam, existentes e aplicáveis aos delitos ocorridos no Brasil, no mínimo, um fato típico e ilícito (cf. Teoria Finalista Bipartida).

Por isso, sustenta-se que é extremamente necessário que o Delegado de Polícia expresse seu entendimento jurídico quanto ao fato que lhe  é apresentado, tipificando penalmente (tipicidade material + tipicidade formal) a conduta do suspeito, inclusive analisando se existem causas excludentes de injuridicidade ou de culpabilidade a militar em favor do mesmo.

Isso porque a investigação policial, com sua conseqüente decisão de indiciamento ou não do suspeito tomada pelo Delegado de Polícia, não serve apenas de fornecer subsídios para que o membro do Ministério Público promova a denúncia, mas sim para fundamentar, de igual modo, uma “opinio delicti negativa”, a fim de que seja o Inquérito Policial arquivado pelo Magistrado, a pedido do “parquet”.

Afinal, se ao réu é garantida Constitucionalmente a “presunção de sua inocência”, em nada lhe prejudicará – pelo contrário, só lhe será benéfico -, que o primeiro profissional do Direito em contato direto e imediato com a situação penalmente relevante em seu desfavor, detentor do inicial filtro de legalidade processual – o Delegado de Polícia – lhe garanta a fiel efetividade desse postulado, aplicando seus conhecimentos jurídicos exigidos quando da assunção ao cargo em prol da legalidade, da humanidade, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.

Isto posto, considerando-se os argumentos expostos, mormente pela impossibilidade de consecução de perícia especializada incontinente dos objetos apreendidos com o suspeito, a caracterizar a real originalidade ou não do material apreendido, e entendendo também pela atipicidade da conduta praticada pelo mesmo, lastreado pelo Princípio da Adequação Social, e da Intervenção Mínima do Direito Penal e da ausência de tipicidade penal demonstrada através da aplicação da Teoria da Tipicidade Conglobante, bem como pela inconstitucionalidade do tipo acima ventilada, deixo de proceder a elaboração de  procedimento flagrancial em face de XXXXXX, ressalvado o registro de ocorrência, apreensão dos objetos e oitiva do suspeito e condutor.

In fine, determino a imediata liberação do apresentado, com posterior remessa das peças de informação à Delegacia de Polícia com atribuição para se efetuar a instauração de Inquérito Policial, conforme o juízo de tipicidade a ser adotado pela Autoridade Policial detentora do subseqüente filtro de legalidade.

13 de fevereiro de 2011

Fabrício De Santis Conceição
Delegado de Polícia Civil

Sobre o autor,

Fabricio De Santis Conceição
Delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul. Colunista e correspondente da região Sul/Suldeste do Portal Nacional dos delegados (www.delegados.com.br). Professor Universitário. Foi Delegado de Polícia no Estado da Paraíba (turma de 2003), onde exerceu a função de Vice-presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado – ADEPOL/PB, mandato 2008/2010. Exerceu o cargo de Gerente de Inteligência da Secretaria de Estado da Segurança e Defesa Social do Estado da Paraíba (2007-2008). Foi professor da Academia de Polícia Civil do Estado da Paraíba, e professor Universitário da Associação de Ensino Renovado – ASPER (2007 a 2010) e de cursinhos preparatórios pra concurso em João Pessoa/PB. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processo Penal e Direito Constitucional. É Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade Metropolitanas Unidas – UNIFMU/SP, e especialsta em Tribunal do Juri, pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo – ESA/SP (2002). Atuou como Defensor dativo, junto a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, e como advogado, exerceu a função de membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Secção Central (Sé) da OAB/SP , e da Comissão de Tribunal do Juri da Secção Penha de França/SP (2001-2004). Iniciou sua carreira profissional como Agente de Segurança Penitenciário, exercendo suas funções na Penintenciária de Segurança Máxima de Pacaembú/SP, e no Centro de Detenção Provisório I, de Osasco/SP (1997-2001).

 

 

 

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