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Denuncismo genérico gratuíto: Banalização de procedimentos por achismos

por MARCELO FERNANDES DOS SANTOS

 

O presente trabalho é resultado de exaustivas notícias referentes ao absurdo de investigações iniciadas de forma gratuita, sem um mínimo de justa causa para apoiar sua instauração.

Agentes públicos são humilhados, constrangidos pelo fato de ter que suportar inúmeros procedimentos criminais e disciplinares instaurados contra os mesmos.

Neste momento apresenta-se um texto sobre a ação de um delegado que recebeu ocorrência da polícia militar a qual apresentou certa quantidade de crack, colocando em seu boletim que seria prática de tráfico. O delegado, exercendo suas atribuições, entendeu que não e lavrou o TCO. Os policiais militares, indignados, procuraram o Ministério Público e informaram o fato. O promotor de justiça mandou instaurar, então, procedimento contra o delegado para apurar isso.

Abaixo segue um modelo de relatório vencedor, o qual já foi utilizado na prática em vários Estados como forma de combater esse vício que denigre a estabilidade funcional e emocional de diversos servidores públicos que são submetidos à análise sem conteúdo jurídico hábil para isso.

DO PROCEDIMENTO EXORDIAL

Versam os autos, conforme notícia de infração funcional de cognição mediata, consoante delação de transgressão congênere ao delito de prevaricação e alhures, possivelmente cometidas pela suspeição no exercício do cargo de delegado de Polícia Civil, de acordo com o conteúdo ínsito na portaria apresentada pela Delegacia Regional.

DOS FATOS

O indigitado é suspeito de liberar pessoas detidas sob possível prática, em tese, de tráfico de drogas, quando era plantonista na Delegacia. O Delegado JOÃO entendeu que a notitia criminis apresentada pelos policiais militares caracterizava, ao final da lavratura do flagrante, conforme sua convicção, o uso de drogas, e não tráfico.

Desta feita, analisando o conteúdo das oitivas e as evidências coalescidas, o indigitado iniciou o auto de prisão em flagrante ouvindo as testemunhas e os envolvidos, liberando-os ao final do feito, com autuação de consumo de drogas.

Inconformado, o miliciano JOSÉ, o qual participou da prisão dos meliantes, procurou o Ministério Público para apresentar sua aversão à interpretação jurídica do delegado JOÃO. O Parquet, então, recepcionou a oitiva do militar e enviou tal documentação com ofício ao Delegado-Regional requisitando que se “…tomassem as medidas pertinentes no sentido de apurar as denúncias…” contra o indigitado em questão, mas não mencionou qual o procedimento queria que a Polícia Judiciária instaurasse.

O representante do Ministério Público foi questionado sobre qual procedimento desejaria que fosse instaurado para apurar a denúncia do militar contra o Delegado JOÃO, se inquérito policial ou procedimento administrativo .

Em resposta, o Órgão Ministerial disse a este departamento que a apuração da denúncia seria através de procedimento administrativo preliminar. Outrossim, suplementou que na evolução da investigação, caso encontrasse indícios capazes de confeccionar o iter criminis em desfavor do delegado investigado, instaurar-se-ia inquérito policial para analisar possível prática delitiva, se houvesse.

Diligenciado para localização do investigado, o mesmo havia sido destituído da função de delegado desta Regional, sendo transferido para outra Regional de Polícia Civil.

Juntaram-se documentos probatórios para expor a fundamentação jurídica e funcional sobre o caso em tela. No boletim de ocorrência policial militar foi citado o crime de tráfico de drogas e formação de quadrilha em desfavor dos conduzidos, onde foi elencado que o ‘serviço de inteligência’ da polícia militar investigara crime comum divulgando um veículo que transportava ‘crack’ oriundo da cidade 1 com o fim de distribuir a droga na cidade 2.

Os policiais militares abordaram o veículo e lá encontraram 37 (trinta e sete) gramas de crack. E nada mais. Prenderam os passageiros do carro e levaram para a Delegacia para autuação.

Na Delegacia, os policiais militares prestaram esclarecimentos sobre a prisão à época. Neste departamento, o policial militar JOSÉ confirmou o que disse na Promotoria e ventilou que no dia da prisão dos indivíduos, o ‘serviço de inteligência’ da polícia militar, conhecido por ‘P2’, comandado pelo tenente SILVA, informou sobre a condução da droga em questão.

O miliciano JOSÉ alegou, ainda, que a ‘P2’ é um setor da polícia militar composto de policiais militares descaracterizados onde investigam ‘crimes comuns’.

O miliciano JOSÉ, ainda disse que o delegado JOÃO, durante a lavratura do flagrante, telefonou para um advogado, a pedido dos presos conduzidos para a delegacia, com o fim de informar sobre suas prisões, as quais eram baseadas por tráfico de drogas, e não por consumo. Contudo, o próprio militar não ouviu as palavras do causídico.

Outrossim, os militares 1, 2 e 3 disseram que, o delegado JOÃO não possuía qualquer sentimento pessoal em relação aos presos em questão. Tais militares não informaram se havia algum interesse político, financeiro ou moral em relação à prisão do indivíduo conduzido com nexo ao delegado JOÃO.

Os militares que fizeram a prisão dos meliantes aduziram que não têm provas capazes de informar se o delegado recebeu algum valor pecuniário sobre tal autuação, negando qualquer conhecimento sobre ação corruptiva do investigado JOÃO.

DO DIREITO

A investigação, além do escopo processual penal, técnico-jurídica, tem caráter estratégico e tático sendo que, devidamente estabilizada, produz ainda, em conjuntura com o preceito de defesa social, subsidiariamente, referências convergentes aos aspectos sociopolíticos, econômicos e culturais que se expõem no evento delitivo.

O exórdio da investigação, em face de sua concretização integral, perfaz-se com a cognição da notícia de infração, por quaisquer meios, e se desdobra pela articulação ordenada, dentre outros aspectos, dos atos notariais e afetos à formalização das provas em procedimento inquisitivo preliminar ou outro instrumento legal, dos atos operativos de minimização dos efeitos do delito e gerenciamento de crise dele decorrente, da pesquisa técnico-científica sobre a autoria e a conduta criminal, das atividades de criminalística, identificação, medicina e odontologia legal e encerra-se com o exaurimento das possibilidades investigativas predicalizadas na respectiva metodologia.

O primeiro elemento subjetivo do tipo: o dolo, não foi constatado, pois as testemunhas arroladas, e que participaram da prisão, não informaram tal existência em desfavor do autor e que configurasse algum fim específico adventício à conduta do delegado JOÃO convergente ao caso e que suprisse essa elementar.

É cediço que o dolo é a pretensão de diferir, excluir ou cometer ilegalmente o ato de ofício, mas se exige o elemento subjetivo do tipo que é o desígnio de satisfazer interesse ou sentimento pessoal. O interesse pode ser patrimonial, material ou moral. O sentimento, estado afetivo ou emocional, pode derivar de uma paixão ou emoção (amor, ódio, piedade, avareza, cupidez, despeito, desejo de vingança).

Negligência, preguiça e desleixo são causas que excluem o dolo: RT 451:414, 486:356, 565:344 e 543:342, JTACrimSP, 71:320, 69:209 e 73:131. Deficiência funcional ou falta disciplinar por si só não configuram o crime de prevaricação – RTJ, 94:1, RT, 543:342, RT, 612:310.

O segundo elemento subjetivo do tipo: “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” não foi possível consignar nos autos, tendo em vista inexistir, até então, caracterização probatória de alguma vantagem, moral ou patrimonial, percebida pela suspeição.

Inocorreu sentimento de simpatia, ódio, vingança, despeito, dedicação, caridade, animosidade e alhures convergentes à questão em querela e que se reflita ao comportamento do investigado referente à atuação do flagrante questionado. Nenhum testemunho ou material probatório confirma tal predicação contra a suspeição.

DA JURISPRUDÊNCIA

Ad argumentandum tantum, não houve especificação dos elementos subjetivos do tipo pelas testemunhas dos autos, fator imprescindível para formalização da peça exordial do parquet em seus requisitos formais e materiais, o primeiro encontrado no art. 41, do CPP, e o segundo como indícios que gerem juízo de probabilidade de a descrição corresponder ao ocorrido no plano da experiência jurídica, não bastando apenas reproduzir os termos legais, ex vi STF: RTJ 71/835, 111/288, RT 612/309.

Ato discricionário de Delegado de Polícia: inexistência de crime – STJ: “A autoridade policial, escudado em sua prerrogativas de responsável pela condução do inquérito policial, deve buscar elementos que derivam de base à instauração da ação penal, podendo juntar, de conseqüência, os documentos que pentenda pertinentes aos fatos em investigação, não se podendo falar, nessa hipótese, de pratica do crime de prevaricação”. (RHC 9.677-ES – DJU e RDT 783/588).

TACRSP: “(…) Inocorre o delito do art. 319 do CP, na conduta de Delegado de Polícia que deixou de lavrar auto de prisão em flagrante de acusado que nessa situação se encontrava iniciando somente o Inquérito Policial, pois a regra da lavratura do auto de prisão em flagrante em situações que o exijam, não é rígida, sendo possível certa discricionariedade no ato da Autoridade Policial, que pode deixar de fazê-lo em conformidade com as circunstâncias que envolvem cada caso” (RDJTACRIM 51/193).

TACRSP: “Para a configuração do crime previsto no art. 319 do CP é indispensável que o ato retardado ou omitido se revele contra disposição expressa de lei. Inexistindo norma que obrigue o Delegado de Polícia autuar em flagrante todo cidadão apresentado como autor de ilícito penal, considerando seu poder discricionário, não há se falar em prevaricação” (RT 728/540).

TACRSP: “Ação penal… a autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente (RJTACRIM 39/341).

TACRSP: “Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente ode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razoes para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade (RT 622/296-7). No mesmo sentido, TACRSP: RT 679/351, JTACRIM 91/192.

Destarte, se o delegado tem esse rosário jurisprudencial expelido em suas atribuições para discernir sobre o caso concreto e aplicá-lo, do mesmo modo tal agente público apenas não pôde estabelecer seu múnus in casu de forma incontinenti. Inexistiu prejuízo para o exercício de polícia judiciária capaz de prejudicar a persecução penal e conseqüente punibilidade do autor conduzido, independentemente do fato do indigitado produzir sua liberação para tanto, salvo se o mesmo não fosse encontrado para sua qualificação e autuação depois, o que de fato não ocorreu.

DA JUSTA CAUSA E DA BOA FÉ

Escande-se sobre a necessidade de justa causa para abertura de sindicância. Escusa que resultou somente na abertura deste procedimento vestibular, sem contraditório, nem ampla defesa. Inocorre possibilidade punitiva neste momento, em face da ausência de atribuição atual para apurar infração disciplinar e opinar sua punição ou não.

A essência da justa causa é condição sine qua non para a instauração do inquérito administrativo, pois sem subsídios materiais, não pode o administrador público devassar a vida do servidor público sob o pálido contexto de tentar localizar indícios de uma pseudo violação disciplinar.

A exposição fática do indigitado não foi capaz de superar o perímetro repressivo do Estado, pois o fim colimado pela suspeição não infringiu o interesse da sociedade em tais fatos relativo ao bem comum.

Calha, que o desempenho conforme a lei e o direito, extrai do Estado o vasto, geral e irrestrita discricionariedade, devendo a Administração Pública obedecer ao princípio da segurança jurídica, só instaurando o processo disciplinar quando estiver presente com toda fidúcia e materialidade, uma justa causa para a sua instauração, sob pena de indevida incursão funcional do agente público.

O processo administrativo disciplinar deverá ser instaurado sempre que a autoridade pública ficar cônscio de qualquer anomalia funcional perpetrada por agente público. Essa ciência deverá vir composta por elementos que comprovem falta aos deveres da função, e não gratuita inculpação genérica.

Nessas condições, somente o exercício irregular das atividades funcionais do servidor público, que desencadeie em descumprimento a deveres ou inobservância a proibições, devidamente comprovados ou que existam forte indícios dessas infrações é que deverão ser apurados:

“O uso do poder disciplinar não é arbitrário: não o faz a autoridade quando lhe aprouver, nem como preferir.”

Oportuna a preleção de José Armando da Costa averba que, sem o fumus boni iuris não há como se instaurar procedimentos disciplinares:

“A garantia do devido processo legal não só assegura ao funcionário a feitura do procedimento disciplinar previsto na lei (sindicância e processo ordinário sumário), como exige, por via de conseqüência, a existência de elementos prévios que legitimem tal iniciativa.

Não fosse a exigência desse pré-requisito, os procedimentos disciplinares – estribando-se em meros caprichos do administrador e podendo ser instaurados sem mais nem menos, isto é, sem a existência de indícios ou outros adminículos legais idôneos – a vida funcional do servidor público seria um constante transtorno recheado por uma insegurança jurídica. Daí porque o aspecto mais democrático e importante do devido processo legal é a exigência desse imprescindível requisito de iniciação processual (fumus boni iuris), sem o qual ficaria o servidor público à mercê das trepidações emocionais dos seus superiores hierárquicos, os quais poderiam, assim, infelicitar, importunar e desassossegar os seus subalternos como bem lhe aprouvesse, já que não estariam vinculados a esse pressuposto legal.”

Procedimentos administrativos genéricos, instaurados sem ambiente de apoio cogente, são inadequados para apuração de infração disciplinar sem justa causa plausível que embase punição administrativa.

Com alentada aquarela, Adilson Abreu Dallari, indignado, ressoa contra esse procedimento:

“Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que, no seu curso se apure se, eventualmente, alguém cometeu falta funcional. Não é dado à Administração Pública nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuitamente e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele, talvez, tenha participado. Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário, e na medida do necessário.”

“Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável. Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, desproporcional, não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade.”

É insatisfatória a existência de um acontecimento ou um receio, pois se torna forçoso o fumus boni iuris para a entrada do procedimento disciplinar contra quem quer que seja.

Esse juízo de valor, mesmo que em sumaria cognito o Administrador Público é compelido a fazer, sob pena de empreender abuso de poder.

Corroborando o que foi dito, a Lei nº. 9.874/99, que regula o processo administrativo federal, veda as medidas restritivas além daquelas que sejam estritamente necessárias, bem como a segurança jurídica:

“Art. 2º – A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo Único – Nos processos Administrativos serão observados, entre outros os critérios de:

I – Atuação conforme a Lei e o Direito;
……………………………………………………………………
IV – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.”

Carência de objeto é sinônimo de ausência de justa causa. Denuncismo genérico é incompatível com a legalidade funcional. Somente a irregularidade, recheada de elementos sensíveis e concretos é que poderão ser investidos, sem que haja constrangimento ilegal ao agente público.

Vaticinado no citado art. 144, e parágrafo único da Lei nº. 8.112/90, José Armando da Costa também se perfilha ao que foi dito:

“Vê-se, assim, que, sem esses conectivos pré-processuais, resta ilegítima a iniciativa da administração pública consiste na abertura desses expedientes apuratórios de faltas disciplinares, pois que tais elementos prévios indiciários (fumus boni iuris) não apenas contribuem uma exigência jurídico-processual sinalizadora da plausibilidade de condenação do servidor imputado, como também configura uma garantia em favor deste, que não poderá, sem o mínimo de motivação, ser submetido a inquietadores procedimentos como tais.”

A boa-fé e a segurança jurídica removem do administrador público a faculdade da instauração do procedimento administrativo genérico, sem que haja aparente violação aos princípios disciplinares que regem a vida funcional.

O processo disciplinar não é ‘um estojo enigmático’ onde a ausência de materialidade de uma possível falta funcional poderia proporcionar a instauração de inquérito administrativo para devassar o servidor.

O princípio da boa-fé no Direito Administrativo exige do agente público, no exercício de seu munus a lealdade, tanto com a sua repartição, como, sobretudo, com o administrado.
Sublinhar em outra oportunidade:

“Assim, a idéia de uma conduta leal e confiável (treu und glauben) – substrato da boa-fé – incorpora-se na essência do direito, para viabilizar a Justiça e a segurança das relações intersubjetivas, figurando como verdadeiro dever do agente público manter aceso esse salutar princípio no cotidiano.

A conexão entre a idéia de direito e o conteúdo ético – necessário, que rege o Princípio da Boa-fé, faz parte de uma perspectiva moderna que busca a lealdade como forma de eficiência e confiança da Administração Pública no relacionamento com a sociedade. A boa-fé objetiva é reconhecida e consagrada tanto na doutrina nacional como pela jurisprudência, cujo posicionamento se finca na idéia de que os atos privados e os públicos devem ser efetuados dentro de um padrão de lealdade e de ética.

Nessa moldura, mesmo não existindo dispositivo legislativo direto, o princípio sub oculis é informativo dos atos públicos, não se admitindo, em hipótese alguma, que o servidor público paute seus atos funcionais descompassados com a boa-fé e a lealdade.”

Registre-se, mais uma vez, a posição de José Armando da Costa:

“… sem esses conectivos pré-processuais, resta ilegítima a iniciativa da administração pública consistente na abertura desses expedientes apuratórios de faltas disciplinares, pois que tais elementos prévios indiciários (fumus boni iuris) não apenas constituem uma exigência jurídico-processual sinalizadora da plausibilidade de condenação do servidor imputado, como também configura uma garantia em favor deste, que não poderá, sem o mínimo de motivação, ser submetido a inquietadores procedimentos como tais. Não fosse a exigência do concurso inicial dos referidos adminículos indiciatórios (princípio de prova), a segurança jurídica dos servidores públicos desceria a patamares desprezíveis e instáveis, o que arrostaria de modo brutal e frontal o princípio constitucional do devido processo legal, uma vez que a instauração de tais procedimentos disciplinares se torna legítima e devida ante a existência desses indicadores pré-processuais.”

Destarte, sem indícios ou provas, tanto o princípio da boa-fé como o da segurança jurídica, retiram do administrador público a possibilidade de instaurar procedimento disciplinar contra o servidor público.

A segurança jurídica trabalha in casu como o dever/poder do Estado em resguardar a sociedade, sem reserva, da inviabilidade da honra e da devida privacidade dos indivíduos, não podendo ser rompida por atos administrativos desarrazoados ou que poupam núcleos animados de retaliações.

DA CONCLUSÃO

Ex positis, tollitur quaestio, com arrimo nos predicados suso reportados, findo o mister de tal encargo referente ao caso em tela, não foi possível apresentar evidências dignas de nota e capazes de preencher parcialmente a estrutura jurídica necessária para a moldura da maioria dos elementos infracionais.

A doutrina vencedora divulga que o inquérito policial é uma mera peça informativa, documento administrativo que inicia a persecução penal, o que dirá do boletim de ocorrência policial militar, onde o mesmo é um documento estatístico e de controle e informação inventado pela Polícia Militar. Tal boletim não existe no ordenamento jurídico pátrio. Não há lei processual penal que o discipline.

O Delegado de Polícia Civil não está vinculado à classificação delitiva colocada no boletim da Polícia Militar, também não aos fatos nele colocados, apenas ao testemunho apresentado, assim como o Promotor ou Juiz não o estão.

As circunstâncias dos fatos relativos aos liberados sobejou em consumo pessoal, onde foram atendidos os requisitos inerentes à natureza e à quantidade da substância apreendida, assim como ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta da sujeição mencionada. O investigado se apoiou em tais elementos legais.

Argumentos utilizáveis pelo Delegado de Polícia Civil, no exercício de suas atribuições, de acordo com sua discricionariedade e conforme o conteúdo dos arts. 3º, 4º, 5º, § 1º, b, § 3º, todos do Código de Processo Penal, combinados com o art. 28, § 2º, da Lei nº 11.343/06.

O rol testemunhal confirmou a predicação escandida nos parágrafos acima. Não aduziu existência de interesse ou sentimento pessoal convergente ao indigitado capaz de estabelecer um liame configurativo de alguma prática infracional. O rol testemunhal não ofereceu prédica sobre recepção de valor pecuniário que vislumbrasse elo corruptivo do suspeito.

Inocorreu intenção comprovada de atos delitivos ou infracionais pelo investigado, tampouco houve propósito deliberado, sem intenção direta. Inolvida-se a inexistência de dolo específico para tal fim, pois as testemunhas não conseguiram assim constatar. O rol testemunhal não foi capaz de perceber ocorrência de ‘má-fé’ do indigitado na questão da ‘liberação’, tampouco informações sobre aspectos pessoais ou corruptivos para isso.

Entrementes, os policiais militares invadiram a seara atributiva da polícia judiciária. Investigar crimes comuns não é atribuição da polícia ostensiva. Tal comportamento configura usurpação de função pública, tipificação encontrada no Código Penal, em seu art. 328.

Caso algum agente público tenha conhecimento em uma área atributiva a outro agente público, não lhe dá o direito de exercê-la, sem lei que o defina.

O fato de policiais militares obterem conhecimento empírico na seara investigativa de crimes comuns não lhes dão direito de assim agirem. Esbulho do trabalho da Polícia Civil, independentemente de escusa sobre questões de política criminal. Existem limites legais que impedem isso.

Exempli gratia, como é público e notório, ainda que um Delegado tenha a formação jurídica retilínea ao Promotor ou ao Juiz, todos são bacharéis em Direito e isso é requisito para investidura em seus cargos, não lhe dá direito de, mesmo o Delegado sabendo fazer, confeccionar denúncia ou uma sentença, pois foge de sua alçada.

A ‘investigação de crime comum’ por policiais militares, fato ilegal, foi adicionado ao espaço expelido pela convicção jurídica do Delegado de Polícia Civil investigado, o qual pode aplicar o Direito ao caso concreto, pois tem formação científica para isso.

Quanto à formação dos delitos de consumo ou tráfico de drogas em si, a jurisprudência e a Doutrina sobejamente dissertam sobre o conceito do iter criminis e sua composição. O mesmo é, nessa ordem, atos cogitatórios, preparatórios, executivos e consumativos.

Relativo ao consumo de drogas, a convicção demonstrada nestes autos sobre o iter criminis abrangente preencheu todo esse itinerário jurídico-legal: cogitação, preparação, execução e consumação do delito.

Contudo, relativo ao tráfico de drogas, a convicção demonstrada nestes autos sobre o iter criminis percorreu apenas os atos cogitatórios e preparatórios, restando os demais. O quantitativo e os aspectos envolventes não vislumbravam, naquele momento, à traficância latente.

Destarte, mesmo com possibilidade de fragmentação da droga, não foi concretamente constatado se a mesma seria incluída nesse rol, pois também poderia ser utilizada para consumo, conforme o art. 28, da Lei 11.343/06. Não havia testemunhas que comprovassem que tal droga apreendida era para o tráfico. Não existiam cédulas de baixo valor, tampouco balança de precisão, nem lista de usuários ou apetrechos utilizáveis para comercialização da droga.

A imaginação do miliciano-delator deve se limitar ao teor do seu trabalho, o qual é ostensivo. Fantasiar conceitos avulsos, pensando que existe entendimento pacífico ao produzido e que se vincule aos fatos investigados, como se não permitisse outra interpretação, é temerário. Reflete a tal criador censura jurídica. Profilaxia necessária a essas condutas, podendo derivar sanções penais ao criador.

Neste viés, considerando a extinção da Coordenação Regional Judiciária, desconstituindo a atribuição deste signatário em apurar tais fatos; Considerando a ausência de provas capazes de suprir os elementos normativos, subjetivos e objetivos do tipo penal de prevaricação e corrupção; Considerando a inexistência de preceito legal que defina matematicamente o conceito e limite deste sobre o consumo e tráfico de drogas; Considerando a discricionariedade do Delegado no exercício de sua função, pois o mesmo não é ‘agente de protocolo’ e, sim, Operador do Direito; Considerando a hermenêutica jurídica, a qual ventila no caso em querela, a impossibilidade de entendimento unitário na análise da conjuntura fática exsurgente e investigada, onde não se restringe à convicção apenas ao tráfico de drogas, mas também ao consumo, pela inexistência de fragmentação da droga e condicionamento da mesma em dezenas de invólucros característicos, capazes de preencher a aparência de mercância do narcótico; opina-se pela destituição do presente feito, tendo em vista o exaustivo teor relatado, comunicando-se à Corregedoria de Polícia Civil.

Sobre o autor

 

Marcos Monteiro
CEO do Portal Nacional dos Delegados,  professor de ensino superior em Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Processual Civil, ex-advogado, ex-coordenador regional judiciário de polícia judiciária, ex-coordenador jurídico da secretaria da justiça

 

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